Sob capa liberalizante, não há
discurso (e correspondente prática) mais anti-liberal do que a dos liberais
instalados no poder. Com o argumento de que se torna necessário criar as
condições, ou eliminar os obstáculos, ao exercício pleno da liberdade
individual, tudo o que antes da conquista do poder era considerado mau,
defeito ou erro, passa depois a ser bom, indispensável e certo!!!
Nada de novo, valha a verdade,
relativamente a outros detentores do poder que, quando a ele ascendem, procedem
exactamente de igual modo, no discurso e na prática. Com uma ‘pequena’
ressalva, porém, que aqui faz muita diferença: o suporte moral do discurso
liberal assenta numa pretensa libertação do indivíduo, no sentido da sua
autonomia. A começar, naturalmente, pela eliminação do que consideram as
amarras do Estado que supostamente o manietam: defesa dos direitos
sociais, apoios à integração social (contra a exclusão), medidas contra as
desigualdades,...
Liberto de todas as amarras,
políticas e sociais, o indivíduo ficará então apto a expressar todas as suas
capacidades e a desenvolver todas as suas potencialidades: ‘Fim da
História’! ‘Piedosos’ propósitos, contudo, que esbarram na contradição do discurso
liberal do ‘nós todos’, que os faz passar do extremo individualismo, a um espúrio colectivismo socializante!? Utilizado tanto pelos políticos
enfeudados, como por analistas prosélitos, constitui peça essencial no discurso
de justificação da estratégia liberal de combate à actual Crise:
‘Nós todos’
temos consciência de viver acima das nossas possibilidades!
‘Nós todos’ percebemos que não há alternativa à austeridade, que ela é inevitável!
‘Nós todos’ sabemos que se trata de pessoa muito competente (quando se fala do Catroga da EDP, do Frexes da AdP, do Vasco do CCB, do Costa do BP, de qualquer nomeado de ‘confiança’)!
‘Nós todos’ já intuímos que vamos perder regalias e até direitos adquiridos!
‘Nós todos’... sem excepções nem contestação!
‘Nós todos’ percebemos que não há alternativa à austeridade, que ela é inevitável!
‘Nós todos’ sabemos que se trata de pessoa muito competente (quando se fala do Catroga da EDP, do Frexes da AdP, do Vasco do CCB, do Costa do BP, de qualquer nomeado de ‘confiança’)!
‘Nós todos’ já intuímos que vamos perder regalias e até direitos adquiridos!
‘Nós todos’... sem excepções nem contestação!
Mas este discurso unanimista em que, sem consulta ou
delegação, nos pretendem envolver pondo alguém a falar por nós como se
reflectisse o pensamento de ‘todos’ – a narrativa do denominado pensamento
único – não difere muito, na substância, de outras práticas de
coarctação das liberdades individuais, seja por motivos políticos, religiosos
ou meramente ideológicos. Apenas a forma é mais rebuscada e não reveste a
violência física utilizada noutras situações para garantir, no fim de contas,
os mesmos efeitos, o enfeudamento unânime de posições à política de descarada
defesa dos interesses privados – sob pretexto de assim melhor se
protegerem os públicos!
Trata-se, afinal, da versão
liberal daquilo que mais verberam, seja o fundamentalismo religioso (islâmico,
pois claro, dificilmente se atrevem a caracterizar deste modo práticas cristãs
de idêntico teor), seja a tão esconjurada tese da ‘ditadura do proletariado’.
O fundamentalismo (ou ditadura) destes iluminados liberais revela-se
fanaticamente disposto a salvar o mundo de todas as tiranias, pela imposição de
uma única: a que se acoberta na‘sua’ ideologia da liberdade (ou
antes, na ideologia da ‘sua’ liberdade), precisamente a que,
através do exercício do poder, lhes garante o acesso à riqueza e à
exclusividade, lhes permite toda a discricionariedade!
Não surpreende, pois, o ataque
que é feito a direitos básicos, mesmo tão essenciais à vida como são os
cuidados de saúde, em nome, claro, de uma suposta maior eficiência económica –
que assegure, é essa a expectativa destes iluminados, a preservação de tal
exclusividade. Pouco importa se à custa da redução da qualidade de vida da
maioria, até mesmo de muito sofrimento!
Respigo excertos de uma entrevista recente a Daniel Bessa:
‘Um dia vai ter de se por em questão o Serviço Nacional de Saúde. (...) Uma
pessoa como eu deve pagar a saúde’. O raciocínio está invertido. É
precisamente para poder ser como é e continuar a distanciar-se (quantas vezes?
10, 20, 100, 200,...?) da imensa maioria que apenas consegue sobreviver, é que
ele se propõe pagar a saúde – e também a educação, a reforma, a mobilidade,...
Seguramente até já a paga, nos privados a que recorre, dificilmente este
assanhado guru liberal (a quem, por um dia ter passeado de braço dado com
Guterres, se colou o rótulo de socialista!) se sujeita às ‘bichas’ do SNS!
Tudo o que foi sendo construído e
hoje constitui o edifício do Estado Social Europeu – conjunto de direitos
básicos imprescindível ao exercício da cidadania (mesmo considerando as
diferenças que separam os diversos sistemas nacionais) – é posto em causa a
partir da sua base: na opinião destes exacerbados liberais, tudo deve ser tendencialmente
pago (mesmo que isso contrarie o preceito constitucional que fala em... tendencialmente
gratuito ), pois esse é o argumento para poderem manter as distâncias e a
justificação para continuarem até a aumentá-las.