quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Eu, se fosse alemão...


Não há prédica nem altercação sobre a omnipresente ‘crise das dívidas’ em que não apareça o já habitual ‘eu, se fosse alemão,...’ condescendente e até compreensivo para a posição de domínio político que a Alemanha tem vindo a exercer na gestão da Crise, tirando partido da sua actual preponderância económica. As exigências alemãs para os denominados apoios financeiros aos países mais endividados, implicando doses maciças de austeridade, são invariavelmente enquadradas, como justificação para a sua 'inevitável' - e resignada - aceitação, por essa estranha litania: 'eu, se fosse alemão, também não gostaria de ver os meus impostos canalizados para pagar os gastos de países pouco zelosos (no mínimo) com a gestão dos seus recursos, gastadores compulsivos, viciados em crédito’. Daí até concordarem com a política de punição aos ‘indisciplinados do Sul’...

Mas ‘eu, se fosse alemão,...’ começaria antes por tentar compreender a razão essencial da actual prosperidade da Alemanha. Não as obtidas por via de explicações de cariz nacionalista ou de índole psicológica, ligadas a pretensas características ou propensões étnicas, geográficas, ou até comportamentais (disciplina, rigor,...). O certo é que nem sempre os alemães (ou os povos e regiões que os constituem) foram um país próspero e as estatísticas evidenciam que só a partir da segunda metade do Séc. XIX, em pleno ascenso do capitalismo, com a unificação prussiana e a gestão de Bismarck, foi possível primeiro criar um grande espaço económico nacional adequado às exigências desse então ainda embrionário sistema e depois partir para o expansionismo germânico que envenenou a História da Europa (e do Mundo) ao longo de todo o Séc. XX.

Tenderia, portanto, a procurar explicações mais abrangentes e bem mais profundas, não me fixando apenas no tempo presente e no espaço limitado de um país. E essas só são possíveis de descobrir – para quem as quiser mesmo procurar – na forma e conteúdo desta globalização económica, em que uns tiram mais partido do que outros, porque o sistema que a comanda assim o determina.

‘Eu, se fosse alemão’, teria então bem mais em conta o passado e o futuro, mais até que o efémero presente: o passado para me explicar como é que a Alemanha atingiu a sua actual posição de domínio; o futuro, para perceber que, sendo essa posição sobretudo o resultado das interligações económicas do mundo de hoje, se encontra cada vez mais dependente de outros e do que nestes ocorrer, que a incerteza (e, consequentemente, a volatilidade) é a nota dominante das dinâmicas deste sistema.

Eu, se fosse alemão’, recordaria, pois e antes de mais, os vários momentos da História do séc. XX em que a Alemanha teve de equilibrar as suas contas (à custa de injecções maciças de capital norte-americano e do crédito de outros países, entre eles... a Grécia) e a forma como suspendeu o pagamento (!) de dívidas astronómicas, suportadas por grandes e pequenos países credores: cancelamento dos empréstimos contraídos para pagar as reparações de guerra impostas pelo paz de Versalhes, compensações pelo trabalho escravo do nazismo, indemnizações devidas pela ocupação alemã,... 

Eu, se fosse alemão’, ver-me-ia obrigado a aceitar que o facto de estar, hoje, aqui, alardeando prosperidade, se deve em grande medida ao modelo de integração europeia e desta construção do Euro, no quadro de relações económicas com um padrão competitivo onde os países tecnicamente mais desenvolvidos naturalmente dominam, mas à custa de uma periferia com estruturas produtivas mais semelhantes à dos países a que, em simultâneo, se abriram as portas do comércio mundial (China, Índia,...), permitindo-lhes – favorecendo-o mesmo – competir em condições de dumping social.

Eu, se fosse alemão’, teria pudor em exigir o que quer que fosse, à Europa e ao Mundo, sabendo que o meu nome estará sempre associado aos episódios mais negros do séc. XX (guerras, genocídio...), incluindo, já na última década, o precipitar da desagregação da Federação da Jugoslávia, com o reconhecimento unilateral, à revelia da Comunidade Europeia, do primeiro país a declarar a secessão, a Eslovénia, a partir do qual depois se desenrolou o drama de mais uma cruenta guerra no centro da Europa!

Mas isso sou eu a falar, eu que não sou alemão!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A queda do Euro – deste Euro – e o fracasso de um certo projecto europeu!

Com a Itália às portas do 'apoio financeiro externo', parece exaurido e cada vez mais próximo do fim ‘este projecto europeu’ – designação que acoberta múltiplos conceitos e trajectos: das pias intenções dos ‘pais fundadores’, acabados de sair da mais devastadora guerra da História, de defesa contra uma belicista e imperial Alemanha (criação da CECA e Euratom, depois a CEE...); ao monstruoso edifício em que se transformou, por via, antes de mais, das inevitáveis dinâmicas capitalistas (na fase da globalização financeira), moldadas ao policromo caleidoscópio de povos europeus – acabando ‘às mãos’ de uma reunificada Alemanha, de novo imperial e ameaçadora!

Com ele morre a ilusão de uma certa Europa Unida, projecto federalista à semelhança do existente do outro lado do Atlântico, para com este concorrer no âmbito de um sistema que se alimenta do esmagamento dos mais fracos pelos mais fortes. Onde, pois, os mais fortes europeus (Alemanha, França, Itália,...) ganhariam força com a agregação dos europeus mais fracos (as várias periferias) para melhor concorrerem com a superpotência EUA na globalização capitalista.

Daí que a geometria da construção do Euro tenha sido traçada à medida das principais potências económicas europeias: favorecer os interesses do Centro, qualificado e mais produtivo, à custa das Periferias, menos produtivas mas não menos consumidoras, eleitas, no entanto, como seu principal suporte comercial. Na ausência de mecanismos de compensação ou de convergência, as dinâmicas capitalistas, entregues à espontaneidade dos mercados – assim o determina a ideologia neoliberal dominante – encarregaram-se de concluir este processo de decantação, colocando a Alemanha no topo da pirâmide competitiva, agora também já sob aviso prévio quanto ao seu próprio destino final.

Ora, perante a demonstração prática da inutilidade das políticas da austeridade para superar esta crise e da falácia em torno da teoria do ‘viver acima das nossas posses’, resta saber se o brutal processo de acelerada transferência de recursos do trabalho para o capital financeiro a pretexto das dívidas traduz apenas a incompetência de líderes sem estofo. A obsidiante presença alemã em todo esse processo (com ou sem o caricato – mas útil – apêndice francês), à revelia das instituições europeias ostensivamente subalternizadas, autoriza pelo menos a dúvida sobre se tudo isto não obedece a um plano meticuloso de afirmação imperial germânica, agora pela via económica – como crescentemente se vem sustentando, por enquanto apenas no âmbito de imaginativas (ou é mais do que isso?) teorias da conspiração. Certo é que com epicentro na NET (o lugar onde se vem afirmando, diga-se, o exercício de uma liberdade cada vez mais contida nos lugares institucionais dedicados para o efeito), tem vindo a engrossar um ainda difuso sentimento anti-germânico.
 
