I – O cerco financeiro à democracia…
Se algum mérito é possível
extrair da crise grega e da insistentemente proclamada situação de ‘impasse à
beira do abismo’ ele é o de ter exposto com toda a crueza e para além de
qualquer dúvida ou sofisma o anémico estado
actual da democracia. Talvez até
a sua ausên- cia se o que sobra é a aparência formal a que a pretendem reduzir
(eleições periódicas, liberdade de expressão…), subalternizada perante decisões
financeiras tidas por inevitáveis, submetida à lógica de um poder
mercantil absoluto que, depois de alcançar o domínio mundial (a lógica da globalização é isso mesmo, o poder
absoluto mercantil), cada vez se afigura mais já só ser possível travá-lo pela
derrocada para onde a vertigem de uma acumulação sem limites o parece querer
precipitar, mas que ameaça, com ela, arrastar tudo o resto.
O que se assiste hoje, na Grécia,
não é ‘apenas’ a mais uma escaramuça desse prolongado e basilar conflito que
vem opondo a Democracia à Finança (actual guarda-avançada do poder mercantil),
pois o seu desfecho, se envolve directamente os gregos, pode vir a afectar também
e de forma decisiva a essência da própria democracia e o futuro das relações
sociais em geral, quer daí resulte consolidar-se na sociedade a ideia – e a
prática – de uma maior institucionalização
do poder dos mercados (da escassa minoria que os controla) contra o poder das instituições democráticas (da
vasta maioria que as legitima e, ao mesmo tempo, suporta os ditos mercados), quer
sobretudo se, num volte face que hoje ninguém arrisca prever, se lograr o
reforço destas. Enfim, saber se o ‘1%
dos ricos’ ganha ainda maior força para impor os seus privilégios sobre
os interesses globais dos restantes ‘99%’,
ou se, pelo contrário, estes obtêm novo alento na luta sem fim pela emancipação
de todas as tutelas!
A pretensão de tornar isenta e
neutra a decisão social, através das regras
do mercado, como defendem os neoliberais, apenas transfere para uns poucos
– os que controlam o mercado – a decisão que, por norma universal, cabe à
maioria através das regras da democracia.
O carácter inconciliável das duas lógicas em presença – lógica mercantil vs. lógica
democrática, exclusivismo contra
inclusão – implica sempre, na prática, o predomínio de uma sobre a
outra. A realidade demonstra que mesmo a tentativa de as conciliar através da regulação do mercado não passa de
exercício pouco mais que inútil face ao carácter predatório inscrito na lógica
mercantil, sobre as pessoas, a natureza, a vida… A aparência de legitimidade
constrói-se com plataformas de duvidosa legalidade, seja o refúgio dos off-shores, geridos e mantidos pelo promíscuo conúbio
entre políticos e financeiros, seja através do esconso papel exercido pelas agências de rating na avaliação
mercantil (!!!) dos Estados.
Ao longo das últimas quatro
décadas e enquanto se assistia ao reforço do poder dos mercados na decisão
social, o exercício da democracia foi sendo progressivamente limitado,
crescentemente esvaziado dos seus poderes efectivos, cada vez mais confinado ao
formalismo dos rituais democráticos – de que não pode prescindir sem se negar perante
as opiniões públicas – mas sem conteúdo efectivo (alternâncias sem
alternativas, controle mediático, regulação de fachada…). Empurrado para a
quase exclusiva delegação de poderes numa elite política que pouco mais faz que
gerir os tempos e as regras que interessam aos mercados e em nome dos quais se
regulam todas as restantes áreas, incluindo a política propriamente dita.
Em entrevista recente, Euclides Tsakalotos, ministro-adjunto para as relações
económicas internacionais no ministério dos Negócios Estrangeiros do governo
grego e actual coordenador das negociações em Bruxelas, expressa assim a sua
frustração pelo andamento das mesmas: “Enquanto
universitário, quando apresento um argumento numa discussão, espero que quem
está diante de mim apresente um contra-argumento. Ora o que nos opuseram foram
regras. Quando evocamos as particularidades da Grécia, o seu carácter insular,
por exemplo, respondem-nos: pouco importa, há regras e é preciso respeitá-las.”
Aos argumentos gregos, os burocratas de
Bruxelas apenas conseguem contrapor… regras, a razão esbarra na burocracia!
Não é por acaso nem
é inocente a estratégia erguida em torno da trincheira
da burocracia em que parecem acantonados os negociadores das Instituições
(a nova designação dos credores para a desacreditada ‘troika’). Eles sabem bem
que, com o tempo a correr a seu favor (a pressão financeira sobre a Grécia ameaça
tornar-se insuportável), não precisam de desperdiçar argumentos, apenas
aguentar firme nas posições já conquistadas e, tal como Passos Coelho em
Portugal, ir progredindo na consolidação do processo de total liberalização em
benefício dos mercados, sob pretexto da globalização, mesmo que isso implique
sacrificar até ao limite a maioria do povo, obrigando-o a abdicar dos seus
interesses mais legítimos.
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