quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A mudança política em Portugal (III)

Prestes a desparecerem de cena. Prestes a emigrarem?

Da austeridade ao rigor: as pessoas no lugar dos mercados?

A grande novidade nas eleições de 4 de Outubro foi a expressão clara de que a mudança exigida pelos eleitores não se esgotava na mera e tradicional alternância de protagonistas no poder político: rejeita a sua continuidade à direita que o detinha, mas também não confia no PS para lho entregar sem condições. Assim, para além dos protagonistas, os eleitores exigiram uma mudança de políticas, uma alternativa em lugar da alternância. É este o contexto que permite explicar o acordo à esquerda agora celebrado, só possível pela conjugação dos resultados dessas eleições: por um lado uma votação no PS aquém das expectativas, por outro a forte representação do BE e a resistência do PCP acabaram por impor dentro do próprio PS (até como forma de sobrevivência política) a constituição de um governo com apoio parlamentar do BE, PCP e PEV.

Embora a mudança política que aqui se configura como alternativa de esquerda à austeridade imposta pela direita seja intentada através de um acordo visando não uma coligação mas ‘apenas’ o apoio parlamentar a um governo do PS, isso em nada diminui o alcance que se pretende dele extrair no que é de mais essencial a tal mudança – a reposição dos direitos do trabalho e a defesa do Estado Social – ao mesmo tempo que garante maior coerência interna pelo facto de ser constituído apenas por um só partido que, além do mais, não gera resistências nas sensíveis (e pouco democráticas) instâncias europeias. Poder-se-ia mesmo sintetizar a política do PS, para a Europa, pautada basicamente pelo rigor orçamental e financeiro, em detrimento de uma política da austeridade (visando a desvalorização do trabalho e a destruição do Estado Social). É, pois, no contexto em que a austeridade dá lugar ao rigor, que os ‘princípios orientadores’ que enformam o acordo assumem maior importância face à sua concretização num Programa de Governo e sobretudo nos OE anuais, garantindo a estabilidade e longevidade que estes, sujeitos a actualizações periódicas, não podem, como é óbvio, assegurar.
    
Assiste-se, entretanto, ao alardear da verdadeira natureza política da direita, na desesperada tentativa de vir a influenciar o exangue poder presidencial – de quem, não obstante, depende a opção imediata a seguir. Percebe-se que para a direita, a perda do poder que, directa ou indirectamente, sempre havia detido (antes e depois do 25 de Abril) é uma ideia simplesmente insuportável, a ameaça de uma alternativa política que afronta a sua tese do ‘não há alternativa’ tornou-se-lhe intolerável. Daí a recusa em aceitar todas as consequências dos resultados eleitorais e a enorme agitação que tem vindo a promover: retirada a máscara da decência e dos formalismos democráticos, dos insultos passou às ameaças e não tem pejo em apelar ao desvairado golpismo da mais espúria proposta de revisão constitucional feita à medida dos seus interesses imediatos… Neste momento a direita vive obcecada em desvalorizar o acordo (que é frágil, pouco consistente, não fala da Europa…), cavalga todos os extremismos, incluindo os apelos mais destemperados e antipatrióticos aos mercados, agências de rating, UE... A reacção de indiferença dos invocados salvadores provocou o desalento numa direita em perigoso desatino!

Para a esquerda, porém, esta realidade nova representa um enorme desafio e o risco é avaliado pela percepção das forças partidárias que o suportam em saberem dependente dele o futuro dos respectivos projectos políticos. Mais que a assinatura do acordo, pois, a melhor garantia do compromisso assumido e do empenhamento de todos os seus signatários é, acima de tudo, a consciência de que, caso algo corra mal, os mais penalizados serão os que incorrerem na quebra do acordado – como tem vindo a ser bem destacado por muitos, incluindo os seus representantes. De algum modo é nisso que a direita aposta: nas fricções que inevitavelmente hão-de surgir entre as boas intenções da esquerda e as condições adversas de uma realidade, interna e externa, claramente hostil à mudança ou a qualquer alternativa ao modelo imposto por Berlim/Bruxelas; na exploração das divergências idiossincráticas (históricas, ideológicas, diferente base social) de cada uma das forças políticas que o subscreveram – incluindo nos pontos que não foram objecto das negociações (mas devidamente sinalizados).