Não se afigura excessivo afirmar-se, entretanto, pairar de novo sobre a Europa o espectro de uma Alemanha expansionista, agora não através dos tradicionais e directos meios marciais do passado, antes pela mais civilizada e indirecta via económica do presente (sob pretexto de incumprimento dos Estados), assim se ludibriando, por amarga ironia do destino, as cautelas demonstradas pelos ‘pais fundadores’ que, ao tentarem controlar a potência bélica, abriram a porta à potência económica.

A desagregação da ilusão de uma Europa Unida, parece acarretar igualmente o termo de uma certa ilusão ‘internacionalista’, potenciada pela globalização, das lutas dos trabalhadores, agora cada vez mais confinados aos seus redutos nacionais, empresariais, locais, que assim ganham expressão e sentido crescentes. Nesta fase de recuperação do espaço económico perdido e com a estratégia federalista posta em causa, são de considerar todas as alternativas que contribuam para a retoma da soberania perdida dos países menos defendidos economicamente, incluindo a saída do Euro, se tal for considerado necessário para travar a especulação financeira sob que se acoita o actual processo de transferência de valor, seja ela ditada por estratégias imperiais (alemãs ou quaisquer outras) ou pela espontaneidade dos ‘livres’ mercados.

Seria interessante calcular qual o montante da dívida acumulada após a eclosão da ‘crise das dívidas’ - ou seja, nos dois últimos anos - em resultado da gestão liderada pela Alemanha, a mesma que agora afirma, pela boca de Merkel, ser contra uma ‘união das dívidas’ (!). Ganha, por isso, cada vez mais sentido e urgência a exigência da esquerda parlamentar (Bloco e PCP) para uma auditoria à dívida pública. Constituiria um exercício salutar e demolidor de todas as demagogias apurar o que nela é o resultado de efectivos compromissos assumidos (e aqui qual a sua natureza e intervenientes) e o que sobreveio por força da espiral especulativa que a ‘gestão Merkozy’ fez explodir de forma incontrolada. Restam ainda por apurar todos os contornos deste fabuloso ‘negócio’!

Depois das inúmeras falsas partidas a que a dupla Merkel-Sarkozy já habituou os europeus, seria verdadeiramente surpreendente que a semana que se iniciou e que, pela enésima vez, se anuncia decisiva para a Europa (e se fala da sua ‘refundação’...), trouxesse algo de novo à gestão da crise, em especial na contenção da especulação. Uma coisa parece assegurada: a crise vai continuar a gerar austeridade para uns e chorudos proveitos para outros. Uns e outros, os mesmos de sempre. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Um Governo a ‘ganhar balanço’! E os seus acólitos também!



Hélder Amaral, deputado do CDS/PP, lambisca de quando em quando e com notório deleite uma sintomática teoria sobre balanços. Não os balanços dos cálculos financeiros ou das ‘dívidas’, agora tão desafortunadamente em voga, antes os que pressupõem movimento, projecção, saltos acrobáticos. A expressão é mesmo ‘ganhar balanço’.

Posto perante os efeitos associados às medidas de austeridade, que o ‘seu’ Governo admite virem a resultar num recuo para a economia – ‘nós só saímos disto empobrecendo’, foi assim que a elas se referiu Passos Coelho – o melífluo turibulário, desdobrando-se em declarações de estrénuo proselitismo na expectativa de que tamanha dedicação venha a ser oportunamente compensada, para além de considerar tal frase a ‘mais corajosa que ouviu dizer’ (!!!), conclui que esta política serve para... ‘ganhar balanço’. Eu sou daqueles que acredita que nós não estamos a recuar, estamos a ganhar balanço”, garante em repetidas tiradas de fé, por todos os lugares aonde vá.

Esta expressão ‘ganhar balanço’ encerra bem a táctica actual deste Governo, aos diversos níveis e áreas da governação. Mesmo se aplicada em sentido não totalmente coincidente com este, a sua utilização demonstra-se bem oportuna para explicar a fase actual deste Governo, de momento ainda a ‘ganhar balanço’, a testar as reacções das pessoas e das instituições, a ver até onde realmente pode ir. Sobretudo no teste às instituições, a começar pelo teste constitucional.

São vários os episódios que o atestam. Desde logo no esbulho dos dois meses de salários aos funcionários públicos. Mesmo sem aqui se questionar a razão de fundo e a necessidade de tal medida, o certo é que mesmo assim podia ter optado por outra via, distribuindo o esforço de forma mais equitativa, sem necessidade de ‘pôr à prova’ a Constituição da República. Quis fazê-lo desta maneira de forma propositada para avaliar precisamente até onde pode ir na destruição dos direitos na função pública. Para medir a reacção das instituições que zelam pelo cumprimento da Constituição. Para avaliar a capacidade de contestação do sector público, o seu real peso social.

Igualmente no episódio da reestruturação do sector dos transportes públicos. Já não restam dúvidas quanto ao espírito de missão que anima a equipa que lidera a economia, do assanhado ministro Pereira ao deslumbrado secretário Monteiro. Ambos sentindo-se investidos de um desígnio divino. A concepção que ‘transportam’ de serviço público raia o absurdo, só explicável através do recurso a ideias de natureza transcendental, pois em nenhum país do mundo, inclusive na liberalíssima América da sua devoção, os transportes públicos são rentáveis de acordo com as estritas regras da gestão empresarial privada. O que há é critérios bem definidos de gestão e financiamento públicos, devidamente fiscalizados, incompatíveis com o desbocado discurso do ‘deslumbrado’, ao promover ‘ideias’ absurdas a ver se pegam (horários do Metro, supressão de carreiras,...), mas sobretudo atrevendo-se a falar em falência de empresas no sector.

Imbuído de um fervoroso espírito de missão, este governo propôs-se acabar com o que resta do sector público, administrativo ou empresarial. Isso implica, contudo, remover limites fixados nas leis constitucionais (em primeiro lugar) e vencer a oposição dos movimentos sociais (em última instância). Daí a táctica do ‘ganhar balanço’, dos aparentes avanços e recuos, do recurso ao medo e à dramatização para quebrar o ânimo das pessoas, pois a agenda liberal que se propõem concretizar é duríssima para as suas vidas, o que aí vem não tem comparação com o que já se conhece.

