domingo, 29 de janeiro de 2012

O discurso (e a prática) do ‘nós todos’


Sob capa liberalizante, não há discurso (e correspondente prática) mais anti-liberal do que a dos liberais instalados no poder. Com o argumento de que se torna necessário criar as condições, ou eliminar os obstáculos, ao exercício pleno da liberdade individual, tudo o que antes da conquista do poder era considerado mau, defeito ou erro, passa depois a ser bom, indispensável e certo!!!

Nada de novo, valha a verdade, relativamente a outros detentores do poder que, quando a ele ascendem, procedem exactamente de igual modo, no discurso e na prática. Com uma ‘pequena’ ressalva, porém, que aqui faz muita diferença: o suporte moral do discurso liberal assenta numa pretensa libertação do indivíduo, no sentido da sua autonomia. A começar, naturalmente, pela eliminação do que consideram as amarras do Estado que supostamente o manietam: defesa dos direitos sociais, apoios à integração social (contra a exclusão), medidas contra as desigualdades,...

Liberto de todas as amarras, políticas e sociais, o indivíduo ficará então apto a expressar todas as suas capacidades e a desenvolver todas as suas potencialidades: ‘Fim da História’! ‘Piedosos’ propósitos, contudo, que esbarram na contradição do discurso liberal do ‘nós todos’, que os faz passar do extremo individualismo, a um espúrio colectivismo socializante!? Utilizado tanto pelos políticos enfeudados, como por analistas prosélitos, constitui peça essencial no discurso de justificação da estratégia liberal de combate à actual Crise:
Nós todos temos consciência de viver acima das nossas possibilidades!
Nós todos percebemos que não há alternativa à austeridade, que ela é inevitável! 
Nós todos sabemos que se trata de pessoa muito competente (quando se fala do Catroga da EDP, do Frexes da AdP, do Vasco do CCB, do Costa do BP, de qualquer nomeado de ‘confiança’)!
Nós todos já intuímos que vamos perder regalias e até direitos adquiridos!
Nós todos... sem excepções nem contestação!

Mas este discurso unanimista em que, sem consulta ou delegação, nos pretendem envolver pondo alguém a falar por nós como se reflectisse o pensamento de ‘todos’ – a narrativa do denominado pensamento único – não difere muito, na substância, de outras práticas de coarctação das liberdades individuais, seja por motivos políticos, religiosos ou meramente ideológicos. Apenas a forma é mais rebuscada e não reveste a violência física utilizada noutras situações para garantir, no fim de contas, os mesmos efeitos, o enfeudamento unânime de posições à política de descarada defesa dos interesses privados – sob pretexto de assim melhor se protegerem os públicos!

Trata-se, afinal, da versão liberal daquilo que mais verberam, seja o fundamentalismo religioso (islâmico, pois claro, dificilmente se atrevem a caracterizar deste modo práticas cristãs de idêntico teor), seja a tão esconjurada tese da ‘ditadura do proletariado’. O fundamentalismo (ou ditadura) destes iluminados liberais revela-se fanaticamente disposto a salvar o mundo de todas as tiranias, pela imposição de uma única: a que se acoberta nasua’ ideologia da liberdade (ou antes, na ideologia da ‘sua’ liberdade), precisamente a que, através do exercício do poder, lhes garante o acesso à riqueza e à exclusividade, lhes permite toda a discricionariedade!

Não surpreende, pois, o ataque que é feito a direitos básicos, mesmo tão essenciais à vida como são os cuidados de saúde, em nome, claro, de uma suposta maior eficiência económica – que assegure, é essa a expectativa destes iluminados, a preservação de tal exclusividade. Pouco importa se à custa da redução da qualidade de vida da maioria, até mesmo de muito sofrimento!

Respigo excertos de uma entrevista recente a Daniel Bessa: ‘Um dia vai ter de se por em questão o Serviço Nacional de Saúde. (...) Uma pessoa como eu deve pagar a saúde’. O raciocínio está invertido. É precisamente para poder ser como é e continuar a distanciar-se (quantas vezes? 10, 20, 100, 200,...?) da imensa maioria que apenas consegue sobreviver, é que ele se propõe pagar a saúde – e também a educação, a reforma, a mobilidade,... Seguramente até já a paga, nos privados a que recorre, dificilmente este assanhado guru liberal (a quem, por um dia ter passeado de braço dado com Guterres, se colou o rótulo de socialista!) se sujeita às ‘bichas’ do SNS!

Tudo o que foi sendo construído e hoje constitui o edifício do Estado Social Europeu – conjunto de direitos básicos imprescindível ao exercício da cidadania (mesmo considerando as diferenças que separam os diversos sistemas nacionais) – é posto em causa a partir da sua base: na opinião destes exacerbados liberais, tudo deve ser tendencialmente pago (mesmo que isso contrarie o preceito constitucional que fala em... tendencialmente gratuito ), pois esse é o argumento para poderem manter as distâncias e a justificação para continuarem até a aumentá-las.

Em nome da liberdade, são destruídas as condições mínimas que permitem o seu exercício!