segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Ejaculação precoce nos comentários sobre a Grécia

… perante o rapto da Europa!

Na análise crítica que fez ao seu passado recente e onde desmontou, com números, a falácia oficial do Nirvana a que teríamos chegado depois do Karma que foi (!) a austeridade dos últimos anos, Vítor Bento partiu de uma classificação dos países do Euro entre deficitários e excedentários. Não se pretende aqui ir mais além do que utilizar este exemplo recente para tentar arrumar o frenesim de comentários sobre o que cada um afirma ver na complexa situação grega, não deixando, contudo, de se adiantar que, por definição, qualquer classificação da realidade é redutora, ela tem apenas a virtude de a traduzir através de conceitos mais perceptíveis, por vezes simplificados (daí a redução), para dela se poderem extrair consequências para o futuro. Por isso mesmo o pobre do Bento passou a ser desancado, entre o desânimo e o despeito, pelos seus mais fiéis correligionários de véspera, todos, enfim, desiludidos com a defecção vergonhosa do seu mui venerado guru!

Acontece algo de semelhante agora com os efeitos da tempestade (ainda não passou disso…) provocada pelas eleições na Grécia e a sequência negocial que o novo governo grego decidiu empreender, em conformidade com as promessas da campanha eleitoral. De repente todos os que, por mérito ou por manifesta falta dele, têm acesso aos meios de comunicação social, decidiram expor em público os seus estados de alma sobre este tema. Os estados de alma revelam, mais que a realidade que é suposto pretenderem traduzir, isso mesmo, o que vai na alma dos comentadores, expondo os seus mais profundos anseios ou temidas apreensões projectados no futuro ou como ambicionados triunfos ou como receados fracassos (conforme o ponto em que se situem).

A arrumação dos comentários sobre as negociações que têm vindo a ter lugar sobre o futuro da austeridade na Grécia e na Europa – é isso que sobretudo está em causa nas posições adoptadas – pode fazer-se, para todos quantos manifestam estados de alma sobre este tema, entre rejubilosos e desanimados (ou apressados e angustiados…), uns e outros demonstrando padecer daquela perturbação que afecta tantos homens (sobretudo juvenis) na hora das demonstrações viris. Nem sempre o que é precoce é bom e ser profeta antes do tempo é privilégio apenas ao alcance de alguns. E este não é – não tem sido – o caso dos comentadores domésticos, mais preocupados em se afirmarem, uns como a melhor voz do dono, outros demasiado atreitos a prostrações e desgraças. Quase sempre longe das exigências da realidade, todos perspectivando o futuro conforme os seus desejos ou receios, todos sofrendo, enfim, da ansiedade que provoca a temida… ejaculação precoce!
   
A direita austeritária, presa ao dogma do TINA e da tese do ‘termos vivido acima das possibilidades’, dá já como certa a morte das pretensões fantasiosas (o conto de crianças?) protagonizadas pelo Syriza, falta apenas marcar as exéquias e o funeral (se possível com missa cantada, para exemplo de quantos ainda alimentem veleidades). Nem esperam que o cadáver arrefeça, as manifestações de júbilo são mais que evidentes, o comentário de Schauble no final da sessão do Eurogrupo é apenas a expressão exemplar disso mesmo por se tratar do dono da matilha. E até um comedido Paulo Baldaia – da emblemática TSF, que de vez em quando perora na TV – folga por os gregos terem sido metidos na ordem ‘quando confrontados com a realidade’, ‘obrigados a recuar’ e a ‘meter na gaveta o principal das promessas eleitorais’, pois a austeridade quando nasce é para todos. ‘Todos’, aqui são os países, entidades abstractas, sem pessoas (nem divisões entre as pessoas, claro), traduzidas em números, gráficos e estatísticas, enfim, conceitos superiores só devidamente apreendidos por seres superiores para manipulação junto dos simplórios consumidores de notícias. À esquerda, entretanto, é possível ver também que alguma dela tão pouco se encontra imune à dita perturbação sexual/social, a avaliar (por exemplo) pelo apreensivo ‘desânimo’ que transparece em alguns comentários recentes reproduzidos no Ladrões de Bicicletas, denotando um derrotismo que, é certo, os tempos justificam, mas que se mostra no caso em apreço manifestamente precipitado.