Mas não é só o Governo, no seu todo, que se encontra a ‘ganhar balanço’. Voltando ao início desta história, é toda uma plêiade de esforçados acólitos que se perfila para verem finalmente recompensada tanta devoção. Como no caso do ‘nosso’ esforçado deputado democrata-cristão (ainda existe democracia-cristã?), decerto a ‘ganhar balanço’ a avaliar pelas atitudes, intervenções, salamaleques e dichotes de que o luzente sequaz é pródigo. A tomar balanço para, na primeira oportunidade, saltar para o Governo. Não se arranja por lá já um lugarzinho ao homem? É que tanta ansiedade e contenção pode dar em apoplexia. E há mais na fila à espera!

domingo, 6 de novembro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – IV


Obstáculos à mudança

Não foi a ganância dos banqueiros, ao contrário do que se pretende insinuar sempre que se fala sobre este tema, a principal causa da crise financeira, muito menos da sua transformação na actual crise global, cujas proporções ainda não são totalmente percebidas. Maior peso tiveram as decisões dos políticos, Thatcher e Reagan à cabeça, que conscientemente abriram o caminho e prepararam as condições para que a acção dos banqueiros pudesse exercer-se sem quaisquer entraves ou limites, criando o ambiente propício à expressão mais primária das emoções humanas (agressividade, egoísmo, ganância,...), numa idealizada reprodução pretensamente próxima da lei natural (ou da selva?), pois só assim era possível – diziam! – extrair com a maior eficácia, todo o potencial dos recursos, materiais e humanos.

Foi o longo processo de desmantelamento das regras estabelecidas em Bretton Woods – regras prudenciais ditadas, também então, pelo descalabro liberal que, à época, provocou a Grande Depressão – que tornou possível a criatividade financeira que conduziu à crise. É bem sabido que todo este processo de ‘desregulamentação’ foi longamente preparado por empenhados ‘think thank’ ideológicos, com relevo para a Societé Mont-Pèlerin, o IEA e a Escola de Chicago, a que tive oportunidade de já por aqui me referir com algum detalhe. Surge quem dentro do sistema ouse criticar o excesso de consumismo e os maus hábitos criados pelo crédito fácil, mas fá-lo seguindo a lógica competitiva do ‘salve-se quem puder’, do retorno a uma autarcia serôdia. Condições para, a prazo, se agravar a crise global.

É, pois, na esfera política que se detecta o primeiro e grande obstáculo à mudança. Na capacidade democrática para inverter este laborioso processo tecido com objectivos bem definidos, desde logo quebrando o bloqueio mental imposto pela ideologia dominante – que nada mais consente senão a visão única da realidade que lhe convém – mas também sabendo erguer uma via alternativa. Que terá de passar, no imediato, pelo controle do poder financeiro mundial, com a imposição de um quadro legal de regulação que estabeleça bem os termos e os limites de cada operador e actuação: delimitação das diferentes áreas financeiras (poupança, segurança, investimento), retoma do controle monetário pelos Bancos Centrais (incluindo o BCE), papel das funções de rating,...

Não menos importante, até pela potencial maior dificuldade que envolve a sua concretização, é destronar os interesses instalados, desde os grandes e dominadores, que construíram todo um sistema voltado para o exclusivismo (e a sua principal ‘vítima’ foi o Estado e as funções sociais que era suposto este proteger), do qual resultou o actual modo de vida insustentável, aos pequenos serventuários (gestores e técnicos), que se erguem na sua sombra, essenciais à construção e manutenção do modelo social que o suporta. O que implica a definição, directa ou indirecta (via fiscal), de uma política de rendimentos que defina os limites a que cada um pode aspirar num quadro de recursos limitados, numa democracia de inclusão.

Resta ainda a armadilha da dívida externa, dominada e bem manipulada pela especulação internacional, que tem hegemonizado de forma quase absoluta a análise e discussão sobre a crise e as alternativas para a superar, transmitindo a percepção de que existe uma única saída – a teoria da austeridade inevitável – apresentada de tal modo que parece mesmo impossível ser... de outro modo (fora dela, só a catástrofe e o caos!). E aqui impõe-se ousar atacar o centro nevrálgico por onde opera a especulação internacional, extinguindo os ‘off-shores’ financeiros, verdadeiros santuários deste sistema assente na completa desregulação.

Importa que tudo isto se faça com a participação democrática das pessoas, motivando-as a colaborar através das mais diversas formas, institucionais ou informais, por recurso aos meios tecnológicos disponíveis. Exercício interessante, tanto do ponto de vista da indignação que revela, como da vontade de participar, é o que se pratica na NET, sobre textos objecto de muitas versões e propostas. Algumas dessas medidas, de carácter económico, político ou até moralista (nem todas, obviamente, exequíveis), revelam bem a urgência na construção de uma alternativa política à actual dominação do mercado.

Afinal não é a Grécia (ou Portugal, agora a Itália,...) que vive acima das suas possibilidades. O Mundo inteiro vive acima das suas possibilidades, por via de um estilo de vida que se sabe insustentável a prazo, inviável por natureza. Produzido por um modelo de organização social baseado no desperdício mais do que em necessidades, em valores de troca mais do que em valores de uso. Que opõe a ideologia da diferença exclusivista à diversidade do real, na defesa de alguns (países ou pessoas) poderem gastar/consumir mais do que outros.

Afinal, o maior obstáculo à mudança é mesmo este modelo de organização social que alimenta a ilusão de se poder manter incólume um modo de vida assente no desperdício e na desigualdade!

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – III


Mudar o rumo, mudar de vida

Das múltiplas tentativas para se sair da crise – e de outros tantos fracassos – todas centradas nos aspectos financeiros, é possível extrair pelo menos uma certeza: a solução não depende apenas, nem sequer principalmente, da área monetária (ou mesmo financeira, em sentido amplo), ela arrasta inevitavelmente, mas a contragosto, a componente política. Objecto de muitas controvérsias e derivações inconsequentes, a sua abordagem tem revelado o mundo de incertezas e a desorientação dos políticos na hora de decidir, da UE aos EUA, ao ‘clube’ dos G20. E, no entanto, é na raiz da crise (nas causas que a originaram) que deve procurar-se e se encontra a solução mais racional para a mesma – não obstante o primado absoluto dos interesses como critério social dominante, na economia como na política.

A lógica do produtivismo que comanda o sistema e, por esta via, organiza as sociedades actuais, apenas obedece a um princípio orgânico, o dos resultados imediatos, pois assim o determina a norma do lucro máximo; apenas reconhece um critério diferenciador, o da produtividade, porque assim o dita a concorrência (seja a do vizinho do lado ou a dos seus competidores externos, na mais desenvolvida Alemanha ou na longínqua China). A lógica da globalização implantada com a abertura do comércio mundial (e a instituição da OMC), completou e tornou coerente este processo integrando no sistema todos os países do planeta.

Todavia, perante o aumento da produtividade do trabalho ocorrido nas últimas décadas – principal ‘origem’ dos excedentes de mão-de-obra e consequente agravamento do desemprego – as respostas de carácter estrutural que o sistema tem vindo a dar, centradas exclusivamente na lógica individual da empresa de sobreviver à concorrência (perspectiva micro), têm-se demonstrado incapazes de suster uma crise de dimensões cada vez mais globais (perspectiva macro) e inverter a tendência para a sua maior degradação.

