domingo, 30 de dezembro de 2012

Mercados, mentiras e pantominas – II


A pantomina das reformas estruturais

As reformas estruturais constituem, no discurso oficial do Governo, a sequência lógica da política de estabilização financeira e consolidação orçamental. Na realidade, porém, o que se percebe das medidas que têm vindo a ser adoptadas, de teor normativo ou no domínio das privatizações, é que elas fazem parte de um plano político mais amplo e de muito maior ambição: limitar o sector público às funções tradicionais da segurança, cobrança fiscal e administração da justiça, transferindo para os privados tudo o que é rentável; atrofiar o Estado Social, reduzi-lo ao Estado mínimo; tornar o País ‘amigo’ dos mercados, cair-lhes nas boas graças.

O fiel paradigma deste ímpeto reformador encontra-se bem representado nas afirmações de um dos principais epígonos e paladino desta política, o inefável Camilo Lourenço, de acordo com o qual já ‘realizamos (este Governo, claro) mais reformas estruturais nos últimos dezasseis meses do que nos últimos vinte anos’ (!!!). E quais foram então essas reformas? Segundo Camilo (que debita doutrina sem nunca se sujeitar ao contraditório!) foram essencialmente três: a flexibilização da legislação laboral, a lei do arrendamento e as regras de licenciamento para a actividade económica.

Ao lado do colossal poder reformista destas três medidas (e à parte a pindérica pretensão de se ser ‘inovador’ nessas áreas), reformas como a implantação do SNS (incluindo a rede de saúde em todo o País), a expansão do ensino e da ciência (incluindo centros de investigação de excelência), a nova estrutura viária (incluindo a rede de auto-estradas, não obstante os excessos cometidos) – e apenas estas três para contrapor ao ‘número’ do Camilo – assumem papel secundário e relevância económica subalterna. Perante propósitos tão ambiciosos e a magnitude dos efeitos esperados das três ‘camilianas’– até agora: desemprego e precariedade crescentes, aumento das desigualdades, maior pobreza,... – aquelas apenas podem aspirar à pobre figura de ricos falidos e na penúria!

Dir-se-á, porventura, que essas três reformas se iniciaram há mais de vinte anos e que, portanto, não estariam no radar escrutinador do sagaz Camilo ao estabelecer o confronto entre os dois períodos. Ainda assim é bom recordar que todas elas tiveram a maior concretização precisamente ao longo dos últimos 20/25 anos e que os efeitos estrondosos na modernização da sociedade parecem não poder ser postos em causa, nem interna (talvez então com algumas excepções camilianas), tão pouco externamente (aqui talvez com certos reparos merkelianos). Pelo menos a avaliar pelos parâmetros internacionais, seja na saúde, no ensino ou nas estradas (não obstante, repito, os excessos) – o salto qualitativo em qualquer destes sectores é enorme.

Não se pense, porém, que fica por aqui a actual sanha reformadora. Camilo enumera mais 11 reformas, desde a emblemática (e permanente) ‘modernização da Administração Pública’, à sintomática ‘reforma da geração de abril’(!). A primeira prolonga-se nas três seguintes, englobando o sistema fiscal, a saúde e o ensino (apontando à privatização), a justiça. Pelo meio um conjunto de intenções vagas e voluntaristas, como a de que ‘temos de ser mais competitivos’! Ora, a única verdadeira ‘reforma administrativa’ passa por descentralizar a decisão – o que implica avançar com a regionalização. Mas essa será, mais uma vez, adiada, ou por não ser oportuno (a crise...) ou por não ser desejada (considerada heresia para a direita em geral e para alguma esquerda). Com prejuízo para o aprofundamento da democracia, o bem-estar das pessoas e... a redução de gastos.
 
Reformar a geração de Abril’, para além da provocação, soa a toque de finados, a desforra. Descaradamente alardeia-se, assim, o grande objectivo da actual política: enterrar em definitivo o espírito de Abril e do que ele ainda representa na transformação da sociedade e das mentalidades. Gorada, por enquanto, a almejada revisão constitucional, o objectivo agora é desgastar-lhe o conteúdo, forçando ao limite a letra e o espírito que a enforma, confrontando-a permanentemente, descaracterizando-a, ignorando-a. Passar por cima da única barreira que, até agora, ainda impedia a plena concretização do plano gizado por esta política, a de reforçar o capital à custa do trabalho. 


Sem surpresas, as reformas estruturais deste Governo propõem-se, pois, completar o processo de desmantelamento do Estado Social e a sua substituição pelo Estado mínimo, prosseguir na lógica da destruição produtiva do País, porventura especializando-o na venda do único recurso natural transaccionável em que é relativamente abundante, o Sol, transformando-o em destino turístico preferencial para Nórdicos e alemães. Será esse o resultado que o fundamentalismo liberal irá decerto conseguir da experiência de laboratório em que transformou o País, a tanto se reduz o contributo académico para a construção dualista europeia que o teórico Ministro Gaspar exibirá aos donos da Europa: o Sul, pobre, a servir de coutada e estância de férias aos ricos do Norte!

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mercados, mentiras e pantominas – I


A grande mentira: TINA

Como já por mais de uma vez se afirmou aqui, a forma como a realidade da crise financeira actual – a crise da dívida – nos é apresentada reduz-se a uma colossal mentira envolta numa monstruosa construção ideológica para fins políticos. Resumidamente, de acordo com o discurso dominante, o descontrole da dívida pública é o resultado de nos últimos anos as pessoas terem vivido acima das suas possibilidades. Em consequência, o reequilíbrio das contas só será possível através de drásticos cortes na despesa pública, o que implica a aplicação de um inevitável programa de austeridade (aumento de impostos e redução das prestações sociais), pois não há alternativa à política visando conciliar o rendimento disponível com o consumo efectivo, ou seja, na prática empobrecer o País.

A simplicidade deste discurso, aparentemente inquestionável na sua lógica cruel, parecia destinado, à partida, à aceitação resignada pelos seus destinatários – os contribuintes – não fora deparar com dois ‘pequenos’ pormenores: por um lado, a origem da crise não é devida, muito menos redutível, à generalização apontada (todas as pessoas viverem acima das suas possibilidades), mas antes à especulação financeira e ao restrito número por ela beneficiado (esses, sim, vivendo largamente acima das suas possibilidades); por outro, quem está a pagar a crise e a sofrer os anunciados cortes (por via fiscal, laboral ou redução das prestações sociais) – o trabalho – só marginalmente pode ser responsável por ela, ‘apanhados’ na rede mirífica tecida pelo marketing financeiro (‘compre hoje, pague amanhã’). Estas duas conclusões cada vez se tornam mais evidentes perante a opinião pública e a generalidade das pessoas e isso, conjugado com o seu previsível agravamento nos próximos tempos, pode bem fazer a diferença no desenrolar da situação.

Tanto mais que esta construção básica da ‘inevitável austeridade’ e do ‘não há alternativa’ (o famoso acrónimo thatcheriano ‘TINA’) não está sozinha na política portuguesa. Encobrem-se propósitos pouco claros numa série de outras mentiras ‘auxiliares’, não menos profundas e perigosas. Desde logo a que se tece em torno das ditas ‘reformas estruturais’, que mais não visam, em síntese, que acelerar o processo, aberto pelo dito ‘programa de austeridade’ (a pretexto de se cumprir o acordado com a famigerada troika), de transferência de recursos do trabalho para o capital, com o objectivo da recomposição do poder financeiro, abalado pelo jogo mal sucedido do casino em que se transformou a especulação mundial. Pela sua importância, dar-se-á adiante um maior destaque a este ponto.

Descobre-se o embuste na tentativa de se alterar o sentido a expressões consolidadas. Como é o caso da recente discussão em torno dos ‘direitos adquiridos’, glosada, por exemplo, nas inúmeras aparições e outras intervenções em que Isabel Jonet, a conhecida impulsionadora do Banco Alimentar, se desdobrou nos últimos tempos. Para esta corrente, os direitos adquiridos do âmbito da solidariedade social, mesmo que garantidos constitucionalmente, devem ser entendidos como benesses e regalias, sujeitos, portanto, às mudanças de orientação política que, sob pretexto ou não da carência de recursos, os podem atribuir, reduzir, retirar,... Já os direitos adquiridos pelo poder financeiro (créditos ou parcerias), de modo algum devem ser postos em causa, por temor aos mercados... À garantia republicana e constitucional da solidariedade, contrapõe-se o valor cristão da caridade!

Recorre-se, com frequência, a terminologia equívoca para expressar conceitos e abrir caminho a práticas não aceites de outro modo. Ou prefere-se a utilização de expressões menos hostis, para não irritar os mercados! Qual a diferença, por exemplo, entre ser imprescindível ‘rasgar o memorando’ ou ‘negociar um novo’? À parte a maior agressividade que parece contida na primeira expressão, ambas traduzem, na sua essência, rigorosamente o mesmo. A primeira é, como se sabe, utilizada pelo PC e BE; a segunda tem vindo a ser adoptada cada vez mais no discurso dos responsáveis do PS (António Costa e o próprio Seguro). Mas tem servido de desculpa para as ‘esquerdas’ não terem conseguido, até à data, estabelecer uma plataforma de entendimento sobre este crucial ponto da actualidade política, da vida das pessoas.
(...)

domingo, 25 de novembro de 2012

Fé na troika, com os pés na fraude


A propósito da ‘refundação’ ( do Memorando? do Estado? da Democracia?...)

Está em curso uma gigantesca campanha de reabilitação da troika ou do que ela realmente representa. Reabilitação para uns, reforço de credibilidade para outros, pois a troika, como quase tudo, tem seguidores fiéis e tergiversadores de ocasião (conforme os ventos) – os Gomes Ferreiras e os Camilo Lourenços, não obstante algumas divergências, surgem unidos no propósito essencial de justificarem a existência dessa espúria tríade externa: suportar o programa político dito liberal até agora desenvolvido pela tríade partidária interna (onde, como se sabe – e se lamenta – tergiversa também o PS, uns dias ao lado do actual Governo PSD/CDS – em regra no essencial – noutros na oposição ao mesmo). 

