O dia seguinte ao da comemoração da República, arrisca-se a ficar na História (caseira, mas ainda assim com letra grande) a vários títulos. Para além do recorde alcançado pela queda da Bolsa (acompanhada, aliás, pela generalidade das suas congéneres, a nível mundial); da declaração do Ministro das Finanças garantindo a segurança das poupanças dos portugueses, ‘aconteça o que acontecer’; do estudo do ACP confirmando a concertação de preços entre as gasolineiras (mesmo em plena crise, onde estão as regras da concorrência?), ao final da noite fomos mimoseados com declarações surpreendentes (apenas pelo desaforo do gesto, que não pelo seu mais que consabido conteúdo!).
Nunca como agora se assistiu a um tal nível de descaramento e falta de vergonha no que diz respeito à forma como os prosélitos do mercado e os neoliberais de todas as tendências (incluindo algumas ditas ‘socialistas’) decidiram enfrentar a dura realidade e os gravíssimos problemas que a aplicação ilimitada e incondicional das suas ideias produziu nas sociedades actuais – cujos efeitos começam a ficar bem à vista! Fortes (ou inchados?) da incontestada liderança ideológica mantida nos mais de 30 anos passados, seguros da debilidade da oposição ao modelo de mercado por ausência, dizem, de alternativas concretas após a queda do muro de Berlim (não é por acaso que o ‘socialismo real’ continua a ser o único modelo com que gostam – e aceitam! – confrontar-se), numa demonstração de ilimitada confiança, escancaram os seus propósitos e alardeiam insolente audácia, avançando com propostas ofensivas dos mais elementares princípios da ética e da inteligência.
Aconteceu no último programa público (?) ‘ Prós e Contras’, da inefável Fátima Campos Ferreira, pela boca do representante da CIP (o omnipresente eng. Van Zeller) que nestas coisas tem pelo menos o mérito de ser claro e directo. Como o foi no presente caso. Depois de afirmar que, ao contrário dos EUA, ‘na Europa havia regras’, mas ‘aparentemente sem grandes resultados’ (o mercado é que manda, seja nos ultra-liberais EUA, seja na regulada Europa), sustentou que para se ultrapassar a presente crise, ‘o Estado devia orientar a economia durante uns anos’, acrescentando de imediato ‘desde que não seja para toda a vida’, ou seja, logo que recuperada, devolvia-a aos privados!!!
Ouve-se e não se acredita. Só a completa desfaçatez ou a certeza de estarem a lidar com mentecaptos – nós todos, pois então! – explica tamanha ousadia e atrevimento em explicitarem o que se sabe acontecer na prática, mas não é conveniente admitir-se publicamente: que o Estado (segundo esta concepção, estrutura pesada e ineficiente, as mais das vezes servindo ‘apenas’ para explicar as denominadas falhas de mercado e que, portanto, atrapalha e dificulta o seu funcionamento), afinal agora surge mesmo como a única estrutura com capacidade e, pelos vistos, suficiente eficácia, para salvar da crise os invioláveis interesses privados – a coberto de o fazer, é certo, em nome da estabilidade social. Mas já a seguir, passado o susto e restabelecidos os equilíbrios, volta tudo de novo ao princípio, retorna a ser ineficiente e deve afastar-se, entregando a economia saneada (traduzindo, a dar lucro) aos seus eficientes gestores privados,... até á próxima crise e o reiniciar-se deste ciclo!
Sintetizando: o Estado demonstra eficácia na gestão das crises – e em suportar os prejuízos causados pelos gestores privados; o mesmo Estado já não é eficaz na gestão das empresas em períodos de expansão – e em arrecadar os lucros correspondentes. Brilhante!
E foi assim ao longo de todo o serão. Sem contar com o ‘estrangeirado’ de Londres, convidado na qualidade de presumível corresponsável na crise (enquanto gestor de uma grande instituição financeira, o Citigroup), eram seis (6) os doutos intervenientes neste serão em família, todos afinando pelo mesmo diapasão neoliberal: ‘mercado e democracia, a mesma luta’!!! Nem um só destoava nesta aperaltada charanga, instada a executar o ‘requiem’ mais rasca a que me foi dado assistir nos últimos tempos, ao finado e encomendado sistema – apesar da recusa deste em aceitar a confirmação. No final adormeci a sonhar com os anjinhos, não com estes, como é óbvio, demasiado cabeçudos para lhes poder assentar nas beatíficas carolas a auréola celestial.
Do Mendonça (presidente do ISEG), ao Beça (ex-ministro socialista), todos se confessaram acrisolados admiradores das beatíficas virtudes do mercado, convindo embora na necessidade deste, de quando em vez, ter mesmo de pegar de empurrão! Basta de disparates. Estes tipos têm o condão de me tirar do sério e de me porem à prova a minha inata tendência para a rasquice. Mas até quando consentiremos que a alarvice bacoca afronte a nossa inteligência e empobreça esta pobre democracia?
Um parágrafo, dois gráficos, algumas palavras.
Há 23 horas
1 comentário:
O que é extraordinário e, diria até, assustador é que esta gente, que supostamente é paga para pensar (os académicos, pelo menos), continue em negação. Enquanto assim continuarem, esta crise só poderá piorar. Esta é uma crise grave, como a maior parte de nós jamais conheceu, só que ainda não sentiu os efeitos mais duros. É também extraordinário que os jornalistas façam tão poucas ou nenhumas perguntas sobre como foi possível chegar a este ponto!
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