quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O tabu do sistema financeiro: o controlo público da banca

A regulação... desregulada!
Quem paga, manda!” A frase, pronunciada a propósito da intervenção externa na definição das contrapartidas exigidas no ‘memorando’ para o suposto apoio financeiro da troika, é de Manuela Ferreira Leite e parece ter entrado no subconsciente das pessoas, para quem um país é gerido como se de uma família se tratasse (outro dos conceitos de um falso senso comum que se procurou instituir para justificar a política de austeridade que lhe foi associada). No último ‘Eixo do mal’ (26/12/15) este mesmo conceito foi de novo esgrimido (Daniel Oliveira), se bem que num contexto distinto, relacionado com o processo de ‘resolução’ do BANIF: “manda quem paga e somos nós todos que pagamos, os contribuintes”. Porque se torna obsceno assistir à quarta (!) ‘operação de salvação de um banco’ pelos contribuintes, enquanto os lucros, quando os houve – e foram muitos os milhões repartidos pelos ‘quatro’ ao longo dos anos! – acabaram sobretudo apropriados pelos respectivos accionistas e gestores. A salvo dos inevitáveis percalços num qualquer off-shore!

À constatação imposta pela realidade de que na banca ‘os lucros são privados, mas os prejuízos são públicos’, já pouco (ou mesmo nada) mais resta acrescentar do que insistir numa evidência: a banca não é nem pode ser tratada como um negócio como os outros. Independentemente das convicções ou da ideologia que enformem as decisões políticas, nomeadamente as que respeitam ao direito de propriedade, importa convergir no facto, decisivo e incontestável, de que o essencial da banca actual não está na captação de poupanças, mas na faculdade de criar moeda, tornando os bancos nos principais geradores da massa monetária em circulação. Uma faculdade associada à atribuição de crédito, na base do famigerado critério das ‘reservas fraccionadas’. Uma faculdade, acrescente-se, reservada ao Estado soberano, o qual a outorga aos bancos mediante – assim era suposto dever acontecer – a instituição de critérios de regulação rigorosa, devidamente supervisionados.

Ora, este modelo que funcionou com relativa estabilidade enquanto os Estados dispuseram do controlo efectivo das actividades bancárias, viu-se alterado ao longo dos últimos trinta anos por uma corrente política, dominada pela ideologia neoliberal, advogando e impondo a… desregulação! A começar precisamente pela financeira, em especial a bancária. Daí que qualquer tentativa no sentido de uma maior regulação bancária esbarre em dois obstáculos aparentemente intransponíveis: por um lado, o domínio absoluto da ideologia do mercado livre que, em nome da eficácia na tomada da decisão económica, propugna uma cada vez maior desregulação, por forma a assegurar-se, de acordo com a teoria, uma reclamada neutralidade; por outro, o monstruoso poder financeiro que tal política propiciou, expressa na globalização – de natureza essencialmente financeira – só admitirá largar mão desse incomensurável poder adquirido perante a força ou a catástrofe. Até agora tudo o que tem sido conseguido neste domínio, em resposta à enorme destruição financeira e aos múltiplos escândalos a ela associados, em nada de essencial beliscou a moldura estabelecida pela desregulação após o derrube dos últimos obstáculos legislativos à mais completa liberdade especulativa (separação das actividades bancária e seguradora, da banca comercial da de investimento, criação dos off-shores…) sobrepondo-a em absoluto à actividade produtiva (estima-se que esta apenas absorva 2% do investimento global a nível mundial). Pela simples razão de que a arquitectura estabelecida no sistema financeiro mundial – alicerçado na desregulação – o não permite sem correr o risco de se autodestruir.

