domingo, 24 de maio de 2015

Sequestrados (II)

II – … e os múltiplos sequestros à cidadania

Sendo tudo isto que se referiu muito esclarecedor dos debilitados poderes da democracia na actualidade, tudo isto surge como resultado global do intenso labor dos mercados nas várias frentes de luta, a nível económico, social, ambiental, político, ideológico… O cerco financeiro à democracia reproduz, a nível global, o sequestro da vida nas diferentes áreas da sociedade. Importa, pois, reflectir sobre alguns desses sequestros vividos pela maioria.

À cabeça, o sequestro financeiro. Quando em 2008 a falência do Lehmans desencadeou a pior crise mundial após a 2ª Guerra (terminada faz agora 70 anos!) e ameaçou precipitar o mundo numa escalada de devastação sem precedentes (a nível económico, social e político), por momentos pensou-se ser possível parar para reflectir e… inflectir o rumo que o tinha conduzido a tal extremo. Na desorientação política que se seguiu às ondas de choque então produzidas alguns destacados líderes mundiais (Sarkozy, por exemplo) falaram mesmo em extinguir os off-shores e alterar as regras financeiras! Passado o susto inicial, porém, o que se verificou foi que a crise das dívidas soberanas (?) tomou o lugar da crise financeira, sinalizando que a sociedade foi obrigada a assumir, impotente, o regabofe bancário, sem que nada de substancial se alterasse no respectivo funcionamento institucional (intactos o refúgio dos paraísos fiscais ou o poder das agências de rating sobre os Estados!). É óbvio que o sistema financeiro, caso não fosse então resgatado, teria soçobrado e com isso atirado o mundo provavelmente para o caos económico e social. Mas impunha-se que esse resgate fosse acompanhado por novas regras para se evitar a sua repetição… e não o foi. Passados quase sete anos e mais alguns sustos (menores, por enquanto) cresce a percepção, até entre sectores liberais, de que a solução já só reside no controle público do sector bancário: é que os bancos, pelo papel vital que detêm na sociedade, não devem ser deixados ao capricho de particulares! 
     
Depois o sequestro pela desigualdade. Por duas vias principais: desde logo a mais óbvia, o sequestro da riqueza, bem expresso no confronto que se estabelece entre ‘rendimentos obscenos’ – expressão utilizada para caracterizar os rendimentos auferidos por alguns estratos profissionais (das vedetas desportivas, mediáticas, cinéfilas…, a gestores e analistas vários) e a extrema miséria de enormes e crescentes franjas da população, para não falar da estagnação a que se sujeitam as cada vez mais esmagadas classes médias. A par disso, porventura na base dessas disparidades ofensivas, o sequestro do tempo: do tempo ocupacional cada vez mais distópico e irracional, por força, é certo, da automação e da consequente destruição de postos de trabalho, mas onde se revela bem a completa desordem que domina a actual organização social, apelando à sua rápida substituição por outra mais adequada às necessidades do homem moderno. O resultado global só pode ser o aumento das desigualdades… num mundo que se reclama de uma crescente abundância e prosperidade. 
   
Ou o sequestro ambiental, talvez o que melhor exiba perante a opinião pública o carácter predatório do mercado (mesmo que este não seja percepcionado como tal, mas apenas nos efeitos da total mercantilização da sociedade) e a destruição que o acompanha, ainda que os resultados se afigurem demasiado lentos e tardios face ao exigido pelo estado de degradação actual do ambiente. A mobilização da cidadania parece apenas patentear-se perante as grandes catástrofes (o conhecido efeito da rã cozida em lume brando), mas entretanto a investigação académica vai fazendo o seu caminho e emitindo sérios avisos. Mesmo contra os poderosos e assanhados ‘lobbies’ ao serviço das grandes corporações interessadas no descrédito da tese das alterações climáticas por causas antropogénicas, de todo já impossível ignorar. Como o que ainda recentemente trouxe de novo a público o ‘velho’ tema dos Limites ao Crescimento, desta feita através de investigadores australianos (Univ. Melbourne) que concluem, na esteira do Club de Roma, que se nada for feito, a nossa civilização caminha rapidamente para o colapso.