O objectivo deste ‘novo’ surto de acrisolada fé nas virtudes terapêuticas (para consumo interno) da famigerada tríade é claro: desferir o golpe de misericórdia no raquítico Estado Social, acusado, ainda assim, de todos os males e vícios que se atribuem a um povo cada vez mais oprimido e definhado, uma vez que, dizem eles, as inúmeras penas e demais sevícias infligidas em nome de uma saudável e miraculosa ‘cura de emagrecimento’ (???) da despesa pública não surtiram o efeito previsto e desejado.

Aproxima-se o momento cumprida a etapa da punitiva e ‘pedagógica’ punção fiscal, essencial à sustentação da tese dos gastos excessivos do Estado  de terminar a tarefa principal que tem ocupado o poder político a pretexto da resolução da actual crise financeira: demolir o edifício de direitos sociais instituído nos últimos quarenta anos, rasgar o pouco mais que embrionário Contrato Social, dar a estocada final no massacrado Estado Social. Claro que, no final, restará sempre um seu arremedo – hoje já poucos arriscam contestar a necessidade de ‘um’ Estado Social – provavelmente reduzido a mero subsidiário de uma caridade institucionalizada.

Ora, nunca como hoje as possibilidades técnicas permitiram às pessoas tantas facilidades no acesso a uma vida digna, mas também nunca como hoje foram postos em causa tantos direitos básicos (de repente transformados em ‘meras’ regalias descartáveis) com o  argumento de que os recursos que existem não dão para todos, ou para tudo o que era suposto ser garantido por esses direitos. Certo é que nunca como hoje se foi tão longe na mistificação da realidade: desde logo patente na política económica do OE/2013 – não obstante reunir o mais largo consenso negativo de que há memória, mesmo na maioria que a aprovou; ou ao apresentar-se, como saída para a crise, uma pretensa Refundação do Estado – eufemismo que esconde o plano de destruição do Estado Social; ou ainda ao falar-se da necessidade de se reindustrializar o País – depois de sucessivas políticas 'social-democratas' (do PSD e do PS) terem destruído a sua modesta estrutura produtiva por troca com os Fundos Europeus de uma dita modernização, pondo-o completamente dependente do exterior e, agora, da voracidade da especulação interna e externa! 

Mas, sobretudo, nunca como hoje a fraude democrática de um Governo – que, antes de o ser, no ‘contrato eleitoral’ que estabeleceu com os cidadãos, prometia o contrário daquilo que está a executar –  foi tão ostensiva e tão profunda. Talvez porque nunca como hoje o poder político demonstrou tanta cobardia e tão descarada subserviência perante os interesses particulares (externos e internos), na defesa pública dos seus representados.

Escorado numa pretensa decisão da troika (urdida e ‘soprada’, como bem se sabe, pelos representantes do momento da tríade interna), este Governo delineou um programa – a dita ‘refundação do Estado’ (ou da própria democracia?); estabeleceu um calendário – até Fevereiro; definiu uma meta – pelo menos uma redução da despesa do Estado em 4 mil milhões de euros! Munido de tal propósito, importa agora aplanar o terreno, recorrer aos bons ofícios de prosélitos e serventuários reafirmando, mais uma vez, a estafada tese do inevitável, de revisitar (palavra bem do seu agrado), mui reverentemente, a famigerada TINA de Thatcher do ‘não há alternativade se resguardar, mais uma vez, no patrocínio dessa soturna tríade externa, a troika!

Com a crise do crescimento económico contínuo (e o desmoronar do sonho do progresso ilimitado, que se associa à sociedade de consumo), a falência da austeridade inevitável (a austeridade não é a terapia mais indicada para este sistema, que se alimenta sempre de mais consumo), resta, pois, a frágil democracia, cada vez mais identificada (ou acantonada?) ao conjunto de rituais que lhe dão forma, mas já quase despojada de conteúdo e, por isso mesmo, em crescente descrédito. Mesmo assim, se (ou quando?) esta falhar – ou se esgotar – qual a alternativa?

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O que sobra do dia em que Merkel passou por Lisboa (com recurso às analogias)


No dia em que a imperatriz Merkel passou por Lisboa muita coisa foi dita, pouca coisa aconteceu – para além do aparato policial nas ruas. Mas uma frase de Passos Coelho, questionado no Forte em que ambos estiveram entrincheirados por receio da ‘populaça’, parece sintetizar bem toda a política que afanosamente prosseguem e tentam impor. Respondeu ele, confrontado com a persistência de uma política que vem apresentando resultados tão negativos e recorrendo à sempre útil analogia da saúde que “não podemos culpar o remédio (?) pelo estado do doente”!

À parte o destrambelho da frase, esta resposta é deveras paradigmática do estado de espírito destes perigosos fanáticos, a dúvida que subsiste é se tal sentença foi proferida com intenção ou se tratou de um descuido, daqueles em que, sem querer, foge a boca para a verdade. Seja como for, as convicções e os propósitos que animam a política deste (des)governo estão lá, do género ‘gato escondido com o rabo de fora’. Temos assim que, segundo Passos, a sua terapia para a crise (financeira, mas também económica, social e política) não é susceptível de contestação. Mas se a culpa do ‘calamitoso estado a que isto chegou’ não é da terapia, então só pode ser do doente, pois, pasme-se, ‘recusa’ curar-se... com esta terapia!

Como é óbvio, em dia de tantos discursos e sentenças, esta não foi a única afirmação digna de ser comentada. Retive ainda aquela de Passos de que a posição dos que contestam a política de austeridade em Portugal é minoritária – não obstante as claras indicações de rejeição sugeridas pelas sondagens (tão avassaladoras que não há margem de erro possível) e os esmagadores protestos de rua, a começar pelo de 15/Set.! Ou aquele mimo, tão sintomático do quão perigoso este (des)governo se está a tornar, de que aceitar a ideia da renegociação seria admitir o falhanço das suas políticas pelo que, perante a negação da existência de alternativas, isso significaria acentuar ainda mais a austeridade.

Nesta delirante sucessão de conceitos, o que mais sobressai é a desfaçatez como se transmite, sem pudor e até sem nexo, uma visão completamente invertida da realidade. À hora a que tinha lugar este pífio espectáculo de irrealismo ideológico (ainda que apresentado sob a capa de um irredutível pragmatismo) e não muito longe dali, no protesto que aguardava a dupla Merkel-Passos junto ao CCB, o músico e cantautor Carlos Mendes ilustrava para uma televisão o estado actual desta política recorrendo a uma outra analogia extraída da sua própria experiência em palco.  Disse ele que, quando o público não reage ou chega ao ponto de patear a actuação do artista, este apenas tem duas saídas: ou muda a música ou sai de cena!

Perante a pateada monumental com que este governo é recebido aonde quer que se desloque; perante a rejeição quase unânime da orientação política que nos desgoverna; perante o óbvio desastre económico e social para onde quer empurrar o País, Passos recusa mudar de ‘música’ – de política – ou sair de cena. Só resta mesmo uma saída: o País empurrá-lo daqui para fora – ou seja, cada um de nós! Antes que seja tarde demais para todos

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A visita escoltada dos falsos amigos


A sra. Merkel, diz Passos e o seu (des)governo, faz parte daquele ‘grupo de amigos’ que, reunidos na troika, 'ajuda' Portugal no âmbito do designado ‘memorando de entendimento (!)’. A sra. Merkel é, pois, na opinião deles, ‘amiga’ de Portugal. A sra. Merkel, ‘amiga’ de Portugal ( na opinião deles, claro), deslocou-se esta segunda-feira, 12 de Novembro, ao País de que se diz, presumo (mas não tenho a certeza), também amiga. Para receber a ‘amiga’ Merkel, contudo, o Governo sentiu necessidade de montar uma das maiores operações de segurança de que há memória em Portugal.

Eu pensava, antes deste curioso mas bem simbólico episódio, que os amigos, precisamente porque o são, dispensavam qualquer protecção, quando muito uma discreta vigilância para prevenir eventuais actos tresloucados (que podem acontecer sob múltiplos pretextos e em qualquer lugar), nunca por nunca os enormes meios de segurança postos agora no terreno. Os amigos, quando o são verdadeiramente, são recebidos em festa e a manifestação dos afectos são a maior prova da sua segurança.

Dou comigo, confesso que pouco ou nada versado em questões de segurança, a colocar-me a questão: então se os amigos são acolhidos com tal aparato de segurança, quando se tratar de receber uma qualquer outra alta individualidade, porventura menos amiga – a diplomacia, por vezes, a isso obriga – qual será o nível de segurança que se estabelecerá? As Forças Armadas em peso, Exército, Armada e Força Aérea, terra, mar e ar em alerta máximo? É óbvio que não. O que este (des)governo conhece por experiência própria é o tratamento dado aos falsos amigos. Porque tem sentido na pele o que é ter-se apresentado nas eleições como ‘amigo’ e rapidamente desmascarado como falso, trapaceiro, perverso, nefasto. Porque pior que os inimigos, são os falsos amigos!

E sabe, sobretudo – sente-o sempre que tenta pôr o nariz de fora – que o povo destrinça bem onde estes se encontram, não perdendo uma oportunidade de o demonstrar. Por isso este (des)governo age em conformidade, rodeando-se da máxima cautela e de todas as seguranças. Nem era necessário o anúncio das diversas manifestações de protesto anunciadas para hoje para o alertar para o perigo que corre esta ‘sua amiga’, a quem servilmente se submetem, na expectativa de, através dela, melhor poderem aplicar as suas políticas de suporte à rede de interesses que representam. Perfilados, ela e eles, por trás dos enigmáticos homens de negro da troika, aprestam-se a impor a toda a Europa as regras de conduta mais favoráveis ao entrincheiramento desses interesses.