Como é sabido, essas respostas têm sido essencialmente de dois tipos: por um lado, o recurso à deslocalização das empresas na busca das condições de produção mais favoráveis, permitida por uma globalização sem regras, que a livre circulação dos capitais incentiva impunemente – o resultado dessa impunidade revela-se na criação de enormes disparidades sociais e, mercê da pressão sobre os recursos, num planeta à beira de se tornar insustentável; por outro, o aumento da duração e dos ritmos do trabalho como forma de valorização do capital, ou seja, no acentuar da crise pelo agravamento das condições que a originaram.

Neste contexto, a denominada ‘crise das dívidas’ (pública e privada) é apenas mais um episódio da profunda crise global que consome o sistema, consumindo tudo à sua volta e pondo em causa a sua própria continuidade. Os planos de austeridade impostos para debelar a crise financeira daí resultante e que infernizam a vida dos que mais lhes sofrem os efeitos, os assalariados, são bem a expressão do descontrole que grassa nas elites que o representam: feitos à medida dos interesses dos especuladores que servem, incapazes de assegurarem o exaurido objectivo que lhes enche a boca e alimenta o verbo, o crescimento sustentável!

É, pois, no elevado nível de produtividade alcançado pelas sociedades actuais que deverão centrar-se os esforços na elaboração das respostas globais mais adequadas para se enfrentar, de forma coerente, a crise actual. De se procurar fazer corresponder a organização social ao estado de desenvolvimento da economia. Muito para além do modelo financeiro a que se reduz o plano de ‘reformas estruturais’ – sequestrado pela especulação, contrário à realidade da vida e a toda a racionalidade, avesso à própria democracia.

O grande desafio é, então, perante o conjunto de dificuldades que as sociedades enfrentam –  as financeiras, claro, mas sobretudo as de cariz político, a começar pelo paradigma do crescimento contínuo, o que implica a construção de um novo paradigma de dinamismo económico –  mostrar capacidade para reinventar o modo de vida, descobrir como ‘viver bem com menos’. Não já ‘viver melhor’, pois deixam de fazer sentido comparações com ‘este’ modo de vida, a sua ‘ morte e remoção’ será apenas uma questão de tempo.

E a primeira medida, imposta pela lógica da produtividade, é a reorganização da ocupação do tempo – a começar pela redistribuição do tempo de trabalho – retornando à senda dos direitos e da democracia, ao arrepio do que se pretende impor agora, o seu aumento.
(...)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – II

A falência das teorias dominantes

A realidade económica e social nunca é a reprodução fiel do que a política (mesmo a das políticas económicas – ou das economias políticas?) quer fazer dela. Assiste-se hoje a uma espécie de ‘braço de ferro’ entre as duas teorias económicas que têm dominado a política do mundo ocidental nos últimos 80 anos (pelo menos): de um lado, claramente na ofensiva, o liberalismo, com o primado do mercado, livre de interferências externas; do outro, em posição política defensiva (mas em crescendo ideológico) o keynesianismo, com a defesa da intervenção do Estado, indirectamente através da regulação do mercado, ou mesmo, quando necessário, pela via dos investimentos públicos directos. Objectivo comum, o crescimento, na busca do progresso e da maior satisfação das necessidades.

O debate que hoje se trava em torno do endividamento crescente dos Estados mais não visa, afinal, que o relançamento económico com vista à retoma do crescimento. Dos planos de austeridade advogados pela corrente liberal (tendo em vista controlar os défices supostamente gerados por políticas expansionistas), às propostas de um maior apoio público à economia (única via, advogam, que pode criar as condições para se pagarem as dívidas contraídas em resultado de tais défices). A realidade ora parece dar razão a uns em detrimento dos outros, ora garante que o rumo seguido irá descambar na catástrofe.

Nunca como agora, é certo, essas diferenças na forma de encarar a acção política no campo da economia pareceram expressar-se de forma tão extremada, trazendo à memória os tempos de emulação com o extinto sistema comunista soviético, cuja erradicação (por implosão) alimentou durante algum tempo a generalizada suposição de não haver alternativa ao capitalismo. Só até à eclosão, no entanto, da mais grave crise do sistema, posto à beira do colapso, mas cujo desfecho parece confinar-se, por agora, entre o aprofundamento do modelo liberal que a gerou (ainda com maior desregulação?) e o retorno ao ‘velho’ modelo keynesiano (maior intervenção pública na economia, em período de graves desequilíbrios financeiros?).

O objectivo do crescimento, esse, é que parece mesmo cada vez mais arredado de se alcançar, tanto nos países ditos em dificuldades como nos que aparentemente se encontram ainda livres delas (mas cujo destino a decantada globalização uniu ao destino dos mais fracos). O que afinal parece estar por trás de toda esta crise e a ser posto em causa, reflectido nas diferentes teorias para sair dela, é o crescimento, ele mesmo. O que implica dever questionar-se o modo de vida assente no motor do sistema, o crescimento contínuo. Mas se isso é assim, então é o próprio sistema que merece ser controvertido, que parece estar a chegar ao fim.

Mais que uma crise financeira, mais até que uma periódica crise económica, trata-se, pois, de uma profunda (e já genericamente admitida) ‘crise sistémica’, é o próprio modelo de desenvolvimento assente no crescimento contínuo que se encontra posto em causa, esta é ‘a Crise do crescimento’. Em lugar de se falar em ‘crescimento sustentável’, deve antes afirmar-se que o ‘crescimento’ deixou, por natureza, de ser sustentável. Por força das dinâmicas instituídas, percebe-se a urgência actual na sua persecução, seguramente durante algum tempo mais (quanto mais?) o crescimento será ainda necessário, por forma a permitir-se a acomodação da tendência que o estabelecia como ilimitado e a adaptação a um novo modo de produção baseado no realismo de recursos limitados.

Aceita-se (?) como inevitável uma quebra generalizada dos rendimentos disponíveis nas pessoas. Admite-se mesmo ter-se vivido acima das possibilidades, já descontado o efeito das distorções causadas pelas generalizações estabelecidas com base em médias estatísticas, normalmente encobrindo realidades muito díspares. E esta percepção hoje manifesta nos países ditos em dificuldades financeiras, rapidamente alastrará, por força da globalização, aos até agora imunes à crise. Mesmo países onde o crescimento continua a apresentar taxas elevadas começam a evidenciar sinais de desaceleração, como na China, onde as condições que o permitiram ameaçam esgotar-se, obrigando o regime a trabalhos de cosmética estatística, para poder continuar a exibir números equivalentes aos da última década.
(...)

sábado, 29 de outubro de 2011

As crises e a Crise deste insustentável crescimento contínuo – I


A política económica contra a vida

A actual crise financeira é apenas o efeito mais visível dos múltiplos desequilíbrios que hoje afectam a organização das sociedades e das consequentes tentativas levadas a cabo pelos diversificados interesses que nelas se digladiam de os resolver a seu favor. É a capa ou a forma adoptada, desta feita, pela crise mais global que ameaça o sistema pondo em causa a sua continuidade. Por trás dela perfilam-se todos os problemas sociais que, a seu tempo, exigirão outra organização e determinarão outro sistema.