Por fim o sequestro da democracia: a crise grega constitui o exemplo paradigmático de como a lógica dos mercados sobreleva qualquer lógica política, mesmo quando esta pretende ir ao encontro dos objectivos fixados pelos ditos… mercados. Mais uma vez o ministro Tsakalotos, coordenador grego das negociações com Bruxelas: “Sob os governos anteriores, o pagamento das tranches dos empréstimos UE-FMI nunca foram condicionados à luta contra a fraude fiscal! Eram condicionados à baixa dos salários, à baixa das pensões de reforma... E as reformas de fundo que dizem respeito ao sistema fiscal e à corrupção jamais foram postas em prática.” No entanto e com extremo cinismo, a fraude fiscal e a corrupção – incluídas nas famigeradas ‘reformas estruturais’ mas claramente ignoradas perante as prioridades dos mercados: baixa salarial e redução de pensões! – aparecem sempre no espaço mediático, em jeito de flagelação do carácter, como os dois aspectos definidores da personalidade do povo grego, apodado de preguiçoso e caloteiro que não assume as suas dívidas para com os credores. Perante a imensa catástrofe grega resta apenas saber até onde será capaz o cinismo de resistir à realidade.

Muito em breve, por força do próprio calendário financeiro imposto à Grécia, perceber-se-á melhor a firmeza posta na defesa das já reduzidas ‘linhas vermelhas’ que o Governo grego prometeu não ultrapassar. Aí se fará então a prova da força que ainda resta a esta democracia para romper o bloqueio em que o actual sequestro financeiro a mantém como refém. Ou se o total isolamento político da Grécia, numa Europa em que a social-democracia há muito se encontra – por culpa própria! – sob sequestro ideológico neoliberal, a conduzirá ao beco sem saída que a matilha no poder ansiosamente deseja que aconteça (apesar de tudo, não confundir a ‘matilha’ com os ‘mercados’, pragmáticos e menos dados a estados de alma, ansiosos apenas por… perderem o menos possível numa operação que se adivinha de alto risco). As linhas de fractura que atravessam o Syriza por esta altura mostram bem as dificuldades inerentes e a gravidade da opção em jogo – para a Grécia e para a Europa – neste momento histórico que lhe coube protagonizar. Ver-se-á então se a tendência se mantém no caminho de uma ‘nova’ sociedade de tipo orwelliano (robotizada, burocratizada, controlada, vigiada, sequestrada… com ‘os mercados’ no papel do ‘Grande Irmão’) ou se alguma coisa se inverte no sentido da renovação dos valores iniciados na Revolução Francesa, continuados na de Outubro, tentados na de Abril... 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sequestrados ( I )

I – O cerco financeiro à democracia…

Se algum mérito é possível extrair da crise grega e da insistentemente proclamada situação de ‘impasse à beira do abismo’ ele é o de ter exposto com toda a crueza e para além de qualquer dúvida ou sofisma o anémico estado actual da democracia. Talvez até a sua ausên- cia se o que sobra é a aparência formal a que a pretendem reduzir (eleições periódicas, liberdade de expressão…), subalternizada perante decisões financeiras tidas por inevitáveis, submetida à lógica de um poder mercantil absoluto que, depois de alcançar o domínio mundial (a lógica da globalização é isso mesmo, o poder absoluto mercantil), cada vez se afigura mais já só ser possível travá-lo pela derrocada para onde a vertigem de uma acumulação sem limites o parece querer precipitar, mas que ameaça, com ela, arrastar tudo o resto.