Em Merkel, bem ou mal, o povo vê personificada a política de que tem sido vítima inocente, os malefícios de uma austeridade que se demonstrou totalmente inútil – pelo menos na perspectiva dos objectivos que explicitamente visava. Porque, importa afirmá-lo sempre, a austeridade imposta como contrapartida do dito ‘apoio financeiro’ consubstanciado no famigerado ‘memorando de entendimento’, reduz-se a extorquir recursos do povo trabalhador e a transferi-los para misteriosos mercados (!), a pretexto de compromissos assumidos pelo País. A dita ‘ajuda’, afinal, mais não é que a forma encontrada pelo poder financeiro mundial (europeu em especial) de garantir, com significativo retorno de juros, a recomposição das suas posições abaladas na sequência da crise das dívidas, contraídas na maioria das vezes para aquisição de bens produzidos sob controle desse mesmo poder!

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bestas de carga e bestas quadradas



O polido Sr. Ulrich, banqueiro com pergaminhos e nome na praça, decidiu chamar aos portugueses ‘bestas de carga’. Não exactamente nestes termos, claro, afinal trata-se de pessoa de trato fino e verbo cuidado, obrigado por formação, posição e porventura até ascendência (o nome estrangeirado assim o faz supor) a tornear as intenções, a metaforizar as ofensas. O que ele disse mesmo foi, interrogando-se sobre se o País aguenta ainda mais cargas de austeridade – ‘Ai aguenta, aguenta’, ter-se-á expressado deste modo – o que, traduzido em português vernáculo e vertido para as pessoas, dá exactamente aquela expressão. Mas se os portugueses são tratados como ‘bestas de carga’, na opinião firme e abalizada do impoluto (?) banqueiro, então ele assume-se, na mesma linguagem vernácula e chã, não como vulgar ‘besta de carga’ (pois não suporta ‘carga’ nenhuma e a dos restantes portugueses não lhe pesa cheta), mas como rotunda ‘besta quadrada’! Recorro ao exemplo dos Yurok para explicar o ‘quadrado’.

Os Yurok eram (como estudado por etnólogos vai para mais de meio século!) um povo primitivo, que habitava nas margens do rio Klamath, algures na América (Califórnia do Norte). Toda a vida material e social deste povo se encontrava imbricada e dependente do rio, a ponto de a sua própria percepção geométrica do mundo ser influenciada pela morfologia física envolvente desse rio, de configuração cilíndrica por força da densa vegetação que cobria as suas margens e se prolongava por todo o leito do mesmo, formando um arco compacto. E assim, ao contrário da habitual visão tridimensional, aquela gente, com uma visão muito fechada do universo, desenvolveu uma concepção da realidade na base de uma estrutura... tubular! A nossa herança euclidiana reage à descrição, é certo, mas para quem se habituou a aceitar como natural a diferença, fará o esforço de compreender que existem culturas onde o próprio espaço físico é percebido de modos diferentes do nosso.

A etnologia, bem como as disciplinas afins da antropologia, da sociologia, da psicologia, são áreas a que o ilustre banqueiro pouco ou nenhum crédito dará. Os seus créditos são apenas de carácter financeiro, quando muito socorrer-se-á da economia – daquela ‘teoria económica’ tão científica, tão isenta, tão exacta que até pede meças à que é vista como a mais exacta das ciências, a matemática (longe, portanto, da denominada ‘economia política’ ou da perversa tendência de a integrar nas denominadas ciências sociais, também ditas ‘ocultas’) – para melhor poder argumentar em favor das suas teses. Vive assim fechado, também ele, num mundo à parte (só dele e de mais uns quantos exclusivistas), ostensivamente ignorando a realidade que o(s) rodeia, arrogantemente acreditando que todo o mundo pensa, vive e sente como ele(s), parasitando, afinal, as vidas dos que desprezam.

A imagem que me ocorre, então, é a daqueles funcionários chineses obrigados a fazer testes de aptidão para a polícia com a cabeça enfiada numa caixa de forma cúbica – para não poderem copiar, para melhor se concentrarem no exercício..., pouco importa aqui o motivo, apenas retenho o episódio para melhor ilustrar a posição do estimado Sr. Ulrich, que assim se vê ‘obrigado’ a olhar em frente, sem se ‘distrair’ com os dramas à sua volta, a sua visão lateral ‘limitada’ aos interesses financeiros de um lado e à teoria económica do outro (longe da ‘economia política’, claro, vade retro).

Eis, pois, a razão de, com toda a propriedade e sem risco de tal vir a considerar-se ofensivo, se dever chamar ao refinado banqueiro Sr. Ulrich ‘besta quadrada’. Ao ter classificado os portugueses, naquele jeito ao mesmo tempo peremptório e manso, de ‘bestas de carga’, sendo ele – até ver! – português, mas sem canga nem carga, de besta não se livra, o resto do epíteto advém-lhe da sua visão fechada nessa espécie de caixa cúbica onde, para proveito próprio, enterrou a cabeça e que o obriga, à semelhança da visão tubular dos Yurok, a manifestar um pensamento limitado – no caso, ‘quadrado’!

E, já agora, profundamente ofensivo para os portugueses que lhe merecem tanto desprezo. Pois até a aceitação da diferença tem limites. Fraco consolo, é certo, para tão ruim defunto!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Aldrabice e voz grossa, na marginalidade do poder do mercado


Tem vindo a notar-se, ultimamente, uma alteração de registo na forma de comunicação do Governo – a começar pelo Primeiro Ministro – sempre que interpelado em público, seja em declarações aos órgãos de comunicação social, no Parlamento ou em quaisquer actos públicos. Até agora imperava o ritmo pastoso e monocórdico do Ministro Gaspar ou o tom melífluo, quase padreca, de Passos Coelho. Mas por nervosismo ou estratégia de comunicação, suas excelências decidiram mostrar voz grossa, exibindo laivos de irritação e até arrogância. Rasgar as vestes com ar ofendido, passar à ameaça e à responsabilização alheia pelo desvario de actos de que eles são, sabem-no bem, os principais responsáveis e instigadores. O próprio Ministro Gaspar, sempre tão cerebral e etéreo, em inopinado arreganho que pretendia ser desafiador, ameaçou alterar a voz se o continuassem a questionar sobre assunto (não interessa qual) a que, entendia ele, já havia respondido!

Mais notório ainda, não por acaso, o consenso alcançado em torno da queda dos dois principais tabus da governação: por um lado, a evidência de que a via da austeridade inevitável e sem alternativa não resolve o problema do déficit, antes o agrava; por outro e na sequência deste, que a renegociação do memorando junto da troika – ‘velha’ exigência da esquerda, crime de lesa pátria para a direita, já o PS, como de costume, balança... – de repente passou a ser, além de inevitável, urgente. Entretanto, a relutância do Governo, acantonado na defesa das suas posições, em assumir as consequências políticas destas realidades, permite alimentar a convicção, também cada vez mais consensual, de que assim procede ‘apenas’ em obediência a uma estratégia política de destruição do Estado Social, ainda que o faça em nome da tese liberal da ‘destruição criadora’, acreditando deste modo ser possível revitalizar a estrutura produtiva e social do País.

Esta estratégia política do Governo, é bom referi-lo, sintetizou-a Passos quando, há cerca de um ano, afirmou que ‘só vamos sair da crise empobrecendo’! Os resultados obtidos ao fim de ano e meio de governação exprimem bem todo o conteúdo do Programa político que se inscreve nesse objectivo de ‘empobrecer para crescer’ que o Governo, na sua fundamentalista obediência ideológica, tem vindo a executar meticulosamente: destruição das pequenas e médias empresas, desemprego a disparar para níveis incontroláveis, taxa de pobreza a caminho do terço da população (situava-se, antes deste programa, ligeiramente abaixo do quinto), desigualdade a aumentar, agora agravada por via da menor progressividade das novas taxas de IRS.

No final deste processo, restará aos iluminados governantes – alguns por convicção, a maioria por acomodação (ou cobardia?) – decretarem, sobre a pobreza ‘conquistada’ e na esteira do argumento de ‘o país viver acima das suas possibilidades’, a inviabilidade do Estado Social. Doravante quem recorrer aos serviços públicos, à semelhança dos privados, paga-os! Não há lugar para calões ou distinções (ou direito à diferença), todos iguais perante o dinheiro! Assim se (re)constrói um país novo de acordo com a bíblia liberal! Contra tudo e contra todos!

Porque, acresce dizer, a monstruosa arquitectura desta estratégia ruinosa – ruinosa sob qualquer ponto de vista – foi montada e está a ser conduzida por gente menor, incompetente, falha de senso. Que ascende ao poder, recorde-se, na sequência da maior mistificação da nossa história democrática: nada disto foi decidido pelos eleitores – bem ao contrário! – tudo isto tem vindo a ser veementemente repudiado nas ruas – e ameaça mesmo descambar para outras formas de contestação! E revela-se na ‘clique’ que o lidera: a do PSD (como se sabe, partido de muitas ‘cliques’), com a do sempre prestimoso CDS/PP. Temos, pois, por um lado, a ‘escola PC/Relvas’ – a escola dos troca-tintas, associada à dos fura-vidas manhosos; por outro, o sistema de ‘Portas sempre abertas’ – o CDS mantém-se no Governo e, ao mesmo tempo, na... oposição ao Governo! Está nos genes ‘deste’ CDS, postado no lugar charneira do centrão, piscar o olho ao poder quando na oposição, piscar o olho à oposição quando ocupa o poder. 
  