Este jogo, afinal, está longe de ter acabado, na realidade ele ainda só agora começou. Do que até aqui se passou, apenas é possível concluir que nada está ganho, mas também nada ainda está perdido. Tudo neste processo se vai desenrolar a partir de agora, a fase imediata a estender-se até ao final dos próximos 4 meses – o prazo alcançado pela Grécia para o prolongamento do empréstimo – mas com continuação assegurada muito para além desse prazo. Porque a maior vitória do Syriza, para já – independentemente do que vier a acontecer com as propostas do governo grego como contrapartida do empréstimo – foi ter permitido à raptada Europa pôr em causa uma política tida até aqui como inevitável e sem alternativa. Ter obrigado o directório alemão e seus podengos a aceitar discutir política ao invés de formulações técnicas impostas como inquestionáveis sob as quais se acoitam os desígnios de subjugação dos povos europeus aos esconsos interesses financeiros mundiais! A construção europeia monolítica e a mando da Alemanha através da austeridade sofreu o primeiro abalo, a passagem do nível técnico para o político introduz uma dinâmica diferente e imprevisível, com avanços e recuos, momentos de maior ou menor dramatismo, seguramente longe de funerais antecipados ou foguetes antes da festa. Tudo, afinal, está ainda por decidir.

Bem pode agora a Maria Luís vir dizer que na reunião do Eurogrupo apenas se pronunciou sobre ‘procedimentos a cumprir’ para logo depois, do lado de onde ela menos esperaria – dos alemães, pois claro – surgir a notícia das pressões exercidas sobre a… Alemanha (pois claro), para que à Grécia fosse aplicado tratamento exemplar! Percebe-se o desconforto: como proceder quem sempre aplicou uma política de austeridade com o requinte e o cinismo conhecidos, perante uma eventual alternativa… à ‘tal’ austeridade inevitável? Bem tentaram atirar o odioso da questão para os países do Báltico ou para outros que sobram do ex-império russo do século passado, mas a verdade estava aqui mesmo, nos caniches amestrados da Ibéria. Schauble já provou que não precisa que lhe mordam as canelas para evidenciar tiques germânicos execráveis, mas com os apoios oferecidos por tais biltres as suas pretensões de avançar para o Anschluss grego (para servir de experimento aos demais países da UE) tornam-se bem mais fáceis de ser aceites, pensará ele, perante as opiniões públicas. Mas até aqui – sobretudo aqui, já se viu que pouco ou nada há a esperar dos actuais governos europeus, incluindo os de cariz socialista – o tiro ameaça sair-lhe pela culatra, pois é precisamente aí que se situa a principal força que ameaça a hegemonia germânica! A Grécia constitui apenas um primeiro passo para essa consciência – e um passo decisivo, importa destacá-lo!

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O ultimato ‘europeu’ irá levar a Grécia ao referendo a ‘esta’ Europa?

Se dúvidas existissem ainda sobre o que realmente se encontra em causa na questão dita da ‘dívida grega’, elas puderam ser totalmente dissipadas com os últimos desenvolvimentos das negociações em curso entre a Grécia e o Eurogrupo para a sua resolução. Seja qual for a razão dessas dúvidas – de base ideológica, política ou meramente cultural (‘se os gregos devem, os gregos devem pagar’, ou ‘os compromissos são para cumprir’) – o conteúdo e até a forma do ‘diktat’ transmitido ao Governo grego no final da sessão do Europrupo da passada segunda-feira/16 pelo seu presidente, o ‘socialista’ (!) holandês Jeroen Dijsselbloem, ditaria por si só o abandono desses argumentos comuns invocados para suportar a inflexível posição ‘desta’ Europa.

Ficou a saber-se então que um inócuo documento negociado com o comissário europeu para a economia e finanças (o ex-ministro francês Moscovici) fora retirado logo no início da reunião do Eurogrupo pelo dito socialista holandês (por certo a mando da Alemanha e/ou dos seus fâmulos mais servis, à cabeça os governos de Portugal e Espanha, receosos do confronto com os seus eleitorados) e onde constavam posições tão ‘radicais’ como “o Governo Helénico compromete-se a implementar as reformas há muito esperadas para combater a corrupção e a fuga ao fisco e modernizar a administração pública (…), medidas urgentes para assegurar um sistema fiscal mais justo e eficaz.” Além disso “Irá assegurar que quaisquer medidas novas não contrariem os compromissos existentes e (…) abster-se de acções unilaterais (…).” Ou, ainda, “as autoridades gregas reiteraram o seu compromisso inequívoco com as obrigações financeiras para todos os seus credores.” (!!!)