Os episódios que o indiciam estão tão inseridos no quotidiano das pessoas e são tão frequentes que a sua ocorrência já pouco surpreende, dificilmente alguém pára para sobre eles reflectir ou ainda menos os questionar, perdeu-se a noção da sua importância e da influência que exercem sobre a vida das pessoas. É o caso, por exemplo, da permanente tensão entre o sobe e desce das taxas e o circo especulativo instalado nas Bolsas de todo o mundo, desbragado ritual completamente alheio à realidade vivida, mas onde se joga (literalmente) o destino de milhões de pessoas, num carrossel incontrolável em que se produzem e destroem  fortunas inauditas, se fazem e desfazem vidas concretas.

Outros, enfim, assumem o carácter de insólitos ou provocatórios. Recentemente os ‘mais ricos’ de alguns dos países ‘mais desenvolvidos’ do planeta (EUA, França, Alemanha,...), decidiram, num inusitado gesto filantrópico (?), lançar um apelo aos respectivos Estados no sentido de lhes taxarem as suas imensas fortunas. A percepção de que, no actual processo de transferência de valor do trabalho para o capital (que tem permitido a acumulação de riquezas colossais num reduzido número de pessoas), poderiam estar a ser ultrapassados os limites do suportável, pondo em risco a própria continuidade do sistema que tanto os tem mimado (nas palavras de um deles) – que é como quem diz, a sobrevivência da ‘galinha dos ovos de oiro’ – só aparentemente é contraditório com a lógica de um sistema que se demonstra insaciável e alheio a considerações morais. Trata-se, no fim de contas, do instinto de sobrevivência interpretado pela elite dos interesses em causa.

A demarcação contrastante entre a sofisticação do aparato cerimonioso de que se rodeiam os decisores (políticos e económicos) responsáveis pela imposição da actual austeridade e as rotinas laboriosas dos que lhe sofrem os efeitos, entre a preservação incólume de requintados modos de vida e a crescente ruína de vidas em desespero, põe em confronto dois mundos opostos, de costas voltadas, não obstante a legitimação (a democrática e a ditada pelo mercado) reivindicada pelos primeiros.

No debate parlamentar com o Governo, após o anúncio das principais medidas dos OE/12-13 – o tempo do plano de austeridade imposto pela ‘troika’ – Jerónimo de Sousa, de dedo em riste para Passos Coelho, profere a frase assassina: ‘Ó Sr. Primeiro Ministro, você sabe lá o que é a vida!’. Incomodado pela nudez subitamente exposta, o visado replica de forma repetitiva, quase mecânica: ‘Eu sei o que é vida, eu sei o que é a vida,...’ Seis vezes o repetiu num claro exercício psicanalítico de autoconvencimento, mas a frase fora-lhe fatal, a si e ao projecto ideológico que, sob os auspícios do FMI, pretende realizar (não o esconde) a expensas lusas. A ele e ao grupo de fundamentalistas loucos que não têm pejo de levar por diante experiências teóricas por conta da vida de milhões de pessoas (‘bando de criminosos’, ousou chamar-lhes Vasco Lourenço!). Indiferentes aos dramas provocados por tais medidas, inebriados pelo brilho de modelos económicos construídos à margem da vida real. E, por isso, votados ao fracasso, mesmo que a poder de recursos e sofrimentos inauditos.

Episódios ou sintomas de um mundo alheio às dificuldades da vida da esmagadora maioria das pessoas, não obstante a imensa tecnologia hoje disponível para o tornar menos penoso, mais suportável e até agradável. Vive-se um vago e nebuloso clima de fim de império, entre orgias e miséria, com as pessoas a antecipar a perda irreparável do que tinham por adquirido, direitos ou simples regalias, estranho prenúncio de algo que se pressente eminente mas que ninguém ainda ousa antecipar ou definir. 

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A falência da Grécia – ou de toda a Europa?



Sarkozy e Merkel – ou melhor, Merkel e Sarkozy (e não, não é por cavalheirismo) – parecem viver ‘juntos’ há um ror de tempo. Quando aparece um, o outro está sempre por perto, ou a chegar de algum lado. Para onde vai um, vai o outro, como até no caso da Líbia (?). E não é devido à gravidez da Bruna ou a qualquer pretensa infidelidade de ambos, porque a aparência que transmitem, não obstante tão íntimo e desavergonhado conúbio, é de se tratar de dois seres assexuados, não creio que qualquer deles suscite, deste ponto de vista, mais que um suspiro de enfado e passe adiante.

A razão da aparição frequente do ‘casal’ mais badalado do momento e a constante novela mediática em torno dos seus encontros, deste permanente ‘tête-à-tête’, bisonho e de mau augúrio, prende-se, aparentemente, com algo que diz respeito a todos os países da União Europeia: encontrar os meios de ultrapassar a crise financeira das denominadas ‘dívidas soberanas’! Mas a forma como estes assumidos donos da Europa passeiam a sua dominação, à revelia desde logo das próprias instituições comunitárias, torna-se humilhante para os restantes membros da UE. E é sintomático o silêncio cúmplice da generalidade de todos eles, submetidos ao estranho temor de caírem desamparados na vertigem financeira desencadeada pelas referidas dívidas.

A frequência destes encontros, contudo, vai de par com a total inutilidade dos mesmos, está na razão inversa da sua importância para o futuro real da Europa e dos europeus. Pelo menos até agora, às portas da já inadiável reestruturação da dívida grega. O resultado de tais encontros manifesta-se sobretudo no sobe e desce das Bolsas, numa reacção reflexa dos ‘histéricos’ mercados, sedentos de notícias inócuas para, sobre elas, justificarem os movimentos financeiros que melhor garantam os seus interesses.

Já se percebeu que a Merkel multiplica as declarações de apoio à Grécia, não pelo acrisolado amor ao ‘povo helénico’ ou à sua história, mas pelo especial desvelo que lhe merece a saúde periclitante dos bancos alemães, empenhados até ao tutano na dívida grega. Se a Grécia falir arrastará na queda muito mais do que apenas os flagelados (e descartáveis) interesses gregos, os efeitos da hecatombe repercutir-se-ão na Alemanha de forma estrondosa e no colapso de toda a Europa (e por arrastamento no mundo globalizado, resta ver em que medida)[1].

Entretanto, o Governo, qual moço de recados, viaja de Berlim a Paris (com escalas ‘menores’ noutros destinos, para disfarçar), busca o assentimento de Merkel, implora o apoio de Sarkozy, em pose submissa e reverente, regressando com propósitos contrários dos que levara. O volte-face é o triste sintoma da desorientação política de um Governo cheio de certezas e de receitas milagrosas na oposição – em busca de razões plausíveis para calar o protesto contra a austeridade e a trapacice logo que chegou ao poder!