Esta a componente caseira, marginal e rasteira, responsável pela acelerada ruína do País. Sobre a ‘externa’, decisiva e imperial, já muito foi dito (incluindo as várias teorias da conspiração, como a de uma eventual reconstrução do IV Reich alemão...), mas tudo ainda está por decidir, sobretudo no que respeita à evolução da realidade no contexto desta globalização financeira sem regulação nem controle, cada vez mais entregue aos pretensos automatismos dessa 'utopia negativa' (suicida e criminosa, pois arrasta tudo na sua queda) que se designa por ‘mercado auto-regulado’ – onde não há lugar para o Estado Social, apenas para as funções securitárias de um Estado mínimo!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

As Perversidades e as Alternativas


Começa a ser consensual a percepção de um ‘antes’ e um ‘depois’ do 15 de Setembro passado, que as enormes manifestações ocorridas nesse sábado introduziram um corte decisivo na política portuguesa. É cedo ainda para se perceber, no entanto, todo o alcance desses acontecimentos, até porque nada ainda de substancial se alterou indo de encontro aos objectivos visados por essas manifestações – essencialmente apontados à actual política de austeridade e ao propósito explícito de levar as pessoas a empobrecer, sob pretexto do cumprimento dos compromissos financeiros externos – para além de difusas intenções políticas e da referida percepção geral. A situação parece longe da estabilidade, os acontecimentos sucedem-se de forma ainda pouco perceptível ao observador comum.

Mas uma conclusão parece desde já possível extrair, sobretudo a avaliar pelos resultados de recente sondagem, posterior ao 15 de Setembro: é manifesto o divórcio dos portugueses com os seus políticos e desponta o risco de a própria democracia poder ser posta em causa (87% dos inquiridos revelam-se desiludidos com ela!). Não sendo de admirar tal divórcio, nas actuais circunstâncias, assusta a dimensão radical do fenómeno. E apela a uma reflexão séria não só por parte dos agentes políticos mas de todas as pessoas minimamente empenhadas.

E a primeira conclusão, hoje quase unânime (excepção aos talibãs neoliberais!), é a de que a via seguida até aqui se encontra esgotada: a via da austeridade – e das ditas reformas estruturais, visando essencialmente a desvalorização do trabalho – imposta como alternativa única e inevitável para se reduzirem os elevados défices externos e se recuperar a credibilidade financeira perdida, tendo em vista o acesso, em condições normais e tão rápido quanto possível, aos famigerados ‘mercados’.

Os resultados obtidos, após dois anos de políticas centradas na obsessão austeritária, são bem conhecidos (e, na surpreendente perspectiva neoliberal, ‘imprevistos’!): para além da inevitável depressão económica, da consequente destruição de empregos e da contínua – e insuportável – degradação dos níveis de vida, o efeito perverso de tais medidas estende-se – pasme-se! – ao seu objectivo central, a redução dos défices, que não foi atingido. Perversidade que atinge até o seu maior êxito: o alardeado equilíbrio da Balança Comercial é conseguido sobretudo, do lado das importações, à custa do esmagamento do consumo – do nível de vida das pessoas; do lado das exportações, pelo aumento extraordinário das vendas de ouro – a que as famílias recorrem para sobreviver!

Já em desespero, o poder talibã preparava-se para agravar ainda mais a austeridade – incluindo uma obscena transferência directa de recursos do trabalho para o capital, através da TSU – quando o povo decidiu dizer: BASTA! O poder tremeu, mas não caiu. Preso aos seus compromissos externos (troika) e internos (a rede de interesses servida pela ideologia neoliberal), ensaia agora um atabalhoado recuo, ciente de que se o não fizer, alienará definitivamente todo o suporte popular. A alternativa da austeridade aparecerá maquilhada, mas seguramente irá procurar manter o essencial: o programa de reformas estruturais visando a desvalorização do trabalho e a destruição do Estado Social.

É neste contexto que, não por acaso, surge uma oportuna iniciativa, programada muito antes do 15 de Setembro, mas cujo calendário foi fixado para coincidir com um Outono que há muito se adivinhava quente: o Congresso Democrático das Alternativas que, tal como o nome indica, busca alternativas ao caos instalado. Que vão da ‘simples’ renegociação do memorando de entendimento, ao rompimento com a troika, até à mais radical saída do Euro. Mas importa ter presente, neste processo, que a discussão e proposta de modelos a apresentar não pode, não deve, confinar-se ao domínio económico, arrastados ou não pela crítica às alternativas ditadas pelo poder, pois a solução da crise actual é antes de mais política, tanto ao nível do envolvimento democrático das pessoas quanto das áreas de actuação, nomeadamente a da urgente reorganização social do trabalho, como já por diversas vezes aqui se chamou a atenção. À austeridade para empobrecer não pode corresponder apenas o crescimento pelo consumo – ao neoliberalismo não pode suceder um novo keynesianismo – porque se ‘esta austeridade’ se tornou insuportável e ineficaz, ‘este consumismo’ demonstra-se insustentável.

Mesmo admitindo no imediato o recurso a medidas de carácter expansionista, como forma de ocorrer às extremas necessidades actuais das pessoas (desemprego, em especial), não deve perder-se de vista que a solução passa, antes de mais, por se encontrar uma alternativa política global ao instalado domínio absoluto dos mercados (mais ou menos autorregulados). Sintomática a perversa apropriação do termo ‘austeridade’ como suporte à política para ‘empobrecer’: o sentido de frugalidade e recato, avesso ao desperdício e à ostentação, que normalmente se lhe associa e lhe dá conteúdo, visa aqui, sob a capa de virtude incontestável, a aceitação acrítica das políticas contra o trabalho e o Estado Social.

sábado, 8 de setembro de 2012

Os cobradores sem fraque


Não fora o óbvio significado por trás da pose hirta e muda, tornar-se-ia deveras caricato, porventura até hilariante, o ritual que por estes dias e a todas as horas as televisões nos impõem de um bando de pessoas, a que se convencionou chamar ‘troika’, movimentando-se de um lado para o outro, aparentemente apenas para, através dos ecrãs, nos recordarem a missão que cumprem. Não se apresentam de fraque, mas tudo o resto condiz com o estereótipo construído em torno dessa indumentária, no caso actuando em nome dos credores externos de que são meros mandatários. E, sobretudo, em nome dos que a nível interno, por conta de uma ideologia que ameaça a sustentabilidade do planeta e escondidos atrás de tão sinistras figuras, de forma explícita se propõem, sem olhar a meios (custe o que custar) nem a métodos (não há alternativa), empobrecer o país (pois, dizem, vive acima das suas possibilidades) e destruir a vida das pessoas – na expectativa pessoal de garantirem, no imediato, o conforto das suas e a prosperidade dos seus!

Certo é que à sombra das ditas ‘imposições da troika’, avança e implanta-se o programa neoliberal. É hoje mais que evidente (confirmado por notícias vindas a público há alguns meses) que o conteúdo do famoso memorando de entendimento foi preparado pelo ‘think tank’ neoliberal local, constituído essencialmente pelos respectivos núcleos da U. Nova e da U. Católica, que terão feito chegar à troika as medidas que, em seu entender, importava aí incluir. Afinal o famigerado plano de reformas que alguns dos habituais comentadores se apressaram a atribuir à agilidade mental dos senhores da troika – por haverem conseguido gizar em apenas cerca de um mês documento tão minucioso, revelando um conhecimento específico notável! – fica a dever-se (o seu a seu dono), não à inspiração divina da entidade externa, mas à pindérica (mas bem nutrida) ‘intectualite’ neoliberal interna e à sua agarotada versão política no PSD de Passos.

A realidade, porém, teima em destoar dos bem elaborados modelos teóricos, as políticas de austeridade têm-se saldado por resultados desastrosos a todos os níveis. A lógica desumanizada das estatísticas – usada como instrumento de propaganda pelos Governos na defesa das suas opções políticas – ameaça transformar-se, ela própria, na via sacra de um longo martírio. Antes de mais, é certo, para as vítimas reais de tais elucubrações, os desempregados, mas agora a manipulação dos números parece querer voltar-se também contra os seus próprios fautores. Perante a dimensão, estatística e sobretudo humana, do descalabro a que conduziu tal política e à medida que se vai percebendo que até a meta central do déficit público ficará muito longe do objectivo, cresce, um pouco por todo o lado, a exigência em se conhecerem os responsáveis pelo rotundo falhanço. Para o PS falhou o Governo, para o Governo a culpa ainda é do passado (reduzindo este ao ‘desaparecido’ Sócrates). Já o PR responsabiliza a troika por não saber fazer contas! E até esta obscura entidade desta vez não aguentou ficar calada e clama que a responsabilidade não é sua, é do Governo.

Este bizarro exercício de passa-culpas, contudo, não pode iludir o dado que mais importa realçar: a famigerada agenda liberal, há muito programada, finalmente encontrou as condições ideais para ser executada e está a concretizar-se de forma célere e eficaz. E sob os escombros do destruído Estado social e do liberalizado mercado do trabalho pretende erguer-se a utopia de uma sociedade liberta da opressão do Estado – a teoria do Estado mínimo – seja da opressão totalitária (política) ou da simplesmente burocrática (no vão pressuposto de assim acabarem os gastos supérfluos!). Porque é o Estado mínimo o garante do ambiente propício à expansão dos seus interesses e negociatas.

A irracionalidade do modelo vai ao ponto de, perante a ‘rigidez’ dos resultados obtidos (ou a dificuldade da realidade em se ajustar à teoria), ter sido sugerido à Grécia pela respectiva troika, o aumento do tempo de trabalho para seis dias por semana – numa altura em que o desemprego já ronda os 25% (1/4 da pop. activa grega!). Mais que a ignóbil provocação, o que a formulação de tal proposta indica é o desnorte destes políticos liberais, pois a concretização deste modelo não parece estar a resultar como os seus teóricos o terão idealizado e ardentemente desejado.

Daí o desesperado recurso à imposição de medidas que representam um retrocesso histórico monstruoso. Ao arrepio até da única que poderia inverter, de forma racional e sustentável, a tendência crescente de desemprego – a redução do tempo de trabalho – mas que, nas condições actuais, envolve uma impossibilidade, pois isso implicaria desviar os recursos que alimentam o exclusivismo dos seus requintados modos de vida, de que voluntariamente nunca irão prescindir.

