quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sequestrados ( I )

I – O cerco financeiro à democracia…

Se algum mérito é possível extrair da crise grega e da insistentemente proclamada situação de ‘impasse à beira do abismo’ ele é o de ter exposto com toda a crueza e para além de qualquer dúvida ou sofisma o anémico estado actual da democracia. Talvez até a sua ausên- cia se o que sobra é a aparência formal a que a pretendem reduzir (eleições periódicas, liberdade de expressão…), subalternizada perante decisões financeiras tidas por inevitáveis, submetida à lógica de um poder mercantil absoluto que, depois de alcançar o domínio mundial (a lógica da globalização é isso mesmo, o poder absoluto mercantil), cada vez se afigura mais já só ser possível travá-lo pela derrocada para onde a vertigem de uma acumulação sem limites o parece querer precipitar, mas que ameaça, com ela, arrastar tudo o resto.

O que se assiste hoje, na Grécia, não é ‘apenas’ a mais uma escaramuça desse prolongado e basilar conflito que vem opondo a Democracia à Finança (actual guarda-avançada do poder mercantil), pois o seu desfecho, se envolve directamente os gregos, pode vir a afectar também e de forma decisiva a essência da própria democracia e o futuro das relações sociais em geral, quer daí resulte consolidar-se na sociedade a ideia – e a prática – de uma maior institucionalização do poder dos mercados (da escassa minoria que os controla) contra o poder das instituições democráticas (da vasta maioria que as legitima e, ao mesmo tempo, suporta os ditos mercados), quer sobretudo se, num volte face que hoje ninguém arrisca prever, se lograr o reforço destas. Enfim, saber se o ‘1% dos ricos’ ganha ainda maior força para impor os seus privilégios sobre os interesses globais dos restantes ‘99%’, ou se, pelo contrário, estes obtêm novo alento na luta sem fim pela emancipação de todas as tutelas!

A pretensão de tornar isenta e neutra a decisão social, através das regras do mercado, como defendem os neoliberais, apenas transfere para uns poucos – os que controlam o mercado – a decisão que, por norma universal, cabe à maioria através das regras da democracia. O carácter inconciliável das duas lógicas em presença – lógica mercantil vs. lógica democrática, exclusivismo contra inclusão – implica sempre, na prática, o predomínio de uma sobre a outra. A realidade demonstra que mesmo a tentativa de as conciliar através da regulação do mercado não passa de exercício pouco mais que inútil face ao carácter predatório inscrito na lógica mercantil, sobre as pessoas, a natureza, a vida… A aparência de legitimidade constrói-se com plataformas de duvidosa legalidade, seja o refúgio dos off-shores, geridos e mantidos pelo promíscuo conúbio entre políticos e financeiros, seja através do esconso papel exercido pelas agências de rating na avaliação mercantil (!!!) dos Estados.

Ao longo das últimas quatro décadas e enquanto se assistia ao reforço do poder dos mercados na decisão social, o exercício da democracia foi sendo progressivamente limitado, crescentemente esvaziado dos seus poderes efectivos, cada vez mais confinado ao formalismo dos rituais democráticos – de que não pode prescindir sem se negar perante as opiniões públicas – mas sem conteúdo efectivo (alternâncias sem alternativas, controle mediático, regulação de fachada…). Empurrado para a quase exclusiva delegação de poderes numa elite política que pouco mais faz que gerir os tempos e as regras que interessam aos mercados e em nome dos quais se regulam todas as restantes áreas, incluindo a política propriamente dita.

Em entrevista recente, Euclides Tsakalotos, ministro-adjunto para as relações económicas internacionais no ministério dos Negócios Estrangeiros do governo grego e actual coordenador das negociações em Bruxelas, expressa assim a sua frustração pelo andamento das mesmas: “Enquanto universitário, quando apresento um argumento numa discussão, espero que quem está diante de mim apresente um contra-argumento. Ora o que nos opuseram foram regras. Quando evocamos as particularidades da Grécia, o seu carácter insular, por exemplo, respondem-nos: pouco importa, há regras e é preciso respeitá-las. Aos argumentos gregos, os burocratas de Bruxelas apenas conseguem contrapor… regras, a razão esbarra na burocracia!

Não é por acaso nem é inocente a estratégia erguida em torno da trincheira da burocracia em que parecem acantonados os negociadores das Instituições (a nova designação dos credores para a desacreditada ‘troika’). Eles sabem bem que, com o tempo a correr a seu favor (a pressão financeira sobre a Grécia ameaça tornar-se insuportável), não precisam de desperdiçar argumentos, apenas aguentar firme nas posições já conquistadas e, tal como Passos Coelho em Portugal, ir progredindo na consolidação do processo de total liberalização em benefício dos mercados, sob pretexto da globalização, mesmo que isso implique sacrificar até ao limite a maioria do povo, obrigando-o a abdicar dos seus interesses mais legítimos.

(...)

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