Sente-se a desorientação até por entre a afanosa plêiade de analistas e comentadores, correndo pressurosos a tentar tapar os inúmeros buracos que a ortodoxa política oficial vai provocando, saltando da explicação/justificação da ‘inevitável’ austeridade para a desculpabilização da trapacice dos processos jardinistas na Madeira; da exaltação do produtivismo germânico para a expiação da suposta inépcia grega; da maior eficiência na gestão pública para a apologia das privatizações ‘sob pressão’ (!); das virtudes da liberalização desestatizante para o reforço do Estado securitário,...

Nada disto, aliás, pode surpreender: a insistência nas políticas de austeridade não paga dívidas e só pode conduzir ao desastre, a mais rudimentar matemática (tão ao gosto da teoria neoliberal) aplicada ao caso grego acaba de o comprovar – só falta conhecer a data para a reestruturação da sua dívida! Quem é que se segue?


[1] Se o Euro desaparecer, estima a UBS, os efeitos sobre o PIB dos países europeus no 1º ano será devastador, não só nos periféricos, sem dúvida os mais afectados (40 a 50% de queda), mas igualmente na Alemanha (25%), por via da quebra nas exportações face à consequente hipervalorização da sua moeda.

domingo, 18 de setembro de 2011

Basta de gozo: independência para a Madeira, já!


Ninguém acredita que vão ser os madeirenses – os principais ‘beneficiados’ pelo regabofe financeiro agora declarado, mas há muito adivinhado – a punir, por via política (nas eleições regionais), os desmandos dessa espécie repugnante alapada nas suas costas, que dá pelo nome de Jardim. A teia urdida pela criatura ao longo de mais de três décadas (!!!) criou um tal mimetismo de interesses com a base eleitoral que o tem sustentado, que não se perspectiva alteração significativa daí decorrente. Nem seria justo transferir tal responsabilidade para os eleitores madeirenses. E, sobretudo, tão pouco esta constituiria uma saída decente para a enorme trapalhada em que aquele acaba de colocar o país, já de si a braços com problemas de sobra para agora ter de suportar a chacota do mundo – e as inevitáveis penalizações de Bruxelas! – pela imagem de trapacice engendrada com a sonegação das dívidas.
 
De igual modo, ninguém está a ver o actual poder nacional, dominado pelo PSD, tomar qualquer medida radical, levando ao corte do apoio político partidário e entregando o farsante à sua própria sorte. E esta até era, na verdade, uma boa oportunidade para Passos Coelho se afirmar como político de visão, nem é necessário aqui invocar sequer a coragem. Poderia até ser o momento de se assumir como um político a sério, capaz de decidir com firmeza contra os seus aparentes interesses imediatos, de largar aquele ar agaetado de menino da escola que decorou a sebenta (a famosa cartilha neoliberal!). E granjear-lhe-ia, para o futuro, talvez o lastro de crédito que agora lhe falta, levaria até o PSD a redimir-se, de algum modo, do conluio tecido ao longo dos anos com a pantanosa situação da Madeira. Mas não é crível nem expectável que tal venha a acontecer.

Do lado da ‘oposição’, até agora as declarações proferidas indiciam encontrar-se mais empenhada em cavalgar a onda provocada pela trapacice agora descoberta, capitalizando o incómodo causado entre os próprios eleitores madeirenses e aproveitando eventuais deserções das fileiras do actual poder, do que em afirmar uma clara alternativa ao clima de impunidade instalado. Ou a repisar as mesmas estafadas frases e slogans de anteriores campanhas – agora exibindo o ar triunfante que o finalmente escancarado buraco financeiro lhes permite.

A verdade é que não sobram os meios de punição exemplar a causticar a contumaz calacice – de carácter penal ou mesmo cível, a multa aplicável de 25000€ é até ofensiva para o tamanho dos danos causados (económicos e sobretudo políticos) e a continuada desfaçatez deste avantesma – pelo que não pode excluir-se o recurso a processos mais radicais. Sem risco de eventuais efeitos nefastos colaterais virem a tornar ainda mais difícil a vida dos já de si muito penalizados madeirenses, a boa maioria deles desde sempre arredados das propaladas benesses do ‘jardinismo’.

Resta, pois, proclamar com indignação: basta de gozo! Pois se os madeirenses aceitam – porque lhes convém ou são incapazes de o sacudir – o jugo do Jardim, esgotadas as alternativas (e a paciência!), apenas resta a solução, tantas vezes por ele agitada como chantagem, de se encarar a ‘independência da Madeira’. Obviamente através de referendo nacional, com todos os ‘sacrificados’ a poderem pronunciar-se, não apenas os supostos ‘beneficiados’ autóctones. Se esta for a única forma de meter o Jardim da Madeira e a respectiva clique ‘jardinista’ (com os prolongamentos existentes no ‘contenente’) na ordem,... porque não?

Entretanto, haverá ainda certamente quem, à semelhança do que aconteceu com o BPN, procure desculpar o ‘ladrão’, culpando o ‘guarda’ de sentinela!

domingo, 11 de setembro de 2011

Uma agenda (liberal) de transformação estrutural do País!

Nos últimos dias, o Governo (e acólitos de serviço) tem vindo a reivindicar o papel de vítima. A pretexto de críticas sobre a ‘sua’ política de austeridade. Diz que não lhe está a ser concedido o habitual ‘período de graça’ a que teria direito, pois ao cabo de dois meses de governação chovem críticas, imagine-se, de dentro dos próprios partidos que o suportam. Destacadas figuras, tanto do PSD como do CDS – mais do primeiro, um ‘must’ da política caseira – têm verberado, com mais ou menos veemência e notório mal-estar, a pressa com que o ‘seu’ Governo pretende implementar o pacote de medidas acordado com a ‘troika’. O incómodo causado no visado é bem visível e de pronto se revelou em descabelados ataques à crítica e ao direito de manifestação!

Porque, valha a verdade, a contestação à austeridade imposta pouco ou nada se tem feito sentir, no Parlamento ou nas ruas, pois até agora ainda não passou das ameaças. Mas quem se pôs a jeito para as críticas começarem tão cedo foi o próprio Governo, a ‘rapaziada’ que o constitui e lhe dá lastro, dentro e fora das instâncias do poder. As suas mais destacadas figuras, Coelho, Portas ou Relvas, afirmavam, ao tempo do anterior, ter todas as medidas preparadas para avançarem e salvarem o País, disporem de uma alternativa à então considerada ruinosa gestão do PS (a única verdade em tudo isto?), sem desdenharem, desde logo, o ensejo de contribuírem, convictamente empenhados, para a farsa da inevitabilidade deste ‘memorando’... negociado pelo PS! De que se queixam, afinal?

E foi assim que, apanhados no poleiro, ansiosos de ‘levar a mão ao pote’ (nunca tal expressão foi tão bem empregue!), ei-los pressurosos a cumprir as exigências externas nele consagradas e, não contentes com as malvadezes aí impostas aos trabalhadores (quase exclusivamente), decidem ir bem mais além do acordado e disso fazerem alarde e doutrina.

