domingo, 10 de junho de 2012

Privilégios e realidades: defender o presente, pondo em risco o futuro


Já não há como iludi-lo. Cada vez ganha mais consistência na realidade vivida a dúvida generalizada sobre a bondade das medidas postas em prática para debelar ‘a crise’. Os resultados prometidos com a austeridade imposta não foram alcançados, os efeitos colaterais demonstram-se desastrosos sobretudo a nível do crescimento e do emprego, mas o mais lamentável é que o próprio objectivo prosseguido de equilíbrio das contas públicas não foi atingido, antes – pasme-se – se agravou! Cresce a convicção de que tudo o que tem vindo a ser feito é apenas a continuidade de práticas antigas, afinal está a procurar-se resolver o problema com o receituário que o criou. Ao mesmo tempo, cresce, igualmente, a sensação de que se torna necessário mudar as velhas fórmulas que conduziram o mundo ao estado em que ele se encontra, inventar novos métodos, porventura até um modo de vida diferente.

Não há nada mais deprimente do que ver os economistas (políticos ou académicos) procurarem, afanosos, resolver a crise com os mesmíssimos meios que a provocou. E, assim, multiplicam palpites sobre a reanimação da economia, desdobram-se em sugestões sobre os necessários estímulos às empresas (estímulos encarados de forma diferente, conforme as tendências e as escolas), lançam apelos ao empreendedorismo (conceito que se transformou numa espécie de abracadabra dos tempos modernos). A maioria deles, reduzidos à função de meros contabilistas, manuseiam números e estatísticas cuidando, deste modo, estar a intervir na realidade, procurando moldá-la às suas próprias convicções e desejos, não se coibindo, pois, de anunciar a saída da crise para mais ou menos breve. Afinal, não fazem as crises parte integrante do desenvolvimento do capitalismo?

Quando em 2008 a crise rebentou, súbita e violenta (apesar dos prolongados ‘ameaços’, ninguém se atreveria a augurá-la tão agressiva), a sensação geral após a queda do Lehmann’s foi a de que tudo poderia então acontecer, incluindo a derrocada do sistema. Cedo se constatou que ‘esta crise’ não era como as outras, ou apenas mais uma ‘vulgar’ crise de crescimento, ‘esta crise’ punha ela própria em causa o crescimento. Não obstante o enorme incremento da produtividade – e seguramente por causa dele – sucessivas crises foram sendo desencadeadas: com a subida dos custos de capital das empresas, a eliminação de postos de trabalho, consequente aumento do desemprego, redução da procura (agravada pela destruição da alternativa do crédito),... E sem crescimento, já se sabe, o capitalismo não sobrevive.

Acresce ainda o facto de ‘esta’ crise económica se conjugar com uma crise ambiental (ou ecológica) e uma crise de recursos (ou a crescente consciência de que estes são limitados, por natureza, a começar na cada vez mais sensível crise energética). É esta conjugação de ‘crises’, de repente transformada numa imensa crise social global, que permite a percepção de se estar em fim de época, de que se torna necessário questionar a dinâmica e os parâmetros básicos em que assenta toda a vida social, de se caminhar para outro modo de vida, cujos contornos, porém, se torna impossível descortinar, para já.

Neste contexto, a insistência nas velhas fórmulas, contra todas as lógicas, incluindo a da sobrevivência, numa aparente descontrolada fuga para a frente, tem o sentido da defesa, ainda que suicidária, dos privilégios alcançados pelas elites no poder e que dificilmente aceitarão perder de forma voluntária. Pode até representar uma desesperada falta de alternativa, mas não augura nada de bom para o futuro. Não só agrava todos os problemas que se propõe e pretende resolver – tanto a nível económico, quanto ambiental, social,... – como sobretudo implica um retrocesso em algumas tentativas que vinham sendo desenvolvidas – no domínio das energias renováveis, na preservação dos recursos, na protecção do ambiente, até na evolução da tendência para o decrescimento,... – com vista à exploração de vias alternativas às desgastadas fórmulas que nos trouxeram até aqui, permitindo, a seu tempo, um salto menos atribulado para um novo paradigma de organização social.

Ainda que o não saibam (fingem não o saber), o mundo ‘deles’ já acabou. Esforçam-se por o conservar, reparar-lhe os rombos, porventura venderão cara a mudança. O futuro ir-se-á construir, é quase certo, sobre o monte de escombros que resultar deste obstinado desvelo na defesa desse mundo em extinção. Porque muitas das nossas sedimentadas certezas, muito do adquirido cultural sobretudo ao longo dos dois últimos séculos com a implantação e domínio da sociedade de consumo, está já a ser posto em causa. A começar pelo que de mais estruturante tem a sociedade, a organização do trabalho: a redução drástica do tempo de trabalho permitida pelos actuais níveis da produtividade, conduzem à lógica da redistribuição do tempo disponível na sociedade, impõem uma nova organização do trabalho. O que passará seguramente, apesar das resistências e das explicações ‘metafísicas’ da auto-regulação, pela inversão da tendência que agora se pretende impor de aumento do tempo de trabalho – à revelia desse incremento da produtividade. O resultado pode bem ser o fim da actual sociedade do trabalho.

Sobre o que aí virá, ainda ninguém o consegue antecipar. Será a dinâmica social a determiná-lo!