sábado, 8 de setembro de 2012

Os cobradores sem fraque


Não fora o óbvio significado por trás da pose hirta e muda, tornar-se-ia deveras caricato, porventura até hilariante, o ritual que por estes dias e a todas as horas as televisões nos impõem de um bando de pessoas, a que se convencionou chamar ‘troika’, movimentando-se de um lado para o outro, aparentemente apenas para, através dos ecrãs, nos recordarem a missão que cumprem. Não se apresentam de fraque, mas tudo o resto condiz com o estereótipo construído em torno dessa indumentária, no caso actuando em nome dos credores externos de que são meros mandatários. E, sobretudo, em nome dos que a nível interno, por conta de uma ideologia que ameaça a sustentabilidade do planeta e escondidos atrás de tão sinistras figuras, de forma explícita se propõem, sem olhar a meios (custe o que custar) nem a métodos (não há alternativa), empobrecer o país (pois, dizem, vive acima das suas possibilidades) e destruir a vida das pessoas – na expectativa pessoal de garantirem, no imediato, o conforto das suas e a prosperidade dos seus!

Certo é que à sombra das ditas ‘imposições da troika’, avança e implanta-se o programa neoliberal. É hoje mais que evidente (confirmado por notícias vindas a público há alguns meses) que o conteúdo do famoso memorando de entendimento foi preparado pelo ‘think tank’ neoliberal local, constituído essencialmente pelos respectivos núcleos da U. Nova e da U. Católica, que terão feito chegar à troika as medidas que, em seu entender, importava aí incluir. Afinal o famigerado plano de reformas que alguns dos habituais comentadores se apressaram a atribuir à agilidade mental dos senhores da troika – por haverem conseguido gizar em apenas cerca de um mês documento tão minucioso, revelando um conhecimento específico notável! – fica a dever-se (o seu a seu dono), não à inspiração divina da entidade externa, mas à pindérica (mas bem nutrida) ‘intectualite’ neoliberal interna e à sua agarotada versão política no PSD de Passos.

A realidade, porém, teima em destoar dos bem elaborados modelos teóricos, as políticas de austeridade têm-se saldado por resultados desastrosos a todos os níveis. A lógica desumanizada das estatísticas – usada como instrumento de propaganda pelos Governos na defesa das suas opções políticas – ameaça transformar-se, ela própria, na via sacra de um longo martírio. Antes de mais, é certo, para as vítimas reais de tais elucubrações, os desempregados, mas agora a manipulação dos números parece querer voltar-se também contra os seus próprios fautores. Perante a dimensão, estatística e sobretudo humana, do descalabro a que conduziu tal política e à medida que se vai percebendo que até a meta central do déficit público ficará muito longe do objectivo, cresce, um pouco por todo o lado, a exigência em se conhecerem os responsáveis pelo rotundo falhanço. Para o PS falhou o Governo, para o Governo a culpa ainda é do passado (reduzindo este ao ‘desaparecido’ Sócrates). Já o PR responsabiliza a troika por não saber fazer contas! E até esta obscura entidade desta vez não aguentou ficar calada e clama que a responsabilidade não é sua, é do Governo.

Este bizarro exercício de passa-culpas, contudo, não pode iludir o dado que mais importa realçar: a famigerada agenda liberal, há muito programada, finalmente encontrou as condições ideais para ser executada e está a concretizar-se de forma célere e eficaz. E sob os escombros do destruído Estado social e do liberalizado mercado do trabalho pretende erguer-se a utopia de uma sociedade liberta da opressão do Estado – a teoria do Estado mínimo – seja da opressão totalitária (política) ou da simplesmente burocrática (no vão pressuposto de assim acabarem os gastos supérfluos!). Porque é o Estado mínimo o garante do ambiente propício à expansão dos seus interesses e negociatas.

A irracionalidade do modelo vai ao ponto de, perante a ‘rigidez’ dos resultados obtidos (ou a dificuldade da realidade em se ajustar à teoria), ter sido sugerido à Grécia pela respectiva troika, o aumento do tempo de trabalho para seis dias por semana – numa altura em que o desemprego já ronda os 25% (1/4 da pop. activa grega!). Mais que a ignóbil provocação, o que a formulação de tal proposta indica é o desnorte destes políticos liberais, pois a concretização deste modelo não parece estar a resultar como os seus teóricos o terão idealizado e ardentemente desejado.

Daí o desesperado recurso à imposição de medidas que representam um retrocesso histórico monstruoso. Ao arrepio até da única que poderia inverter, de forma racional e sustentável, a tendência crescente de desemprego – a redução do tempo de trabalho – mas que, nas condições actuais, envolve uma impossibilidade, pois isso implicaria desviar os recursos que alimentam o exclusivismo dos seus requintados modos de vida, de que voluntariamente nunca irão prescindir.

Em Lisboa passeiam-se, sem fraque e sem vergonha, os cobradores de promessas. De promessas feitas em nome da fé na austeridade redentora, desfeitas pela infiel realidade. 

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