A realidade se encarregará de ditar, a seu tempo, o destino das principais áreas de divergência fora do acordo (Tratado Orçamental, Euro, dívida…). Tanto a realidade que é possível antecipar em cada uma dessas áreas (v.g., adensam-se os sinais de uma nova crise financeira/bancária), como a que surgirá de imprevisto por força de acontecimentos ‘fortuitos’ (v.g., depois dos ataques de Paris, Hollande informou que vai continuar a não respeitar o sacrossanto limite do deficit, agora sob pretexto dos investimentos exigidos pela luta contra o terrorismo). Muito além da persistente e ilegítima discussão em torno da legitimidade do acordo – traduzindo apenas o desespero de uma direita (acolitada por formatados, despeitados e bem amestrados opinadores políticos) que se recusa a largar o poder e que tenta ainda ‘recuperar’ o PS ou, no mínimo, condicionar-lhe a acção – todos têm plena consciência da magnitude dos problemas envolvidos na mudança que a esquerda se propõe levar a cabo.


Resta então aguardar pela arrastada decisão de um Presidente que, antes das eleições se ‘gabarolava’ de ter todos os cenários estudados e saber muito bem o que iria fazer depois delas. Afinal os resultados apurados e as negociações estabelecidas entre parceiros nada recomendáveis segundo os cânones vesgos de um político que diz não o ser, parecem haver-lhe trocado as voltas e o homem vive na angústia de ter de fazer aquilo que tem vindo a público dar a entender que não quer fazer – a ‘crise política’ de que fala foi ele que artificialmente a criou! Em contraste com o que foi a miséria política, intelectual e moral do mandato de um Presidente gabarolas e pesporrente, de momento às voltas com as opiniões de quantas corporações existem no País – afinal o único ‘país real’ que conhece – esta imposta espera ‘cavaquista’, contudo, algo de positivo tem vindo a granjear: deu mais tempo à política para descer às ruas, invadir as praças, interessar as pessoas, tomar conta da vida – e isso é bom! Quanto à contagem decrescente do que resta do ‘cavaquismo’, decerto não rezará a história, mas acentua os traços de um personagem mesquinho e destituído de decência! Depois de finado, nem paz à sua alma instiga – apenas porque um ser assim é seguramente desprovido dela!

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A mudança política em Portugal (II)

A história de um acordo à esquerda: um passo à retaguarda, dois passos em frente

A mudança política em Portugal teve, no dia 10 de Novembro/15, o culminar apenas da primeira fase de um processo que se adivinha longo e atribulado. Deu-se, para já, um passo importante nesse processo, mas tudo não passou ainda dos aspectos mais formais envolvidos num trajecto que vai ter já muito em breve, tudo o indica (e a despeito dos humores venenosos do ‘pastel’ de Belém), a sua grande prova de fogo. Foram criadas bases para se dar início a uma mudança real na política portuguesa, mas as transformações sociais exigidas enfrentam um cenário de tantas incertezas, a nível interno e externo, que se torna impossível antecipar seja o que for, a imprevisibilidade é mesmo a única certeza. Talvez seja esta até a única área de possível acordo com a caterva de comentadores que, por estes dias ainda mais que no passado, pressurosamente se afadigam em pintar o caos e o drama perante o que asseguram ser uma ‘alternativa impossível’ que teimam em esconjurar.

Mas se é difícil antecipar o futuro, agora em particular, afigura-se oportuno ponderar sobre o caminho andado para aqui chegar e recordar alguns dos passos que o possibilitaram. Embora se devam sobretudo acentuar os valores comuns a todos quantos se reclamam da esquerda, herdeira de uma longa tradição sintetizada na trilogia que a revolução francesa consagrou, não é possível ignorar – neste momento importa até avivá-lo bem (coisa que os comentadores também fazem mas com propósitos antagónicos dos aqui terçados) – o ponto de partida das divergências ideológicas das três principais forças políticas que garantem o acordo que torna possível essa mudança. Independentemente das razões e explicações para o longo e profundo divórcio entre posições políticas aparentemente próximas, o certo é que só agora parecem criadas as condições que permitiram um entendimento mínimo entre PS, BE e PCP. Um entendimento desde logo na rejeição conjunta de uma posição política antagónica aos três (consubstanciada na política de austeridade actual), depois traduzido em programa mínimo de governo – o que de facto constitui a grande novidade!