A História é fértil em exemplos de obstáculos ditos intransponíveis (ultrapassáveis apenas por grandes convulsões) mais depressa superados (e de forma quase natural) do que se pudera conjecturar: de entre os mais recentes, sobressaem o ‘apartheid’ e o ‘muro de Berlim’, ambos tidos por baluartes inabaláveis imediatamente antes de ruírem com estrondo! Também o sistema erguido na base da desregulação financeira parece ser igualmente inamovível, tanto mais que à sua volta se teceu uma muralha de defesa ideológica que aparenta ser impossível derrubar. Sempre que o tema da regulação bancária é referido, logo surge um qualquer comentador – qual guardião do templo da ortodoxia dominante – a condicionar a conversa com o estafado refrão (ou sagrado tabu?): “Espero que não me venha falar de nacionalizar a banca…” e assim se corta qualquer veleidade em se discutir o assunto indo além da questão moral dos banqueiros corruptos e gananciosos ou das falhas de regulação. Mas depois de tantos episódios negativos bem exemplares, começa agora a emergir a possibilidade de se falar sobre a natureza da banca realmente existente, para além do fantasioso dogma ideológico de que a gestão privada supera a gestão pública. Para além, enfim, da persistente mas pouco eficaz discussão em torno da regulação de um sistema que foi gizado para funcionar… sem regulação!

No final sobra apenas a pergunta já tantas vezes formulada: quantos bancos mais será ainda preciso resgatar até se perceber a verdadeira natureza da actividade bancária? Até se concluir pela necessidade de uma alteração profunda (mesmo no quadro de uma economia capitalista) de todo o sistema financeiro, tendo em vista as funções de soberania monetária que lhe foram atribuídas? Da imperiosa obrigação pública de o Estado passar a controlar em absoluto um sistema que, dada a sua natureza, nunca deveria ter saído da sua órbitra – chame-se a isso nacionalização, controlo público, regulação administrativa ou outro nome qualquer?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A mudança política em Portugal (IV)

O ‘pequeno passo’ de um Acordo histórico


Cumprida a segunda fase da mudança política em Portugal (a primeira ocorreu com a rejeição nas eleições legislativas de 4Out. da alternativa austeritária da coligação da direita) com a arrastada tomada de posse de um Governo que pretende inverter as prioridades políticas actuais, pondo as pessoas no lugar dos mercados, falta agora cumprir esse desígnio na sua essência. Descontada a farronca inconsequente de um presidente à beira do fim (mas que esbraceja como se não fosse deixar de o ser!), abortada a insolente campanha de uma frustrada oposição presa à extremista tese da ilegitimidade de um governo saído maioritariamente do parlamento recém-eleito (na obstinada fixação em eleições antecipadas, com o único propósito de recuperar o poder agora perdido), os maiores obstáculos à realização do Programa de Governo negociado entre toda a esquerda encontram-se a outros níveis bem mais críticos. Não será da oposição visível e declarada (parlamentar e presidencial) que advirão as maiores ameaças ao novo Governo, elas emergem bem mais sérias e certas de outras paragens onde era suposto, pela natureza dos seus intervenientes e das regras democráticas, prevalecer a neutralidade e a isenção.

Desde logo o da matilha neoliberal instalada na comunicação social – área que devia primar pela isenção e objectividade. Contudo, o domínio ideológico é tão absoluto e insistente que sobra pouco espaço, de tempo ou de lugar, para qualquer alternativa. O resultado é a uniformização das mentalidades segundo o ‘pensamento ‘único’ neoliberal, a que a generalidade de comentadores, especialistas, analistas, políticos e demais opinantes sujeita as audiências. A prova pode ser feita nos diversos programas de ‘opinião pública’, onde a forma estereotipada como os ouvintes se expressam, mesmo quando expõem posições contrárias, revela bem a amálgama que daí resulta. Sendo hoje a capacidade de moldar consciências e uniformizar comportamentos uma generalizada característica mediática na formatação das opiniões públicas, a sua subordinação ideológica constitui a primeira grande ameaça com que um poder que pretende a mudança se irá seguramente confrontar. Já se percebeu que esse alinhamento ditará tanto a ‘prioridade jornalística’ aos opositores da nova orientação política (seja por entrevista, pelo comentário, em análise…), quanto procurará ‘amplificar a mais pequena divergência’, real ou fantasiada, entre os três principais parceiros desta solução.

