II – … e os múltiplos sequestros à
cidadania
Sendo tudo isto que se
referiu muito esclarecedor dos debilitados poderes da democracia na
actualidade, tudo isto surge como resultado global do intenso labor dos
mercados nas várias frentes de luta, a nível económico, social, ambiental,
político, ideológico… O cerco financeiro à democracia reproduz,
a nível global, o sequestro da vida
nas diferentes áreas da sociedade. Importa, pois, reflectir sobre alguns desses
sequestros vividos pela maioria.
À cabeça, o sequestro financeiro. Quando em 2008 a falência do Lehmans desencadeou
a pior crise mundial após a 2ª Guerra (terminada faz agora 70 anos!) e ameaçou
precipitar o mundo numa escalada de
devastação sem precedentes (a nível económico, social e político), por
momentos pensou-se ser possível parar para reflectir e… inflectir o rumo que o
tinha conduzido a tal extremo. Na desorientação política que se seguiu às ondas
de choque então produzidas alguns destacados líderes mundiais (Sarkozy, por
exemplo) falaram mesmo em extinguir os off-shores e alterar as regras financeiras!
Passado o susto inicial, porém, o que se verificou foi que a crise das dívidas soberanas (?) tomou o
lugar da crise financeira,
sinalizando que a sociedade foi obrigada a assumir, impotente, o regabofe
bancário, sem que nada de substancial se alterasse no respectivo funcionamento
institucional (intactos o refúgio dos paraísos
fiscais ou o poder das agências de
rating sobre os Estados!). É óbvio que o sistema financeiro, caso não fosse
então resgatado, teria soçobrado e com isso atirado o mundo provavelmente para
o caos económico e social. Mas impunha-se que esse resgate fosse acompanhado
por novas regras para se evitar a sua repetição… e não o foi. Passados quase
sete anos e mais alguns sustos (menores, por enquanto) cresce a percepção, até entre
sectores liberais, de que a solução já só reside no controle público do sector
bancário: é que os bancos, pelo papel vital que detêm na sociedade, não
devem ser deixados ao capricho de particulares!
Depois o sequestro pela desigualdade. Por duas vias principais: desde logo a
mais óbvia, o sequestro da riqueza, bem expresso no confronto que se
estabelece entre ‘rendimentos obscenos’ – expressão utilizada para caracterizar
os rendimentos auferidos por alguns estratos profissionais (das vedetas desportivas,
mediáticas, cinéfilas…, a gestores e analistas vários) e a extrema miséria de
enormes e crescentes franjas da população, para não falar da estagnação a que
se sujeitam as cada vez mais esmagadas classes médias. A par disso, porventura
na base dessas disparidades ofensivas, o sequestro do tempo: do tempo
ocupacional cada vez mais distópico e irracional, por força, é certo, da
automação e da consequente destruição de postos de trabalho, mas onde se revela
bem a completa desordem que domina a actual organização social, apelando à sua
rápida substituição por outra mais adequada às necessidades do homem moderno. O
resultado global só pode ser o aumento das desigualdades… num mundo que se
reclama de uma crescente abundância e prosperidade.
Ou o sequestro ambiental, talvez o que melhor exiba perante a opinião
pública o carácter predatório do mercado (mesmo que este não seja percepcionado
como tal, mas apenas nos efeitos da total mercantilização da sociedade) e a
destruição que o acompanha, ainda que os resultados se afigurem demasiado
lentos e tardios face ao exigido pelo estado de degradação actual do ambiente.
A mobilização da cidadania parece apenas patentear-se perante as grandes
catástrofes (o conhecido efeito da rã cozida em lume brando), mas entretanto a
investigação académica vai fazendo o seu caminho e emitindo sérios avisos. Mesmo
contra os poderosos e assanhados ‘lobbies’ ao serviço das grandes corporações
interessadas no descrédito da tese das alterações climáticas por causas antropogénicas,
de todo já impossível ignorar. Como o que ainda recentemente trouxe de novo a público
o ‘velho’ tema dos Limites ao Crescimento,
desta feita através de investigadores australianos (Univ. Melbourne) que
concluem, na esteira do Club de Roma,
que se nada for feito, a nossa civilização caminha rapidamente para o colapso.
Por fim o sequestro da democracia: a crise grega constitui o exemplo
paradigmático de como a lógica dos mercados sobreleva qualquer lógica política,
mesmo quando esta pretende ir ao encontro dos objectivos fixados pelos ditos…
mercados. Mais uma vez o ministro Tsakalotos, coordenador grego das negociações
com Bruxelas: “Sob os governos anteriores, o pagamento das tranches dos empréstimos
UE-FMI nunca foram condicionados à luta contra a fraude fiscal! Eram
condicionados à baixa dos salários, à baixa das pensões de reforma... E as
reformas de fundo que dizem respeito ao sistema fiscal e à corrupção jamais
foram postas em prática.” No entanto
e com extremo cinismo, a fraude fiscal e a corrupção
– incluídas nas famigeradas ‘reformas estruturais’
mas claramente ignoradas perante as prioridades dos mercados: baixa salarial e redução de pensões! – aparecem sempre no espaço mediático, em jeito
de flagelação do carácter, como os dois aspectos definidores da personalidade
do povo grego, apodado de preguiçoso e caloteiro que não assume as suas dívidas
para com os credores. Perante a imensa catástrofe grega resta apenas saber até onde
será capaz o cinismo de resistir à realidade.
Muito
em breve, por força do próprio calendário financeiro imposto à Grécia,
perceber-se-á melhor a firmeza posta na defesa das já reduzidas ‘linhas
vermelhas’ que o Governo grego prometeu não ultrapassar. Aí se fará
então a prova da força que ainda resta a esta
democracia para romper o bloqueio em que o actual sequestro financeiro a mantém como refém. Ou se o total isolamento
político da Grécia, numa Europa em que a social-democracia
há muito se encontra – por culpa própria! – sob sequestro ideológico neoliberal, a conduzirá ao beco sem saída que
a matilha no poder ansiosamente deseja que aconteça (apesar de tudo, não
confundir a ‘matilha’ com os ‘mercados’, pragmáticos e menos dados a
estados de alma, ansiosos apenas por… perderem o menos possível numa operação
que se adivinha de alto risco). As linhas de fractura que atravessam o Syriza
por esta altura mostram bem as dificuldades inerentes e a gravidade da opção em
jogo – para a Grécia e para a Europa – neste momento histórico que lhe coube
protagonizar. Ver-se-á então se a tendência se mantém no caminho de uma ‘nova’ sociedade de tipo orwelliano (robotizada,
burocratizada, controlada, vigiada, sequestrada… com ‘os mercados’ no papel do ‘Grande Irmão’)
ou se alguma coisa se inverte no sentido da renovação dos valores iniciados na Revolução
Francesa, continuados na de Outubro, tentados na de Abril...
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