Percebe-se a intenção. Deve malhar-se o ferro enquanto está quente. O que o Governo pretende – e não o esconde – é, à sombra da ‘troika’, fazer passar e aplicar uma completa ‘agenda de transformação estrutural’ do País. Como ainda recentemente o explicou, com todas as letras, o inefável ministro Gaspar, cada vez mais o regente destacado para concretizar as intenções dessa finalmente escancarada ‘agenda liberal’.

Se bem que o excesso de zelo que aparentemente transparece da fúria austeritária a que o Governo se entregou possa suscitar outras explicações. Para uns, trata-se apenas de mera prudência, um simples gesto de boa gestão: o Governo age deste modo por precaução, tendo em vista ganhar uma almofada de segurança para eventuais derrapagens, face aos riscos de um futuro que se apresenta muito incerto. Para outros, o Governo pretende transmitir aos mercados a sua determinação no saneamento financeiro das contas externas, afirmar uma ideia de eficácia e rapidez na política adoptada, por forma a readquirir-se, tão depressa quanto possível, a confiança perdida.

A verdadeira e cabal explicação, contudo, parece encontrar-se mesmo a outro nível, na assumida ‘agenda liberal’ que pretende impor ao País. Agora, com o aval da ‘troika’, tudo se tornou mais fácil. E até se prepara para, de caminho, encontrar a folga financeira de que precisa para avançar com uma das medidas mais emblemáticas dessa ‘agenda’, a redução da TSU, que assim poderá ser levada à prática sem recurso a nova medida específica ou adicional, poupando-se ao odioso de mais um qualquer corte, taxa ou imposto, em cima de tanta austeridade.

Uma agenda liberal com objectivos há muito definidos e que, a ser cumprida conforme pretendem os seus promotores, mudará radicalmente o País. Com base no critério exclusivo e universal do ‘valor económico’, é todo um programa de transformação social e cívica, dos valores ao modo de vida, das estruturas à mentalidade, que se pretende levar a cabo. Bem reflectido, desde logo, na destruição do Estado Social (e na adopção do ‘modelo assistencialista’), com os direitos sociais reduzidos a meros favores. É certo que o voluntarismo sobreleva a realidade, o academismo teórico de prosélitos inebriados o simples bom senso temperado de experiência. Mas os estragos políticos, com graves reflexos na vida das pessoas, estão garantidos. Resta saber em que dimensão.

Enquanto isso, a esquerda parece ainda aturdida, a recuperar do forte desaire eleitoral de Junho passado. Nem o tom de uma aparente viragem à esquerda que transparece do discurso de Seguro no Congresso do PS, em cura de oposição, pode sossegar quem quer que seja. A experiência histórica dita o contrário e, gato escaldado... Saúda-se a mudança no discurso, mas resta então ver até onde a prática política acompanha as intenções proclamadas, que contributo este PS estará em condições de dar para a construção de uma inadiável alternativa de esquerda a esta agenda liberal. Sem grandes expectativas, porém.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Histórias de encantar do ministro Gaspar

A pouco e pouco vai-se percebendo melhor a personalidade do Ministro das Finanças. E se a cada nova aparição sua equivale novo pacote de austeridade, com explicações pouco ou nada convincentes até para os seus mais fervorosos correligionários, a cada nova declaração esbate-se a áurea de técnico austero na palavra, rigoroso nas ideias. Aquilo que de início parecia apenas um estilo ‘português suave’, sobretudo por contraste com a truculência anterior, vai-se descobrindo ser a carapaça onde se acobertam obsessões ideológicas do mais fanático fundamentalismo. Profissão de fé idêntica à de Bush – fiéis da mesma religião – só nos faltava descobrir também tratar-se de predestinado com uma missão divina a cumprir.

O convencimento é de tal ordem que, nas múltiplas aparições e declarações a que já foi instado, o ministro Gaspar só responde, explicitamente o estabelece, àquilo que entende dever responder (não se trata, por regra, nem de revelar segredos de Estado, nem, as mais das vezes, de matéria a aprofundar, mas apenas porque... não lhe apetece). Ou então refugia-se em explicações banais que pouco mais traduzem e adiantam que o senso comum. Mera técnica para se esquivar aos temas incómodos, pois estes não são para debater em público, só mesmo entre predestinados em selectos ‘think thanks’, como a ‘misteriosa’ Societé Mont-Pèlerin ou o Fórum Económico de Davos (este, bem mais publicitado).

Episódio revelador aconteceu na denominada Universidade de Verão do PSD, onde o ministro se deslocou para leccionar. Tema, a crise, claro. E as explicações sobre a mesma. Apanhei a prelecção no exacto momento em que Sexa, munido daquele estilo arrastado e pose de académico ao jeito de quem conta uma história a um público infantil, iniciava a explicação da crise pelo... princípio da mesma. Segundo Gaspar, tal ocorreu nos EUA, com a crise do ‘sub-prime’, e apanhou toda a gente desprevenida. Pelos vistos tudo corria às mil maravilhas (!), ninguém contava com tal percalço (?), nem até a módica dimensão económica do que estava em causa prefigurava ou justificava o que veio a acontecer. Mas então de onde veio a ‘profunda e grave crise’ que se lhe seguiu?

A explicação, segundo o ministro, encontra-se em duas palavras apenas, que se prendem com a natureza do sistema financeiro: trata-se de um sistema muito complexo e que baseia a sua actividade na confiança. E com duas palavrinhas apenas se escreve a história desta crise, que parece não ter fim e vai colocando a cada dia que passa cada vez mais problemas. Com a complexidade tranca-se a oportunidade de se aprofundar a origem da coisa, com a falta de confiança arruma-se a questão. Como é que se chegou à complexidade e porque é que se perdeu a confiança, são pormenores que pouco interessam ao fio da história que traz Gaspar satisfeito e confiante nas suas inabaláveis convicções.

Dizer que o sistema financeiro é complexo e assenta na confiança é cair no vulgar, é descrever sem explicar, é tarefa de repórter não de cientista, não acrescenta nada à resolução dos problemas criados. Mas percebe-se porque o faz. Arriscar-se a explicar o que aconteceu, exigiria desmontar a ‘máquina’ – toda a ‘engenharia financeira’ – que produziu a crise. Coisa que provavelmente não sabe fazer (o que duvido), ou se o sabe (hipótese mais plausível), não se atreve, pois isso equivaleria a pôr em causa a sua ilimitada crença no ‘mercado livre’, precisamente a ideologia que engendrou tal máquina – e que, em última análise, é responsável pela crise.

Equivaleria sobretudo a clarificar o seu papel neste governo de fervorosos acólitos do mercado e a admitir o fracasso do carácter público das suas políticas (assim apresentadas por forma a merecerem a indispensável aceitação social). E a denunciá-las como meros veículos de recomposição do capital financeiro (posto à beira do colapso na sequência da crise), através da sistemática transferência de recursos extorquidos ao trabalho – seja por via fiscal ou política, com a destruição do Estado Social e consequente perda de direitos, exclusão...