Ademais, Varoufakis, o ministro que lidera as negociações pelo lado da Grécia, fizera já saber, de viva voz, que afinal os gregos querem pagar o que devem, reafirmara mesmo pretender cumprir os compromissos assumidos pelo Estado grego por anteriores governos. A grande divergência está nos meios para o atingir, nos programas postos em prática para o conseguir – as famosas reformas estruturais –, enfim, nas políticas que cada um deveria democraticamente poder escolher. A posição inflexível não é, pois, sobre o pagamento da dívida – ambos concordam que deve ser paga! – reside antes na opção política entre a ‘austeridade criativa’ e qualquer alternativa que a ponha em causa, é entre a ‘austeridade’ traduzida em sempre mais restrições para o povo e uma política que se pretende voltada para as suas necessidades. Já todos perceberam, aliás, que a transferência de recursos obtida na base dessas políticas de austeridade se destina a alimentar um monstruoso e insaciável sistema financeiro – suporte e parasita de um sistema capitalista decadente – que resiste a qualquer mudança em nome de um famigerado mercado livre – apesar da ameaça de morte que o assombrou no ‘crash’ de 2008!

Pouco importa que o modelo neoliberal (ou ordoliberal na versão alemã) das reformas estruturais tenha conduzido à destruição da economia, à desestruturação da sociedade grega, à catástrofe humanitária, se demonstre inviável e sem futuro. O que mais importa é concluir o processo de mudança social tendente à implantação de uma sociedade organizada na base do livre mercado, sem interferência de opções democráticas desestabilizadoras. Importa, pois, insistir nas medidas que, até agora, castigaram o povo grego reduzindo-o à dependência e à penúria por, na versão oficial, ter a ousadia (para alguns tratar-se-á mesmo de descaramento) pretender aproximar-se dos padrões de bem-estar europeus; contudo, na versão real do que efectivamente aconteceu, para salvar uma banca (alemã e francesa, nomeadamente) em eminente colapso de incumprimento por efeito de uma gestão centrada na busca de resultados imediatos e na especulação.

Nem sequer surpreende que, perante o descalabro de tal modelo dito de ajustamento, não seja dada a oportunidade para se esboçar uma outra opção, pois isso seria não só admitir o falhanço do programa imposto nos últimos anos à Europa, como permitir que se generalize a ‘ideia perigosa’ de que existe alternativa à austeridade; e, sobretudo, correr o risco de ficar por concluir o processo de reformas para a tal mudança estrutural da sociedade onde quem manda é o mercado, à democracia fica reservado o papel dos formalismos de enquadramento pouco mais que burocrático, a administração da justiça e as acções de segurança na protecção e defesa dos cidadãos sem direitos.   

Apesar da intensa nebulosa política actual, percebe-se que nenhuma das partes parece ter margem para ceder. A posição grega está limitada pelo compromisso eleitoral assumido na sequência dos resultados das eleições de 25/Jan, implicando a alteração da política de austeridade; a posição europeia aprisionada na ideologia que tem orientado a construção da União pelo menos desde Maastricht, pelo que, qualquer desvio agora poderia conduzir à sua derrocada pela introdução do princípio da subversão na confiança que cimenta as Instituições Europeias. Assim, pelo rumo que estas negociações estão a tomar e as fracas hipóteses da democracia poder ainda vir a quebrar a hegemonia germânica que amarra e tolhe a Europa, a Grécia pode vir a ser empurrada (a contragosto, já o demonstrou) para fora do Euro. Se tal se perspectivar e a iniciativa pertencer aos gregos, essa poderá ser uma oportunidade da política exercer a sua supremacia sobre a economia, da democracia se sobrepor ao mercado, colocando-se a decisão nas mãos do povo, através de um referendo sobre a Europa/Euro – afinal ‘apenas’ 5 anos volvidos sobre o referendo que Papandreou deveria ter feito e não fez por pressão da Alemanha e da França! Não se ignora, nas condições actuais, os enormes riscos envolvidos (sobretudo económicos para a Grécia, económicos e políticos para a Europa), mas a exigência de legitimidade democrática não permite grande margem de manobra. A menos que o estado de degradação política coloque já fora de tempo e sem espaço as soluções democráticas…

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O que está em causa nas negociações entre a Grécia e a UE

