O actual modelo financeiro que
domina em absoluto o capitalismo global dos dias de hoje – realidade incontestada
tanto à direita como à esquerda! – assenta toda a sua eficácia em dois pilares
essenciais, constituídos por duas nebulosas redes de poder: a bem (p)reservada rede de ‘off-shores’ (os famigerados ‘paraísos
fiscais’) e a tentacular rede de
‘analistas do mercado’, vulgarmente designados apenas por ‘analistas’,
tão dominadores e exclusivos eles se tornaram. Os primeiros funcionam
como o destino privilegiado de refúgio do capital errante, a sua base material; os segundos actuam em nome e para o mercado, são eles que o moldam ao
sabor de ideologias que tão bem acoitam os viscosos interesses que servem e
entranham (corroendo) as sociedades, são
eles, enfim, o mercado (mesmo que a
maioria deles colha ‘apenas’ as migalhas destinadas aos serventuários – ainda
assim chorudas mordomias se aferido pela bitola dos rendimentos obtidos pelo
comum das pessoas).
Penetrar neste santuário da
moderna religião do mercado é privilégio reservado apenas aos seus fiéis
corifeus e envolvente liturgia clerical. À vasta caterva de laicos exige-se
acomodação reverente com a explicação de se tratar de assuntos reservados a
especialistas dispondo dos meios técnicos para atingirem tão impenetrável percepção.
Ainda assim, na imensa nebulosa de circuitos e processos que envolve os ‘off-shores’, é possível identificar redes,
estabelecer ligações, localizar até moradas, construir afinal o intrincado
meandro da parte mais visível deste autêntico submundo. Já quanto aos analistas, eles escudam-se atrás dessa
designação anódina e confortável, mantendo um quase anonimato obsceno que lhes
permite influenciar e determinar sem ser possível responsabilizá-los por
quaisquer danos provocados. Mesmo a sua parte mais visível e identificável, as firmas
de ‘rating’, apesar do papel absolutamente determinante que exercem
sobre as empresas e os países, nada parece poder acontecer-lhes como se observou
após a sua desastrada (ou criminosa?) actuação na crise do ‘sub-prime’!
E se aos ‘off-shores’
ainda se atribui, na versão benévola,
um cheirinho de ilícito e até se admite uma complacente reserva de práticas
irregulares – porque na versão realista
eles são apodados mesmo de antros de delinquência, tantas as situações delituosas
em que incorrem, e isso não obstante terem sido constituídos precisamente com a
finalidade de tornearem as leis nacionais! – já quanto aos analistas
eles gozam, enquanto corpo profissional (apesar das inúmeras falhas, dramáticos
fracassos…), de reconhecida áurea de competência técnica, o que lhes permite exibirem-se
como detentores de certezas irrefutáveis que poucos ousam questionar. É essa
convicção que perpassa por toda a informação transmitida diariamente pela
comunicação social em que, por exemplo, o sobe e desce das cotações bolsistas (que
garante o lastro de rigor científico da mensagem!) é acompanhado pela
interpretação (psicanalítica?) dos humores de mercado, falando-se de
sentimentos e de reacções antropomórficas que eles persentem existir a partir da
simples manipulação estatística dos números!
A realidade construída pelos
analistas – misto de esoterismo e charlatanice – pouco ou nada tem a ver com a
vida real das pessoas. Mas é ela que domina e impregna por completo o
quotidiano das sociedades modernas, que traça os limites do importante e do
acessório, que define os valores e os princípios a observar. Os analistas são
apenas a ponta visível de um universo financeiro de dimensões monstruosas com
ligações a todos os aspectos e áreas da vida social, expoentes de práticas de
um ‘modo
de vida’ que não se limita à actuação bolsista em Wall Street ou na
City, mas influencia e condiciona tanto a política na Grécia como a economia na
China, do mesmo modo que o faz também (ainda que a outro nível) em situações tão
aberrantes como a dos epifenómenos – assim se espera que sejam! – dos autoproclamados
Estados Islâmicos/EIs (Iraque, Líbia, Nigéria…). Neste caso trata-se, como é
óbvio, de um subproduto não desejado (dano colateral?), a face negra dessa realidade,
mas ainda assim um derivado directo do jogo dúplice que caracteriza a cultura
veiculada pela total mercantilização da vida na sua versão radical actual de absoluta
financeirização. Não foram – não são! – ‘os grupos por trás desta aberração’ armados pelas mesmas potências que
depois se apressam a condená-los pelas acções em que tais armas são usadas?
Afinal quem gerou o monstro e a quem interessa a sua perpetuação?
A cada nova decapitação pelos
fundamentalistas dos EIs, a reacção dos políticos de todo o mundo perante esse
ritual macabro inominável tem-se esgotado num equivalente mas ineficaz ritual
de comentários, acompanhado, como convém à ocasião, do conveniente ar pungente
e fúnebre. Proferidas estas sentenças e assim apaziguadas as consciências, tudo
parece retomar a regular ‘normalidade’. De que estes actos parecem já fazer
parte – a par da litania recorrente com que os analistas continuam a pontuar a
evolução das Bolsas e a marcar o rumo das sociedades. Para maior glória e
proveito dessa entidade mítica e dominadora que dá pelo nome de ‘mercados’.
Os mais optimistas dirão
que tudo isto não passa da espuma dos dias, que as manifestações mais bizarras
ou mais aberrantes da actual dominante financeira não irão resistir às mais
determinantes exigências materiais da existência humana, pois são estas que alicerçam
a História. Mas os riscos da acção consciente que é suposto a política
protagonizar vir a ser ultrapassada pelos acontecimentos, de não haver capacidade
precisamente política para antecipar os efeitos e alterar as causas que
têm vindo a produzir sociedades cada vez
mais disfuncionais – aumento das desigualdades, expansão da violência, caos
urbanístico, esgotamento dos recursos, predação ambiental… – permitindo que
todos estes efeitos (e outros) arrastem as sociedades para situações de desfecho
de todo imprevisível, avolumam-se e tornam-se cada dia mais sérios e consistentes.
Até onde irá a democracia ser capaz
de resistir aos contínuos avanços dos mercados
talhados à medida pelos ditos analistas políticos - perdão, financeiros?