terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Estado mínimo ou Democracia limitada?

Já o afirmei antes, a actual crise e a austeridade curativa – punitiva! – que a facção no poder tem vindo a impor para a debelar, teve pelo menos o mérito de tornar claro, até de escancarar, os reais objectivos que animam, por agora, o embuste liberal. Sob o propósito de reduzir o Estado (a tese do Estado mínimo e tecnocrático), o que essa corja pretende mesmo é reduzir a Democracia (a tese da democracia limitada), eliminar obstáculos ao exercício do poder pelos mercados. Todas as teses invocadas para impor a austeridade – desde o ‘termos vivido acima das nossas possibilidades’ ao famoso TINA do ‘não há alternativa’ – convergem para a invocada inevitabilidade de medidas que têm em comum restringir direitos democráticos, mas mantendo inalterável o peso do Estado.

Sem o explicitar abertamente – não tardarão muito a fazê-lo! – a concepção ideológica base por trás desta construção social foi bem resumida por um dos gurus emergentes ao longo desta desgraçada experiência política, o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães – o tal que ficou conhecido na Grécia como ‘o alemão’, ao recusar uma frente europeia do Sul com vista, nomeadamente, a uma maior convergência fiscal na zona Euro. Na opinião deste espécime, expressa em entrevista à SICN de 29/Jan. último, as reformas estruturais (!) que o governo tem vindo a empreender visam reforçar a ‘combinação virtuosa entre Estado e Mercado. Deixamos o Mercado funcionar, mas onde ele não funciona bem, corrigimos’ – aí intervém o Estado.

A defesa deste raciocínio simplista não é meramente académica – como benevolamente tal posição foi etiquetada, em Atenas – tão pouco inocente. O Estado é apresentado desprovido de qualificativos, um poder neutro, mero instrumento técnico, orçamental, funcionando à margem das opções democráticas – o Estado tecnocrático. Deste modo, não só admite a sua total subordinação aos poderes fácticos dominantes na sociedade – e sabe-se bem onde é que eles residem nas sociedades capitalistas! – como expressa toda uma filosofia de actuação política decorrente de tal posicionamento teórico. Nesta perspectiva, o Estado corrige quando reforça a acção dos mercados, seja ela qual for – como exemplarmente aconteceu na crise financeira de 2008, com a Banca a ser salva ‘in extremis’ pelos governos democráticos! Em última análise, na visão liberal tecnocrática, o valor da democracia mede-se pela sua capacidade em potenciar o valor de mercado!

Tal como aparece expresso num título recente – Tempo Comprado – do alemão Wolfgang Streeck (com o sugestivo subtítulo ‘A crise adiada do Capitalismo Democrático’): ‘Seguir o caminho dos últimos cerca de quarenta anos levará (...) a uma tentativa de libertação definitiva da economia capitalista e dos seus mercados, não dos Estados – uma vez que os primeiros continuarão a ser dependentes da protecção dos últimos em muitos aspectos –, mas da democracia, enquanto democracia de massas, de acordo com a forma que esta assumia no regime do capitalismo democrático. (...) A utopia da gestão actual da crise também consiste na conclusão – por meios políticos – da já muito avançada despolitização da economia política, cimentada em Estados nacionais reorganizados sob o controlo de uma diplomacia governamental e financeira internacional isolada da participação democrática, com uma população que, nos longos anos de uma reeducação hegemónica, teve de aprender a considerar justos ou sem alternativa os resultados de distribuição dos mercados entregues a si próprios (sublinhados meus).’

Importa aqui aludir ao papel cúmplice da social-democracia europeia, agora que já se fazem ouvir algumas críticas vindas mesmo do seu interior, nesse processo de reeducação para a subordinação às decisões dos mercados soberanos. A própria maioria neoliberal se encarrega de o recordar com frequência, temendo um inusitado arrependimento de quem até aqui se mostrou tão fiel servidor de propósitos que lhes são comuns. E se não alimentam há muito qualquer expectativa na recuperação dos ‘casos perdidos’ da denominada (na sua fraseologia mais moderada) ‘esquerda radical’, não se coíbem de lançar avisos e até ameaças à ‘esquerda recuperável’, a que se engloba no PS dos bons e leais serviços ao sistema – acusado agora, por isso mesmo, de ser o responsável pela crise financeira, omitindo, é certo, com enorme descaramento e desonestidade, as suas próprias culpas, como suporte ideológico do que realmente a precipitou, a liberalização e financeirização da economia!

Acusam-no ainda de não comparecer, dobrado a preceito, aos já iniciados festejos da decretada recuperação económica, de não querer ver aquilo que, afinal, só eles ainda conseguem ver: melhorias no deprimente panorama económico – sem se atreverem, por enquanto, a falar de melhorias no panorama social, embora a manipulação das taxas em torno do emprego/desemprego tenha já começado em força! A consciência do papel charneira que cabe à social-democracia – ao PS – nesta emergência, se historicamente permite temer o pior, não pode excluir a esperança por ténue que seja!