Para aqui chegar, porém, foi preciso, antes, passar pela prova da divisão profunda que separava as esquerdas, como no famigerado chumbo do PEC IV, apresentado pelo PS de Sócrates e rejeitado no que foi entendido por uma aliança espúria entre esquerda (BE, PCP e PEV) e direita (PSD e CDS/PP). Mas só na aparência é possível considerar essa rejeição como uma aliança: a direita entendeu, depois de aprovar os anteriores três PECs, rejeitar o IV para poder ‘ir ao pote’ do poder (na expressão do seu líder Passos Coelho). Quanto à esquerda, apenas manteve a coerência da sua posição política: seria estranho e sobretudo incoerente se, depois da rejeição dos três anteriores PECs, votasse favoravelmente, por puro tacticismo, o IV! Mas mais que voltar à história desse tempo, por demais conhecida, o que mais importa agora destacar são os efeitos dessa posição na evolução política.

Sabe-se o que se seguiu a esse chumbo. Após eleições antecipadas, a coligação de direita tomou o poder propondo-se ir além do ‘memorando’ imposto pela troika, traduzindo-se na aplicação de uma política de austeridade com o propósito explícito de empobrecer o país – acusado de viver acima das suas possibilidades – através de uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para o capital impondo a maior e mais violenta agressão aos direitos dos trabalhadores em democracia. Os resultados desta operação política foram duplos: por um lado a direita radicalizou-se ao ponto de pretender converter o Estado Social num Estado assistencialista, eliminando assim os últimos resquícios de social-democracia que ainda perduravam num partido que dela se reclama; por outro sinalizou à esquerda a prioridade da defesa desse Estado Social contra os ataques desta direita, criando as condições para o acordo agora assumido.

Sem a experiência que o ‘episódio PEC IV’ acabou por proporcionar – permitindo à direita coligada aplicar o seu programa num violento exercício de poder sobre quem trabalha, causticando o PS na oposição – dificilmente a esquerda convergiria primeiro na avaliação conjunta do que foi a destruição inútil de vidas e recursos, ímpar na democracia portuguesa, depois na agregação de esforços no sentido da mudança que agora se perspectiva. Foi preciso o PS perceber a natureza desta direita ideologicamente comprometida e os dois partidos à sua esquerda concluírem que, para garantir o essencial – a vida das pessoas – nas condições actuais, isso implicava cedências programáticas (mesmo que temporárias), para que um acordo nunca antes conseguido entre os três fosse agora possível e viesse a concretizar-se. Um pequeno passo para a mudança – mas um passo bem decisivo!

sábado, 7 de novembro de 2015

Mudança política em Portugal: da extrema-direita à esquerda

A perspectiva das negociações à esquerda se saldarem por um acordo de governo, permitiu revelar, talvez como nunca antes havia ainda acontecido, a verdadeira natureza da direita portuguesa. Da sobranceria inicial perante a mera intenção dos partidos em negociar, ao crescente nervosismo expresso numa irritação por vezes insultuosa, até ao clima de chantagem e ameaças (à medida que se foi convencendo que a intenção era para levar a sério e não apenas uma forma de ‘pressão negocial’), a direita nacional, vertida nos dois partidos que praticamente a esgotam (CDS/PP e PPD/PSD), demonstrou à evidência que quem a constitui – e quem conjunturalmente a lidera e a representa – revela os tiques totalitários com que frequentemente pretende estigmatizar (e excluir) a esquerda.

Importa esclarecer, entretanto, que o totalitarismo que impregna a ideologia e a prática da direita nacional lhe advém por duas vias. A primeira, universal e presente na globalidade das formações de direita (e em muitas ditas de esquerda, a que o PS até aqui não foi imune), decorre da ideologia do pensamento único neoliberal, imposto pelo que se designa de globalização inevitável construída na base da liderança incontestada dos mercados – expressa nas políticas de austeridade. Ao excluir qualquer alternativa fora desta concepção (que o acrónimo TINA sintetiza), esta ideologia revela-se antidemocrática e totalitária, ao nível dos totalitarismos que causticaram o séc. XX. O excessivo e acéfalo seguidismo evidenciado pelos prosélitos da versão lusa desta componente universal na formação do totalitarismo, pode explicar-se pelos resquícios, ainda presentes em alguns estratos, da herança salazarenta e da nostalgia colonialista (sobretudo nos ‘retornados’ mais revanchistas) – ambos contribuindo para diferenciar a direita portuguesa das suas congéneres europeias. Isso explicaria também o facto da extrema-direita em Portugal manter expressão residual (bem longe das conhecidas na Europa): coexistindo sem atritos no mesmo espaço partidário da direita tradicional, não vê vantagens nem necessita de se autonomizar.