Em Lisboa passeiam-se, sem fraque e sem vergonha, os cobradores de promessas. De promessas feitas em nome da fé na austeridade redentora, desfeitas pela infiel realidade. 

Depressão ou revolução?


O dia de ontem desencadeou uma tempestade de emoções. O anúncio daquelas medidas por parte do rapazola e em tom padreca (mas com pose de estadista) a ninguém deixou indiferente. Após o anúncio, o desânimo. Seguiu-se a indignação. Por fim, a revolta. Nunca antes tinha acontecido, de forma tão ostensiva e provocatória, tirar aos pobres para dar aos ricos!!! Ainda a habilidade manhosa de acontecer mesmo antes do jogo de futebol. A provocação atinge, em particular, os juízes do Tribunal Constitucional.

Agora, resta ver se os portugueses se resignam a cair na dupla depressão, económica e psicológica, ou se admitem enveredar por outras vias, incluindo – porque não? – a da revolução. Os próximos dias, não sendo ainda decisivos, irão ser com certeza bem elucidativos. Nas reacções e nas tomadas de posição. Por parte de todos os intervenientes (incluindo, a seu tempo, o Tribunal Constitucional), mas sobretudo pelos que mais lhe vão sofrer os efeitos. 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

A oportunidade perdida de uma crise


A obsessão pela dívida e pela via da austeridade como solução inevitável e única (a tese do ‘não há alternativa’) para a mesma, conduziram o projecto europeu à beira do fracasso. O Euro – sente-se – está preso por um fio e os comentários actuais dos sempre disponíveis serventuários do regime (seja qual for a tendência que o caracterize) centram-se, num quase orgíaco ritual necrófago, em sofregamente anteciparem o momento da sua extinção, mais do que em delinearem alternativas ao caminho que nos conduziu aqui. 

Do outro lado, mais avisados e recorrendo ao sempre salutar exemplo da História (o exemplo da Grande Depressão é cada vez mais invocado para justificar uma alternativa à conduta seguida), renascem as teorias keynesianas para dizerem que tudo o que tem estado a ser feito até agora na Europa para sair da crise, através da imposição da referida via austeritária e contracionista, tem sido precisamente o contrário do que deveria ter sido feito: aposta decidida numa política expansionista, como no início da crise, então para acorrer ao colapso provocado pelas despesas e dívida privadas, agora no investimento público para relançar a procura e combater o desemprego. Em conformidade, o resultado é o agravamento da crise e, caso nada se altere, o inevitável desfecho do fracasso anunciado.

Uns e outros, porém – os que têm aprofundado a crise (pela via da austeridade punitiva ou redentora) ainda que digam pretender sair dela, e os que peroram sobre modos alternativos para a ultrapassar – todos parecem ignorar um aspecto que, por força da crise, mais evidente se tornou: a escassez de recursos. Os obcecados pela dívida, é certo, falam em escassez, mas apenas dos recursos financeiros, delapidados num ápice, sabem-no bem, após o rebentar das bolhas imobiliárias (EUA, Irlanda, Espanha,...), como forma de suster o inevitável contágio à Banca (para onde foram canalizados então todos os recursos disponíveis) e, por fim, na crise social que se lhe seguiu e nas crescentes ajudas públicas que tem exigido.

Do que aqui se fala é, pois, da escassez de recursos naturais, todos os dias mais evidente, mas agora ainda mais exposta pela própria sequência da crise e seus efeitos na produção e comércio alimentar. A crise poderia então ter actuado como aviso para os limites com que estamos confrontados, servido de plataforma para se questionar a tese do ‘crescimento contínuo’ a que o sistema capitalista obriga (e sem o qual as crises se instalam), para tornar consciente a necessidade de se evitar o desperdício. Para impor a lógica de uma mais racional gestão global e individual da riqueza. Mas assiste-se exactamente ao contrário: todos os discursos destacam a importância do crescimento como única solução para a crise; sob pretexto de se reduzir a despesa, corta-se nos direitos essenciais (e, de algum modo, legitima-se o desperdício); fomenta-se a concentração da riqueza em lugar da sua indispensável maior redistribuição.

Enquanto os austeritários conduzem o Mundo, através das políticas impostas à Europa, para um colapso de consequências imprevisíveis (ainda que a pretexto do que designam por ‘austeridade expansionista’, crentes na retoma económica associada à confiança restaurada por via dos cortes na dívida), as medidas propostas pelos keynesianos, a ser adoptadas (e parece cada vez mais difícil que o sejam, pois isso implicaria aos ‘instalados’ abdicarem dos privilégios conquistados – ou extorquidos?), os seus efeitos não tardariam a esgotar-se, com o mundo a mergulhar em nova crise. Só mesmo uma radical inversão da orientação económica actual poderá abrir perspectivas para uma saída sustentável desta situação.

As ‘economias livres de mercado’ (melhor dizendo, de ‘mercado livre’!), como se sabe, entram em crise quando param de crescer ou crescem abaixo de um determinado limite (em regra, superior a 1%), mesmo sem o auxílio de outros factores, como sucedeu na actual. Era tempo, pois, face à experiência histórica anterior e ao que a teoria já consegue explicar, de se encontrar uma forma de escapar à armadilha do crescimento contínuo de que se alimenta o sistema capitalista – em oposição aos limites naturais do planeta. Que terá de passar, inevitavelmente, pela alteração radical da organização social baseada na relação salarial e no mercado do trabalho, procurando ajustá-la às exigências tecnológicas actuais e às necessidades reais das pessoas e das sociedades. Mas isso equivale por dizer ter de se apostar, por exemplo, numa forma radicalmente diferente de gestão do tempo de trabalho – tema já inúmeras vezes aqui trazido, mas em que nunca é demais insistir.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

As velhas cruzadas dos novos pregadores


A crise, já todos o sabem, mexeu (está a mexer, vai continuar a mexer...) com a vida das pessoas. Não de forma igual para todos. O que para a maioria se traduz em retrocesso e grandes dificuldades, representa para uns poucos a consolidação do seu poderio económico e social. A política, essa, parece alheia ao desenrolar dos dramas pessoais nela originados, relegada para adorno de decisões pretensamente técnicas e objectivas, manietada na lógica de uma ideologia que se afirma anti-ideológica. Manipulada na defesa de interesses pessoais ou de grupos minoritários.

Na génese desta crise encontra-se um facto, pouco destacado, mas de enorme importância na explicação da forma como foram sendo criadas as condições que a ela conduziram, as circunstâncias da sua eclosão e, agora, o emaranhado de situações e a rede de interesses que a perpetua e torna impossível ultrapassá-la. Trata-se da ‘tomada do poder das empresas pelos gestores’. Com o salutar propósito de introduzirem maior racionalidade na actuação das empresas, assumiram o comando da gestão e rapidamente passaram ao controle da decisão, neutralizando (na prática, destronando) os seus proprietários.

A pretexto da ‘criação de valor para o accionista’ e sob o genérico rótulo de ‘técnicas de gestão’, foram introduzindo um conjunto de regras orientadas essencialmente para o seu benefício pessoal. Atribuíram-se si próprios (ou recorreram, para dar menos nas vistas, a ardilosos, mas bem detectáveis, esquemas accionistas cruzados), remunerações obscenas com base em pretensos critérios técnicos, por via da indexação aos resultados obtidos no exercício (a eficácia do imediato sobre a gestão eficiente, pois a longo prazo surgirá, inexorável,... a crise!). Invadiram o espaço político, impuseram a sua forma de gestão aos serviços públicos (que passaram a ser geridos como empresas) e rapidamente se instalou a promiscuidade mais completa entre negócios e Estado, na admissão de pessoas ou na celebração de contratos. A corrupção e o tráfego de influências passou a ser encarado como natural. Em definitivo, a política ficou sequestrada nas malhas dos interesses privados e dos negócios.

Pretender desmontar agora este edifício, laboriosamente erguido ao longo dos últimos trinta anos, pondo em causa os benefícios auto-atribuídos, é tarefa que se apresenta quase impossível, dada a teia de relações estabelecida, dos negócios à política. Mais fácil será o edifício ruir, arrastando todos na derrocada fatal do que os actuais decisores prescindirem das mordomias obtidas e a que se consideram com pleno direito (até por via das normas legais arquitetadas para as alcançar). A ideologia neoliberal que incentiva o empreendedor criativo – fomentando a competição desregulada (ainda que se apregoe o contrário) e a ganância, em detrimento da cooperação e da solidariedade – enquadra e justifica bem toda a agressividade destes comportamentos aparentemente excessivos.

É este, de facto, o grande papel reservado ao actual primeiro ministro, o de arauto e defensor da causa liberal (a sua única formação – mal preparado em tudo o resto!) na impossível missão de justificar a austeridade imposta. Reduzido na capacidade de decisão, refugiado na defesa intransigente do ‘memorando da troika’, cuja política emana directamente de Berlim, Passos desdobra-se em intervenções, nas mais diferentes situações e lugares. As suas conhecidas gafes – o apelo à emigração, o desemprego como oportunidade,... – mais não são, afinal, que doutrina vertida dos manuais da economia liberal, nada de surpreendente, pois.

O ideólogo sobrepõe-se ao político, o missionário prosélito ao estadista sensato. E, acrescente-se, mais em nome de interesses do que causas. A insuportável pose de pregador e a alucinada entoação doutrinária de Passos, o tom convicto que não admite dúvidas nem se perde em incertezas no caminho traçado rumo aos objectivos definidos, denota bem o espírito de missão que o anima. Tal como nos idos dos descobrimentos, em que a ‘dilatação da fé’ justificava e servia de cobertura à mais prosaica ‘expansão dos negócios’, também agora a cartilha liberal esconde e legitima interesses instalados. O pretendido efeito anestesiante, contudo, está já a esgotar-se e até o pregador dá mostras de cansaço, de enervamento, de falta de compostura – o polimento da sua esmerada formação começa a esfarelar! Resta-lhe ainda a via da ‘intentona dos pregos’, na senda do seu frenético mestre e tutor.