Uma outra ameaça é a que provém da Europa, mais propriamente das instituições europeias – onde seria suposto preponderar mais a neutralidade. Depois da Grécia tudo parece ter ficado mais claro sobre a limitada capacidade de decisão democrática de cada estado membro da UE. O que ainda não ficou bem claro foi o âmbito desses limites na construção de uma qualquer alternativa à ‘alternativa única’ imposta por Bruxelas/Berlim. Mas depois da Grécia dificilmente os que impuseram a humilhação do ‘Grexit’ admitirão qualquer desvio à linha política traçada. A menos que a isso sejam obrigados pela realidade: a que for imposta pelas inúmeras fissuras internas à própria União (sejam de carácter económico – disfuncionalidade do Euro, crise das dívidas…; ou de carácter político – eleições em Espanha, autonomias regionais, referendo britânico…), ou pelas diversificadas dinâmicas externas (Síria-terrorismo-migrações, agudizar da crise financeira mundial…). A actual deriva securitária, em resposta à ameaça terrorista, surge bem oportuna como forma de justificar o âmbito mais alargado de restrições à democracia que a prática do ‘pensamento único exige – mesmo que os respectivos propósitos aparentem não ter qualquer relação, directa ou indirecta, entre si.

As maiores expectativas quanto ao futuro desta nova solução governativa, no entanto, concentram-se em torno do que se antecipa como um difícil relacionamento entre o PS e os seus parceiros à esquerda (BE, PCP, PEV e agora também o PAN) tendo em conta as divergências de partida, a nível sociológico, ideológico e até histórico. A tensão entre aquilo que se convencionou chamar de ‘moderação socialista’ face ao ‘radicalismo de esquerda’ (ainda que se vislumbre uma facção radical no seio do próprio PS) será uma realidade sempre presente enquanto durar o Acordo e estender-se-á a todas as áreas políticas relevantes. O centro dessa tensão estará, sem surpresas, no difícil e muito instável equilíbrio entre o ‘rigor orçamental’ exigido pelo Tratado Orçamental e a ‘urgente reposição’ do esbulho perpetrado pela direita (em rendimentos e em direitos sociais e do trabalho). Mas se a manutenção do acordo depende, antes de mais, desse equilíbrio – com o PS a não abdicar do rigor orçamental e a esquerda radical a exigir a reposição de direitos usurpados – ele irá ser constantemente posto à prova, a partir desde logo do estrito cumprimento da lei vigente. É no domínio do trabalho e da precarização das relações laborais que mais se faz notar a urgência na reposição da legalidade subtraída: a nível dos contractos a prazo (renovados por tempo indefinido), dos falsos recibos verdes (sujeitos a horários, a dupla tributação e sem direitos sociais)…

A favor da manutenção e estabilidade do Acordo milita a certeza de que as principais vítimas de um eventual fracasso serão, em primeira linha, os seus protagonistas. Essa é seguramente a sua maior garantia, bem destacada aliás pela generalidade de quantos, à direita e à esquerda, se têm pronunciado a propósito. E a convicção de, caso se mantenha o entendimento que permitiu tal Acordo contra todas as oposições e contrariedades – contra até os mais ansiados vaticínios de desavenças e do seu inexorável termo para breve – ainda assim se tratar só do primeiro passo para uma efectiva mudança social, para já apenas destinado a repor equilíbrios perdidos pela acção destruidora do fundamentalismo neoliberal. Daí o recurso às ‘velhas e esquerdistas’ receitas keynesianas da retoma económica pela via da procura interna na sua versão mais básica – o consumo das famílias – com receio de se meter o Estado nisto e atrair-se a ira de Bruxelas! Tratar-se-á, afinal – como sempre na História – de um pequeníssimo passo na longa, penosa, mas persistente caminhada em nome da dignidade e da decência, contra todas as dependências e a desigualdade, em nome, enfim, da permanentemente inacabada emancipação do homem. A convicção, pois, de que a História não acaba aqui.