O que está em causa nas negociações em curso entre a Grécia e as instituições europeias (com uma etapa a decorrer entre hoje e amanhã que se espera, senão decisiva, pelo menos elucidativa do que cada uma das partes defende) vai muito para além da ‘simples’ reestruturação da dívida – ou, como gostam de afirmar os indefectíveis do pagamento sem concessões, de ‘honrar compromissos’! O que verdadeiramente se joga nessas negociações são dois modelos de sociedade que se pretendem muito diferentes, tanto nos seus propósitos como nas suas bases e princípios, que se expressa no confronto entre dois tipos de 'reformas estruturais' bem opostas. De um lado as que apontam à defesa e aprofundamento do Estado Social, à redução das desigualdades, ao respeito pela dignidade (das pessoas, das nações, da própria democracia); do outro, as que impõem a liberalização absoluta e sem controlo das relações económicas (os controlos estabelecidos já se viu como se comportam…), a privatização do que resta dos sectores rentáveis da economia, a destruição da coisa pública (da administração aos direitos mais elementares). De um lado a defesa das pessoas e do seu bem-estar, do outro o império absoluto dos mercados!

Reestruturar dívidas é operação corrente no mundo das finanças, di-lo-á sem dificuldades nem subterfúgios qualquer banqueiro sensato – como o fez, por exemplo, Jardim Gonçalves em entrevista à RTP ainda não há muito tempo, reafirmando mesmo que as reestruturações se fazem todos os dias e antes de mais em benefício dos credores (o que não surpreende, pois nem outra coisa se esperaria de pessoas tão reiteradamente altruístas!). O que, sabendo-se do domínio que a Banca e a Finança exercem actualmente, não é coisa pouca. É por isso que a questão principal que divide gregos e UE/Merkel (e a pandilha menor de acólitos e serventuários sempre dispostos a gritar mais alto que os donos), não é se a Grécia vai ou não pagar e em que condições, mas se o Governo do Syriza se dobra à imposição de Bruxelas/Berlim para efectuar as ‘reformas’ indispensáveis à construção do modelo de dominação liberal que a denominada crise das dívidas (na boa tradição do disposto pela ‘Doutrina do Choque’) tão ‘afortunadamente’ lhes veio proporcionar.

A UE pode até ceder em quase tudo no que à dívida diz respeito, mas só o fará a troco da garantia de manutenção das famigeradas ‘reformas estruturais’ tendentes à instauração de uma sociedade organizada segundo o 'modelo liberal'. Resta então ver até onde o novo governo do Syriza terá capacidade para resistir a tamanha pressão ou se, perante um eventual insucesso no confronto agora provocado, mais uma vez voltará a ser a realidade da vida a impor-se à política, mas nesse caso previsivelmente já só da forma trágica e dolorosa que a História frequentemente regista. (Parêntesis para introduzir, neste contexto, um ‘pormenor’ não negligenciável: há que contar ainda com os efeitos já bem visíveis do consenso cada vez mais alargado em torno desta austeridade inútil, deste Euro disfuncional… – v.g. Vitor Bento!)

A este propósito, não resisto a transcrever aqui um excerto de um notável texto do economista Alexandre Abreu (via ‘Ladrões de Bicicletas’, com o respectivo link: O syriza e o luto da direita), que considero exemplar dos pontos de vista que venho defendendo há muito (de forma bem mais atabalhoada, diga-se). Sem mais comentários, pois, por desnecessários:

… não é no plano macroeconómico que as propostas do Syriza constituem uma ameaça para as elites europeias. É que a dívida é um instrumento e não um fim. Aquilo que de mais central está em causa não é a dívida e o seu reembolso, mas a sua utilização como instrumento de dominação. O que não pode ser posto em causa do ponto de vista das elites não é o montante da dívida ou o seu calendário de pagamento: a esse nível, como se tem visto nos últimos dias, pode sempre haver cedências. O que não pode ser posto em causa, em contrapartida, são os eixos centrais da dominação: a compressão dos salários e pensões, as "reformas estruturais" no mercado de trabalho, o esvaziamento do Estado social, as privatizações.
Sucede, porém, que é precisamente isso que o novo governo grego ameaça pôr em causa. E é precisamente por isso que, pela Europa fora como em Portugal, a direita e os seus porta-vozes - os intelectuais públicos dos grupos dominantes - não suportam o Syriza e o que ele representa, e têm reagido à sua subida ao poder na Grécia com o choque e atordoamento com que se faz um luto ou reage a uma tragédia(…)”.

Recomenda-se vivamente a leitura do restante texto. Está lá tudo dito (ou quase).