Delapidada sem glória nem proveito a tão gabada paciência dos portugueses, a retraída apatia parece agora dar lugar à ameaçadora revolta. O fresco Verão pode trazer um Outono quente!

domingo, 8 de julho de 2012

Eu, se fosse alemão... (Parte 2)


Se algum mérito é possível descortinar nesta crise, ele é o de ter levado as pessoas a pensar para além da mera gestão do quotidiano. A questionarem as condições das suas existências, a não darem por adquiridos todos os benefícios alcançados, pessoais e sociais. A terem de restringir despesas, algumas certamente supérfluas. A procurarem explicações para aquilo que tem vindo a afectar, de forma mais ou menos intensa, as suas vidas. Na maior parte das vezes, é certo, servindo-se dos clichés ouvidos nos ‘media’ pelos comentadores de serviço ao regime, ainda assim bem além da modorra de telenovelas, futebóis, prédicas e demais rezas (religiosas ou laicas).

Um desses clichés mais ouvidos e lidos, já antes abordado neste blog, é o que, no quadro de uma UE composta pela enorme diversidade de países que a integram, tenta explicar o comportamento alemão na actual crise, na versão ‘Merkel’ (felizmente há outras versões), com a hipotética permuta de posições: ‘eu, se fosse alemão, também não gostaria de ver o meu dinheiro canalizado para suportar o défice de países gastadores’. A lógica inscrita neste aparente irrefutável – e insistente – argumento assenta pelo menos em dois falaciosos mitos: o mito do país gastador e o mito do país salvador!

Pretende-se transmitir a ideia, por um lado, que as dívidas soberanas (só lhes importa, por motivos óbvios, destacar estas) são sobretudo o resultado do excesso de gastos das políticas públicas, nomeadamente no domínio social (as teses correlativas do ‘viver acima das possibilidades’ e do consequente ‘excesso de garantias e regalias do Estado Social’); por outro, que tais desregramentos só podem ser resolvidos ou pelo recurso à via da austeridade própria ou suportados pela generosidade alheia dos ‘altruístas’ (!) países de ‘contas certas’, bem mais disciplinados e organizados.

A evidência de gastos públicos desnecessários, improdutivos ou até mesmo fraudulentos em algumas situações, não pode nem deve iludir que o essencial da dívida por trás da actual crise – e da dimensão por esta atingida – foi gerada pela roleta especulativa dos mercados, por inépcia dos responsáveis pela condução política da UE. Na ausência de órgãos próprios dotados de suficiente capacidade de decisão (e de personalidades de reconhecida aceitação e idoneidade!), a Alemanha, enquanto principal potência económica no seio da União, foi assumindo e conseguiu fazer impor a sua liderança, contando nesse propósito com o apoio manco da França de Sarkozy.

Ora, na dita versão Merkel, a liderança alemã tem sido orientada apenas para o que considera ser o seu interesse particular, indiferente aos interesses comunitários, com total desprezo pelas regras básicas de uma União Monetária e de uma Moeda Única, pelo que a eventual (e cada vez mais provável) desagregação da zona Euro irá ter fortes implicações negativas também sobre a própria Alemanha, como o referem insuspeitos estudos efectuados (UBS) antecipando já esse evento.

Se hoje parece claro que o descalabro a que se chegou poderia ter sido evitado caso a liderança alemã tivesse, no exercício do poder de que dispunha, actuado logo no início impedindo a escalada especulativa (que permitiu, é certo, a recapitalização da sua banca sem os apoios financeiros agora anunciados para outros sistemas), mais óbvio se torna ainda o desastre económico (para não falar do social) provocado pela alternativa da austeridade imposta na base da política do ‘cada um por si’ (ou do ‘salve-se quem puder’) e que ameaça alastrar em bola de neve ao conjunto dos países da zona Euro. Que ameaça mesmo a pretensa prosperidade de aço da própria Alemanha, uma vez que esta assenta basicamente no poder aquisitivo, cada vez mais atrofiado, dos restantes países europeus.

A Alemanha caminha assim para se tornar em vítima dela própria. O facto de dispor de poder e não o ter exercido no momento oportuno, não abona nada o seu propalado rigor e competência. Mesmo que o haja feito de forma deliberada visando propósitos que não lhe convém explicitar publicamente, o resultado observado no conjunto da UE – prolongada recessão económica (tornando cada vez mais difícil as condições de resolução das dívidas), contínua degradação social (destruição de postos de trabalho, redução de direitos essenciais,...) – parece demolidor sob qualquer prisma.

Independentemente das estratégias assumidas ou dos propósitos declarados, resta, no final, a percepção cada vez mais generalizada de que o objectivo último desta escalada é a destruição do Estado Social à sombra de cortes na despesa dita insustentável, a par da desvalorização do trabalho por conta da mais obsoleta versão da competitividade externa e do mirífico reforço das condições de atracção do investimento estrangeiro – sem que tenha conseguido resolver qualquer dos objectivos que se propunha, apenas tendo contribuído para acentuar as dificuldades da vida da maioria das pessoas e aumentar as desigualdades sociais, falando-se já num claro retrocesso civilizacional.

domingo, 10 de junho de 2012

Privilégios e realidades: defender o presente, pondo em risco o futuro


Já não há como iludi-lo. Cada vez ganha mais consistência na realidade vivida a dúvida generalizada sobre a bondade das medidas postas em prática para debelar ‘a crise’. Os resultados prometidos com a austeridade imposta não foram alcançados, os efeitos colaterais demonstram-se desastrosos sobretudo a nível do crescimento e do emprego, mas o mais lamentável é que o próprio objectivo prosseguido de equilíbrio das contas públicas não foi atingido, antes – pasme-se – se agravou! Cresce a convicção de que tudo o que tem vindo a ser feito é apenas a continuidade de práticas antigas, afinal está a procurar-se resolver o problema com o receituário que o criou. Ao mesmo tempo, cresce, igualmente, a sensação de que se torna necessário mudar as velhas fórmulas que conduziram o mundo ao estado em que ele se encontra, inventar novos métodos, porventura até um modo de vida diferente.

Não há nada mais deprimente do que ver os economistas (políticos ou académicos) procurarem, afanosos, resolver a crise com os mesmíssimos meios que a provocou. E, assim, multiplicam palpites sobre a reanimação da economia, desdobram-se em sugestões sobre os necessários estímulos às empresas (estímulos encarados de forma diferente, conforme as tendências e as escolas), lançam apelos ao empreendedorismo (conceito que se transformou numa espécie de abracadabra dos tempos modernos). A maioria deles, reduzidos à função de meros contabilistas, manuseiam números e estatísticas cuidando, deste modo, estar a intervir na realidade, procurando moldá-la às suas próprias convicções e desejos, não se coibindo, pois, de anunciar a saída da crise para mais ou menos breve. Afinal, não fazem as crises parte integrante do desenvolvimento do capitalismo?

Quando em 2008 a crise rebentou, súbita e violenta (apesar dos prolongados ‘ameaços’, ninguém se atreveria a augurá-la tão agressiva), a sensação geral após a queda do Lehmann’s foi a de que tudo poderia então acontecer, incluindo a derrocada do sistema. Cedo se constatou que ‘esta crise’ não era como as outras, ou apenas mais uma ‘vulgar’ crise de crescimento, ‘esta crise’ punha ela própria em causa o crescimento. Não obstante o enorme incremento da produtividade – e seguramente por causa dele – sucessivas crises foram sendo desencadeadas: com a subida dos custos de capital das empresas, a eliminação de postos de trabalho, consequente aumento do desemprego, redução da procura (agravada pela destruição da alternativa do crédito),... E sem crescimento, já se sabe, o capitalismo não sobrevive.

Acresce ainda o facto de ‘esta’ crise económica se conjugar com uma crise ambiental (ou ecológica) e uma crise de recursos (ou a crescente consciência de que estes são limitados, por natureza, a começar na cada vez mais sensível crise energética). É esta conjugação de ‘crises’, de repente transformada numa imensa crise social global, que permite a percepção de se estar em fim de época, de que se torna necessário questionar a dinâmica e os parâmetros básicos em que assenta toda a vida social, de se caminhar para outro modo de vida, cujos contornos, porém, se torna impossível descortinar, para já.

Neste contexto, a insistência nas velhas fórmulas, contra todas as lógicas, incluindo a da sobrevivência, numa aparente descontrolada fuga para a frente, tem o sentido da defesa, ainda que suicidária, dos privilégios alcançados pelas elites no poder e que dificilmente aceitarão perder de forma voluntária. Pode até representar uma desesperada falta de alternativa, mas não augura nada de bom para o futuro. Não só agrava todos os problemas que se propõe e pretende resolver – tanto a nível económico, quanto ambiental, social,... – como sobretudo implica um retrocesso em algumas tentativas que vinham sendo desenvolvidas – no domínio das energias renováveis, na preservação dos recursos, na protecção do ambiente, até na evolução da tendência para o decrescimento,... – com vista à exploração de vias alternativas às desgastadas fórmulas que nos trouxeram até aqui, permitindo, a seu tempo, um salto menos atribulado para um novo paradigma de organização social.

Ainda que o não saibam (fingem não o saber), o mundo ‘deles’ já acabou. Esforçam-se por o conservar, reparar-lhe os rombos, porventura venderão cara a mudança. O futuro ir-se-á construir, é quase certo, sobre o monte de escombros que resultar deste obstinado desvelo na defesa desse mundo em extinção. Porque muitas das nossas sedimentadas certezas, muito do adquirido cultural sobretudo ao longo dos dois últimos séculos com a implantação e domínio da sociedade de consumo, está já a ser posto em causa. A começar pelo que de mais estruturante tem a sociedade, a organização do trabalho: a redução drástica do tempo de trabalho permitida pelos actuais níveis da produtividade, conduzem à lógica da redistribuição do tempo disponível na sociedade, impõem uma nova organização do trabalho. O que passará seguramente, apesar das resistências e das explicações ‘metafísicas’ da auto-regulação, pela inversão da tendência que agora se pretende impor de aumento do tempo de trabalho – à revelia desse incremento da produtividade. O resultado pode bem ser o fim da actual sociedade do trabalho.