Foi a esta promíscua amálgama de ideologias e interesses (dos negócios aos partidários), que o PS de António Costa, contra todos os Assis nele infiltrados, decidiu dizer não, porventura antevendo o risco de poder vir a perder o que resta da sua identidade social diluindo-se numa prática política que tudo submete ao poder dos mercados. De pronto, a histeria instalou-se na direita. Na direita dos políticos, dos comentadores, dos analistas TINA do pensamento único sem lugar a alternativas, dos democratas com pânico de, afinal, a democracia poder funcionar, todos manifestando uma incontida ira contra os evitáveis riscos de aventuras políticas ao arrepio da vontade de Bruxelas/Berlim. Costa é acusado de falta de ética, de golpista, de traição (o episódio Seguro…). A perspectiva de um governo à esquerda é caracterizada como ‘fraude eleitoral’, até mesmo como ‘golpe de estado’! Nunca como agora surgiram tantos especialistas em marxismo, leninismo, marxismo-leninismo, trotskismo e afins. Duvida-se que 1% sequer dos que esgrimem esses conceitos, as mais das vezes utilizados apenas para apostrofar adversários ou evidenciar negros presságios, saiba um mínimo do que eles envolvem. Nos seus raciocínios estereotipados, pensarão talvez que bastará a simples invocação do nome para incutir o terror desejado!

Não podem ignorar-se num futuro governo das esquerdas as dificuldades próprias de partidos com programas muito diferentes em áreas sensíveis, embora as grandes divergências entre PS e os partidos à sua esquerda – em torno do Tratado Orçamental (TO), Euro e renegociação da dívida – aparentem ser mais teóricas que práticas. Em teoria, o PS afirma-se a favor do Euro e do TO, contra a renegociação da dívida; Bloco e PCP dizem-se contra as duas primeiras, lutam pela terceira. Na prática, no entanto, é possível observar:
-        Sobre o TO, é hoje quase unânime a opinião de que é impossível de cumprir, nomeadamente no preceito de redução da dívida para 60% do PIB em ‘apenas’ 20 anos, nas condições económicas actuais (daí o PS falar na necessidade de uma leitura inteligente do Tratado, que mais não é que a sua derrapagem inevitável).
-        Quanto ao Euro, as assimetrias da sua construção só agora começam a ser evidenciadas e com enorme brutalidade, a nível económico e nomeadamente nos efeitos sociais: na prática todos estão de acordo que não pode continuar como está. Necessita, pois, de um maior amadurecimento para se confirmar como moeda inviável levando, portanto, à sua alteração ou mesmo à sua rejeição.
-        Por último, a renegociação da dívida irá colocar-se, mais cedo ou mais tarde (quanto mais tarde o for, maior a probabilidade de os seus efeitos serem mais desastrosos para todos, devedores e credores). Sabendo-se ser inevitável, falta apenas saber quando irá acontecer. Um dos actuais “vice” de Costa (Pedro Nuno Santos) foi co-autor (com F. Louçã, R. Cabral e Eugénia Pires) de uma proposta (modesta?) de renegociação da dívida.


Perante a cada vez mais evidente degradação das condições financeiras – a nível nacional, europeu e até mundial – a tarefa de António Costa e dos seus prováveis parceiros de esquerda no suporte de uma solução destinada acima de tudo a apear o poder totalitário da austeridade e em repor um mínimo de decência na vida colectiva afigura-se tremendamente difícil. Após as eleições, a esquerda (PS, BE, PCP) viu-se confrontada com um dilema político: assumir os resultados para, na sequência da campanha, estabelecer um acordo histórico para governar, travando a austeridade, ciente dos riscos de afrontar uma situação de extrema debilidade financeira, com perspectivas de agravamento; ou, na avaliação desses riscos, por mero tacticismo evitar o acordo e aguardar melhor oportunidade para derrubar o governo já empossado, permitindo à direita continuar no poder mantendo a austeridade permanente – além de não garantir sucesso, esse tacticismo acabaria por alienar todo o apoio eleitoral. A decisão, para além de todos os calculismos e pesados os riscos e os compromissos, só podia ser devolver às pessoas a vida roubada pela austeridade.