O que se assiste hoje, na Grécia, não é ‘apenas’ a mais uma escaramuça desse prolongado e basilar conflito que vem opondo a Democracia à Finança (actual guarda-avançada do poder mercantil), pois o seu desfecho, se envolve directamente os gregos, pode vir a afectar também e de forma decisiva a essência da própria democracia e o futuro das relações sociais em geral, quer daí resulte consolidar-se na sociedade a ideia – e a prática – de uma maior institucionalização do poder dos mercados (da escassa minoria que os controla) contra o poder das instituições democráticas (da vasta maioria que as legitima e, ao mesmo tempo, suporta os ditos mercados), quer sobretudo se, num volte face que hoje ninguém arrisca prever, se lograr o reforço destas. Enfim, saber se o ‘1% dos ricos’ ganha ainda maior força para impor os seus privilégios sobre os interesses globais dos restantes ‘99%’, ou se, pelo contrário, estes obtêm novo alento na luta sem fim pela emancipação de todas as tutelas!

A pretensão de tornar isenta e neutra a decisão social, através das regras do mercado, como defendem os neoliberais, apenas transfere para uns poucos – os que controlam o mercado – a decisão que, por norma universal, cabe à maioria através das regras da democracia. O carácter inconciliável das duas lógicas em presença – lógica mercantil vs. lógica democrática, exclusivismo contra inclusão – implica sempre, na prática, o predomínio de uma sobre a outra. A realidade demonstra que mesmo a tentativa de as conciliar através da regulação do mercado não passa de exercício pouco mais que inútil face ao carácter predatório inscrito na lógica mercantil, sobre as pessoas, a natureza, a vida… A aparência de legitimidade constrói-se com plataformas de duvidosa legalidade, seja o refúgio dos off-shores, geridos e mantidos pelo promíscuo conúbio entre políticos e financeiros, seja através do esconso papel exercido pelas agências de rating na avaliação mercantil (!!!) dos Estados.

Ao longo das últimas quatro décadas e enquanto se assistia ao reforço do poder dos mercados na decisão social, o exercício da democracia foi sendo progressivamente limitado, crescentemente esvaziado dos seus poderes efectivos, cada vez mais confinado ao formalismo dos rituais democráticos – de que não pode prescindir sem se negar perante as opiniões públicas – mas sem conteúdo efectivo (alternâncias sem alternativas, controle mediático, regulação de fachada…). Empurrado para a quase exclusiva delegação de poderes numa elite política que pouco mais faz que gerir os tempos e as regras que interessam aos mercados e em nome dos quais se regulam todas as restantes áreas, incluindo a política propriamente dita.

Em entrevista recente, Euclides Tsakalotos, ministro-adjunto para as relações económicas internacionais no ministério dos Negócios Estrangeiros do governo grego e actual coordenador das negociações em Bruxelas, expressa assim a sua frustração pelo andamento das mesmas: “Enquanto universitário, quando apresento um argumento numa discussão, espero que quem está diante de mim apresente um contra-argumento. Ora o que nos opuseram foram regras. Quando evocamos as particularidades da Grécia, o seu carácter insular, por exemplo, respondem-nos: pouco importa, há regras e é preciso respeitá-las. Aos argumentos gregos, os burocratas de Bruxelas apenas conseguem contrapor… regras, a razão esbarra na burocracia!

Não é por acaso nem é inocente a estratégia erguida em torno da trincheira da burocracia em que parecem acantonados os negociadores das Instituições (a nova designação dos credores para a desacreditada ‘troika’). Eles sabem bem que, com o tempo a correr a seu favor (a pressão financeira sobre a Grécia ameaça tornar-se insuportável), não precisam de desperdiçar argumentos, apenas aguentar firme nas posições já conquistadas e, tal como Passos Coelho em Portugal, ir progredindo na consolidação do processo de total liberalização em benefício dos mercados, sob pretexto da globalização, mesmo que isso implique sacrificar até ao limite a maioria do povo, obrigando-o a abdicar dos seus interesses mais legítimos.

(...)