Sobre o que aí virá, ainda ninguém o consegue antecipar. Será a dinâmica social a determiná-lo!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Hoje e ninguém


ninguém, hoje, dá um centavo (convertendo para o Euro: metade de um centésimo do cêntimo!) pela continuidade de Relvas no Governo. Mesmo entre os seus mais indefectíveis se considera chegado o momento, perante a sucessão de trapalhadas, escândalos e atropelos às normas democráticas, de uma remodelação governamental – antes que a casa venha a baixo! O que ninguém arrisca prever é o que se passará a seguir, ou seja, se o próprio 1º Ministro será capaz de sobreviver à saída desta sua ‘eminência parda’ e ‘factotum’, desta caricatura de um serôdio Mazarino! É bom relembrar que os dois estão tão umbilicalmente ligados na vida política que não se sabe mesmo se é Passos que segura Relvas, se é este que suporta Passos!

Do que já ninguém duvida é da intricada teia de relações que se adivinha por trás de algumas das recentes descobertas no denominado ‘caso das secretas’, bem reflexo do escabroso emanharado de interesses tecido ao longo sobretudo das três últimas décadas, suportado no discurso neo-liberal dos ‘mercados livres’ e em toda a panóplia ideológica que o envolve – da liberalização à desregulação, deslocalização, globalização,... – tudo justificando a nova escalada no processo de acumulação do capital, à custa (já ninguém tem dúvidas, hoje) da brutal transferência de valor do trabalho, pelo recurso aos mais diversos meios, da corrupção ao compadrio, à especulação... Em benefício exclusivo de uma casta de ‘boys’ (das mais diversas proveniências: de Chicago à U. Nova, dos diferentes tipos de ‘maçonarias’ às várias espécies Goldman Sachs,...), cada vez mais minoritária, mas também cada vez mais encarniçada em defender os privilégios alcançados com esta política.

Portugal é tratado como gigantesca abstracção, reduzido a modelo estatístico para ser trabalhado ‘devidamente’ em laboratório, modelado ao sabor dos objectivos pré-definidos pela ideologia da clique dirigente. As pessoas reais, essas, das duas uma: ou são rejeitadas e excluídas por manifesta inadaptação aos parâmetros do modelo (desempregados e outros ‘inadaptados’); ou se encaixam e adaptam, sabendo, no entanto, que apenas uma escassa minoria pode aspirar aos benefícios que o modelo generosamente concede ao escol seleccionado (não mais de 10% do total). Em qualquer caso, a imensa maioria está tramada: ou é excluída liminarmente (integrando o exército de reserva laboral) ou é reduzida à condição subalterna de apoio, quando não adorno, à elite de privilegiados.

Teia de relações que se estende a nível global, bem visível, em especial, no completo desvario em que caiu a política económica europeia. O mais recente desses ‘desvarios’ aconteceu (só podia!) na Alemanha (a mesma onde ainda não há muito havia sido criado um incrível fundo de investimento ‘apostando’ na... morte!), agora com a peregrina (?) proposta da criação de ‘regiões económicas especiais’, versão actualizada dos famigerados ‘off-shores’, os tais que, no auge da crise do ‘sub-prime’ e perante a derrocada eminente do sistema, se dizia (Sarkozy, por exemplo) deverem ser regulados ou até extintos! – dando origem ao mais descarado recuo político destes acagaçados títeres logo que se constatou ser exagerada a notícia da anunciada ‘morte do sistema’!

Sem dúvida, o que melhor caracteriza a política, hoje, é essa desesperada fuga em frente – já ninguém alimenta ilusões, mesmo no grupo de ‘boys’ beneficiado pelos interesses gerados no caldeirão desta desregulada liberalização (gestores, dirigentes, especialistas,...) – em direcção ao abismo! Neste ‘salve-se quem puder’, não surpreende o tom ligeiro e quase displicente como são recebidas e explicadas as conhecidas ‘gafes’ de Passos, atribuídas a alguma inexperiência na comunicação política. Vendo bem, contudo, todas elas – o conselho aos jovens para emigrarem, o empobrecimento inevitável, a pieguice ou o desemprego como oportunidade, para apenas falar das mais mediáticas – mais não são que citações dos manuais da economia liberal, bem sintomáticas, no entanto, do corte com a realidade em que, de forma assumida, este Governo se encontra, crendo deste modo poder atingir ‘a glória’ no final do que propõem seja uma longa e penosa caminhada (assim mesmo!). A ‘ideologia da gafe’, afinal, encerra assim todo um programa político!

De igual modo, o súbito interesse da Lagarde (do FMI) pelas condições miseráveis dos ‘pretinhos da Guiné’ (ou do Níger, ou...) constitui ‘apenas’ mais um grosseiro insulto – pelo ofensivo despropósito, pela insolente hipocrisia, até pelo irrealismo ignorante – às condições escravas impostas pela ‘troika’ (do FMI) à Grécia. A injúria atinge, de igual modo, todos os europeus tratados como servos por esta nova nomenclatura financeira que se arroga o direito de mandar na democracia, colocando-a, sem despudor, antes com grande farronca, ao serviço dos seus interesses particulares. Mas insere-se na mesma lógica da ‘ideologia da gafe’: desfasada da realidade, empenhada num programa político de defesa das regalias alcançadas, mesmo que isso implique a destruição das condições de sobrevivência do próprio sistema. Em suma, da sua própria destruição. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O ‘lebensraum’ dos mercados


Com o termo da II Guerra Mundial e a derrota da Alemanha nazi pensava-se enterrada, senão de vez pelo menos por longo tempo, a teoria do ‘espaço vital’ (lebensraum) que havia estado na génese e servido de argumento (?) para o expansionismo germânico que conduzira à guerra. A própria construção europeia tinha sido iniciada e pretendia actuar como tampão a quaisquer formas de expansionismo, político ou militar, no pressuposto de que era possível e até necessário, após duas conflagrações tremendas a que havia sido sujeita, construir uma Europa única, complementar e solidária (nomeadamente através das políticas comuns regional e social), na diversidade das suas pátrias.

A bondade destes propósitos e o indubitável romantismo dos ‘pais fundadores’ cedo se deparou com as exigências de uma realidade económica dominada por um sistema que se afirma tanto mais eficaz quanto mais espontâneo e liberto de condicionalismos, legais ou outros. De tal modo que, perante a lei do mais forte (o seu princípio basilar), as próprias normas comuns, supostamente neutras e estabelecidas em nome da comunidade de países que a integram, acabam por favorecer os mais poderosos e actuar como colete de forças, quando não mesmo como garrote, dos mais débeis e pequenos.

Demorou pouco a tudo isto ser entendido e, de forma algo estranha, aceite por todos. Políticos e comentadores políticos repetem à exaustão que ‘a realidade é o que é (?) e contra isso nada se pode fazer (!!!)’ (a espúria tese do inevitável e da correlativa ausência de alternativa!). Mais estranho ainda, porém, a parola mas canhestra tentativa de, perante a adversidade, cada um tentar descolar da desgraça alheia, calculando assim melhor poder salvar-se: Portugal não é a Grécia, a Espanha não é Portugal,... Salta-nos à memória o ‘velho’ poema de Brecht: ‘primeiro levaram os comunistas, mas como não era nada comigo, eu não me importei...’ E assim sucessivamente até ser eu a vítima escolhida... quando já não restava mais ninguém a quem recorrer!

Afigura-se oportuno aqui recordar a já ‘gasta’ frase de Marx, quando afirmava que ‘a História repete-se: primeiro como tragédia, depois como farsa’. No contexto da presente crise europeia, denominada das ‘dívidas’ (dívidas resultantes, em boa medida, do financiamento público da crise ‘sub-prime’ gerada pela desregulação financeira!), parece quase irresistível (porventura historicamente abusivo), a transposição para a evolução dos acontecimentos que antecedeu precisamente a II Guerra Mundial, com a agressão da Alemanha por trás da teoria do ‘espaço vital’: primeiro a Áustria (sem reacção séria por parte dos países democratas), depois os Sudetas (com o vergonhoso Acordo de Munique), por fim a Polónia – e só aqui a democracia reagiu, mas já sem tempo para evitar a guerra.

A evolução actual dos acontecimentos parece seguir o mesmo padrão: então a expansão foi feita em nome da ideologia nazi, apoiada na teoria do ‘espaço vital’, protagonizada por uma nação concreta – a Alemanha – utilizando meios bélicos, materiais e humanos, de dimensão nunca antes vista; agora a expansão é feita em nome da ideologia liberal, baseada na tese da ‘austeridade inevitável’, protagonizada por uma entidade abstracta – os misteriosos mercados (com tradução concreta, é certo, no poder financeiro dos Bancos, Fundos, Seguradoras,...) – utilizando furtivos veículos financeiros, os famigerados ‘off-shores’.

A teoria do ‘espaço vital’ parece feita à medida das exigências dos mercados/capital, cuja vitalidade depende da sua expansão/acumulação contínua, feita à custa da transferência agressiva de valor do trabalho. Prestes a consumar-se, por estes dias, mais um desfecho desta agressão: em ambiente quase bélico, anuncia-se o ‘ausschluss’ da Grécia (desta feita não por anexação, mas pela sua exclusão do euro), seguir-se-á Portugal, depois a Espanha... Parece esquecida a longa tragédia que constituiu a Guerra Mundial (em dois episódios) no séc. XX, a história volta, pois, a repetir-se, desta vez como farsa infame! Quando é que os democratas, países e pessoas, entenderão dever intervir para salvar – como em 1939! – a democracia?

Até agora a maior dificuldade tem estado na ausência de uma alternativa consistente de esquerda à narrativa liberal da ‘austeridade inevitável’. Talvez os sinais mais promissores nos cheguem do actual elo mais fraco comunitário, porventura menos do messiânico Hollande (os próximos dias serão esclarecedores). Apesar da enorme chantagem eleitoral que já se abateu sobre os gregos (por parte da Alemanha, claro, do próprio PCE Barroso,...), fiquemos atentos, pois, à evolução política na Grécia – afinal o berço da democracia! 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A esperança, por entre enigmas, dilemas e piruetas


Têm vindo a ganhar consciência na opinião pública, para além de todas as tentativas de os ocultar ou manipular, dois verdadeiros enigmas. O primeiro, de difícil aceitação, diz respeito à pirueta traduzida na forma como as ideias políticas na origem da crise surgem agora a liderar a via para a resolver. De como da crescente desregulamentação financeira que, em 2008, colocou o capitalismo à beira do colapso (na expressão dos seus mais indefectíveis defensores), se passou à defesa acérrima (traduzida na prática política dominante na UE e em Portugal) da total liberalização económica como única alternativa para o salvar!!!

Este evidente passo em frente em direcção ao abismo, apresentado como inevitável e redentor (‘não há alternativa à austeridade!’), talvez possa ser explicado pela cegueira ideológica do poder dominante liberal que o impede de ver as consequências das políticas que advoga e leva à prática, já em desespero perante o descontrolo – económico, social e político (aí está de novo o nazismo) – a que conduziram tais políticas. Mas o que não se explica é a aparente passividade das pessoas perante as medidas que lhes roubam direitos e ameaçam o seu futuro em nome de uma vaga promessa de estabilidade (?) num cenário longínquo e de alcance que se sabe já impossível.

E daqui nasce o segundo enigma: como é possível, perante o descalabro da situação actual e os efeitos negativos sobre a vida das pessoas (evidenciados em diversos indicadores, mas sobretudo nos números do desemprego), não ter ainda ocorrido nenhuma explosão social grave, como chegou a antecipar-se logo que a crise se anunciou? A degradação do nível de vida ou a erosão das classes médias, cada vez mais ‘proletarizadas’ e reduzidas na sua dimensão, não constituem, por si só, razão suficiente para a revolta? Olha-se à volta, aqui ou noutros lugares (da Europa, em especial) e os sinais não apontam nesse sentido. A sensação geral é de enorme desconforto, talvez de sofrida resignação perante o desenrolar inexorável de uma catástrofe anunciada, mas não se vislumbra a esperada convulsão social, aparentemente está-se longe do estado de agitação. Por vezes, é certo, bastam pequenos rastilhos, débeis pretextos, para se revelar a indignação, se propagarem tumultos, se desencadear a rebelião. Como as árabes do início de 2011, por exemplo.

A explicação do que se passa nos países em crise da Europa, contudo, em que, não obstante alguma agitação mais localizada, tudo parece controlado, deve ser encontrada, antes de mais, no papel que os partidos social-democratas e socialistas europeus, rendidos ao liberalismo na versão da denominada “3ª via blairista”, têm vindo a assumir perante os seus eleitorados e a opinião pública em geral, na acomodação de um processo cujo desfecho inevitável parece conduzir à eliminação do Estado Social. A aceitação da via austeritária que a tal conduz, imposta pelo pensamento único do poder liberal, não seria possível sem a sua intervenção, seja directa quando no poder (Reino Unido, Portugal, Espanha, Grécia,...), seja de forma complacente e submissa quando remetidos para a oposição (descontado o efeito da truculência estéril de alguns discursos).

Uma alternativa política para a saída da crise actual – exigência que parece cada vez impor-se mais na própria opinião pública – depara, no caso português, com o dramático dilema em que a solução se encontra presa no problema que a originou (ou pelo menos a permitiu)! É que se não parece possível resolver a situação com este PS, afigura-se de igual modo impossível, por enquanto, encontrar uma saída sem este PS. Estaremos de novo pendentes de mais uma pirueta? A entrevista de Mário Soares ao ‘I’ (8/Maio), aconselhando o PS a romper o acordo com a troika, é muito elucidativa (mesmo reconhecendo que, hoje, o peso das opiniões do histórico socialista é meramente simbólico e de pouca eficácia no seio da actual liderança do partido)!

Resta então ver até que ponto os resultados das eleições francesas – considerando as promessas do eleito presidente socialista Hollande... – e das gregas – com a rejeição unânime da austeridade num contexto de ingovernável fragmentação eleitoral – introduzem, neste contexto, alguma novidade. Para já soou o alarme nas hostes liberais, sucedem-se as declarações dos responsáveis pela condução do actual poder insistindo no cumprimento dos acordos firmados, prevenindo desde já eventuais ondas de choque do ‘mau exemplo’ grego. Indisfarçável o nervosismo dos famigerados mercados, tanto como o dos comentadores habituais que, sem perderem a arrogância que o acesso ao poder lhes confere, se foram posicionando entre a displicente desvalorização e a avaliação negativa dos resultados (ainda assim maiores concessões ao ‘bico-de-obra’ grego!).

Mesmo que o gesto de Hollande não passe, para já, disso mesmo, de um gesto apenas, abre-se uma brecha para uma nova dinâmica nos próximos tempos. Afinal nem tudo está perdido!

quarta-feira, 25 de abril de 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

No ‘mercado da democracia’, a selva dos medos e da promiscuidade política


A Greve Geral do dia 22, se avaliada apenas pelos seus aspectos meramente quantitativos, saldou-se, como era já esperado, por um relativo fracasso. Mesmo sem os números da mesma (desta vez nem a CGTP nem o Governo adiantaram quaisquer valores), a adesão à greve ficou muito aquém do que seria expectável atento o carácter de paralisação geral. Já sobre a mobilização e consciencialização conseguidas nos muitos sectores de actividade envolvidos, bem como a sua projecção mediática, os efeitos podem revelar-se positivos. O próprio nervosismo da polícia na repressão às manifestações havidas é sintomático do pânico que começa a gerar nos responsáveis políticos este tipo de acções. Ao mínimo desvio do programado, as denominadas forças da ordem têm ‘ordem’ para carregar... indiscriminadamente – até sobre jornalistas no exercício da função e devidamente identificados!

Para além destes aspectos e da ponderação a fazer sobre a utilidade de certas práticas sindicais no actual contexto social e político (claramente extravasando do tradicional âmbito nacional para o global), o que talvez mais importe analisar são as causas da fraca adesão aos apelos para a realização de uma acção solidária na defesa de interesses reconhecidamente comuns. Percebe-se então que o sentido comunitário há muito que deu lugar ao individualismo do ‘salve-se quem puder’, que a sobrevivência na selva dos ferozes mercados é a consequência lógica no termo de um longo processo zelosamente construído, sobretudo nas últimas décadas, pelo neoliberalismo.

Este é o ambiente social mais propício à eclosão do medo – a raiz da dominação pessoal – e que se manifesta de múltiplas formas: o medo do outro que gera a submissão (mas também a xenofobia); o medo da diferença patente na intolerância (de que o racismo é apenas uma das variantes); o medo do acossado induzido por ameaças várias (o medo da perda de si ou de alguma coisa, o medo da mudança,...). É notório que, hoje, a maioria dos portugueses (gregos, espanhóis, italianos,...) vive acossada, cada vez mais refugiada no seu ‘castelo’ pessoal, com medo de perder o pouco que tem. E foi seguramente o medo a principal condicionante dos resultados desta greve. O medo que se apoderou das pessoas quanto à sua situação actual e futura, que condiciona todas as suas decisões e atitudes. Em que cada um se sente entregue apenas a si próprio, num deliberado arremedo civilizado do regresso à Selva!

O extremo individualismo das sociedades actuais, alimentado pelo conjunto de valores que melhor caracterizam o sistema (competição, elitismo, consumismo,...) impede-as de ver que só em colaboração – seja a nível empresarial/sindical ou nacional/político (e cada vez mais mundial) – as suas acções têm condições de alcançar êxito na defesa dos direitos da maioria e na correcta identificação dos privilégios da escassa minoria que luta por todos os meios (legítimos ou não) para os manter! Porque, importa referi-lo (e assumi-lo na acção política), essa luta conduziu, na prática, à fusão entre o poder político e o poder dos negócios, a ponto de hoje praticamente se confundirem.

Coincidência ou não, no mesmo dia, à noite, a Quadratura do Círculo produziu um dos seus mais sintomáticos programas, num debate centrado nas relações entre a política/políticos e os negócios. O painel dos três comentadores habituais foi unânime, pelo menos em teoria (divergem nos exemplos concretos), em que nessas relações existe promiscuidade. Pacheco Pereira (JPP), paladino de uma direita que se pretende civilizada e a quem se reconhece independência de espírito bastante para não ser confundido com a carneirada no poder, foi mais preciso ao afirmar que se nos anteriores Governos (em especial o de Sócrates) era visível uma certa promiscuidade, agora passou-se para uma verdadeira comunidade de interesses, a política assume-se como mera extensão dos negócios, acrescentando, relativamente ao poder político actual, que ‘nunca nenhum Governo em Portugal desde o 25 de Abril teve tão grande proximidade, política e ideológica, com os interesses (das elites económicas)’.

Mas que esperar de um Governo que centra toda a sua estratégia política no cabalístico desígnio nacional (?) de ‘voltar aos mercados’(!) – extensão natural dessa tal comunidade de interesses de que fala JPP; cujo principal partido convoca um Congresso para debater ‘a dança das cadeiras’ – porque naturalmente prejudicado o debate sobre projectos colectivos para desenvolver o País pela há muito tomada opção política de comunhão com interesses particularistas; que concentra toda a táctica mediática no ataque à ‘figura de Sócrates’ – na expectativa de que tal ‘distracção’ permita desviar as atenções do essencial da política de austeridade/punição sobre as pessoas?

Confesso que, no fundamental, nunca me senti tão próximo de JPP como desta vez!