Para isso conta com a prosélita liturgia da palavra que a seita neoliberal pratica em consagrados rituais destinados a exorcizar infiéis e a arregimentar descrentes, sem pejo de recorrer, sempre que lhe convém, a toda a litania de expressões inócuas para melhor esconder os verdadeiros propósitos da sua subordinada política aos interesses do capital.

sábado, 3 de setembro de 2011

A mudança - II

...e a alternativa

As teorias dominantes do pensamento económico corrente (e por onde passam os conceitos de crescimento e equilíbrio das contas) costumam alinhar-se em torno de duas principais: os que privilegiam o lado da oferta, afirmando que só os ajustamentos automáticos inerentes ao ‘mercado livre’ tornam possível garantir contas certas, a base para o crescimento (neoliberais); os que advogam a necessidade de impulsionar a procura por forma a quebrar-se o ciclo recessivo, condição essencial para se pagarem as dívidas e se obterem contas certas (keynesianos). (A oferta de) uns e (a procura dos) outros, porém, insistem no mesmo modelo de crescimento que nos trouxe até este enrodilhado novelo.

Daí que a terapia proposta por ambos recaia, com algumas variantes, na intensificação da produtividade (associada, se possível, a ‘vantagens comparativas’ que o país possua) como forma de se ganhar competitividade internacional – palavra mágica que, por estes tempos, parece suficiente para calar qualquer objecção. A resolução das denominadas ‘dívidas soberanas’ passaria então sobretudo pelo incremento das exportações (e, em menor escala, pela substituição das importações). Contudo, esta via tem os seus limites, mesmo se apenas no âmbito estrito da teoria (descontando aqui, pois, o impacto do crescimento ilimitado).

Por um lado, a aposta na tentativa de se explorarem habilidosamente as diferenças de produtividade entre países pretende ignorar que a globalização intensificou a lei da perequação tecnológica, ou seja, o avanço técnico que um país possa evidenciar num determinado momento tende a encurtar-se cada vez mais, levando à sua progressiva homogeneização, com a consequente redução, a prazo, dos ganhos obtidos.

Por outro, intensificar a produtividade pode atenuar os efeitos da crise localmente mas tende a agravá-la globalmente. Com efeito, ao contrário do que é comum pensar-se e se divulga, a presente crise surge precisamente do fosso criado entre o enorme incremento tecnológico alcançado pelo capitalismo (entretanto ‘globalizado’) – traduzido numa maior produtividade do trabalho – e a atrofia provocada na repartição dos ganhos daí resultantes, tanto em termos financeiros como sobretudo a nível da distribuição do próprio trabalho.

Já por aqui o referi diversas vezes – mas nunca é demais voltar ao tema sobretudo quando ele é ostensivamente ignorado, em prol da sua apropriação privada – o principal problema que importa resolver nas sociedades actuais é o que fazer com o nível de produtividade alcançado. Dito de outro modo, trata-se de encontrar solução para o tempo de trabalho libertado por esta via. Ou ainda, como (re)distribuir o acréscimo de valor gerado pela maior produtividade do trabalho. A orientação actual vai exclusivamente no sentido de apenas uma parte ínfima da sociedade beneficiar desses enormes ganhos sociais, seja através da apropriação da sua conversão financeira, seja pela exclusão de crescentes fatias da população do acesso ao trabalho e aos rendimentos por ele proporcionados. Com resultados devastadores, traduzidos na mais profunda e persistente crise do sistema – já não apenas mais uma crise periódica, a cada dia se revela mais o próprio sistema em crise!

O problema é então de organização social – e não das pretensas ‘leis’ da economia, como nos afiançam, marteladamente, encartados comentadores pagos para intoxicar/domesticar a opinião pública e iluminados políticos destacados para nos (des)governarem. Trata-se, pois, de inverter a tendência actual que impõe a intensificação dos ritmos de trabalho para os que o têm – enquanto um cada vez maior número de pessoas é dele excluído. Significa isso que a construção de uma alternativa à presente desordem social deverá forçosamente incidir na redução global do tempo de trabalho, proporcionando maior espaço para o lazer aos trabalhadores e abrindo espaço para o trabalho aos que dele actualmente não dispõem.

Enquanto se não verificar uma melhor correspondência entre os níveis de produtividade e a distribuição do tempo de trabalho disponível nas sociedades, todas as soluções encontradas para a crise, económica e social, não passarão de paliativos, à espera de uma próxima. Ultrapassar a crise actual de forma sustentada só será possível e acontecerá no quadro de uma reorganização social global do tempo de trabalho – afinal, até nos termos da própria formulação económica clássica, a forma mais simples (a única?) de a expansão da oferta (por via da maior produtividade) encontrar o seu equivalente numa procura alargada.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A mudança - I

Entre a alternância...

Talvez a palavra mais usada por estes dias seja mesmo ‘mudança’. A filosofia assim o estabelece: ‘mudar é viver’, ou ‘a vida é feita de mudança’. Até a poesia glosou o tema e dele fez slogan: ‘todo o mundo é composto de mudança’. Mas as exigências de um quotidiano de incertezas e sem rumo, de contrastes ultrajantes (por vezes a rondar mesmo o absurdo), em desenfreada busca de soluções para a escalada de problemas que o confrontam, tornam este slogan mais directo e pragmático, voltado para a resolução dos problemas imediatos: ‘é preciso mudar, disse-se, porque a crise assim o impõe’.

A ‘crise’ nas suas múltiplas facetas e consequências, desde a crise das agora denominadas ‘dívidas soberanas’ – aparentemente a ‘mãe de todas as crises’ – ao, sobretudo, extenso role de consequências que dela parecem resultar: a incapacidade das famílias solverem os seus compromissos financeiros (assumidos, boa parte das vezes, por insistência dolosa das instituições credoras), o galopante desemprego consequente ao fecho das empresas insolventes, a austeridade imposta (diz-se) pela solvência das contas públicas para garantir (afirma-se) que o país não caia na bancarrota (!), a eminência de uma crise social mais ampla, a vergonha da miséria em tempo de faustosa abundância...

Neste cenário, contudo, se a necessidade da mudança parece reunir consenso, já o rumo que ela deve seguir está longe de o conseguir, pois assume a orientação mais adequada aos interesses de cada um (ou melhor, à percepção desses interesses). Aparentemente, é possível vislumbrar alguma sintonia em torno de um objectivo: a mudança deve ter em vista o crescimento económico – parece cada vez mais fora de agenda o contraponto, aqui e agora, com o mais abrangente conceito de desenvolvimento, não obstante ouvir-se falar com relativa insistência e proveniências muito diversas, em desenvolvimento sustentável!

Tendo em conta a causa próxima da crise actual – o endividamento excessivo (das famílias, das empresas, dos países) – a tónica é posta no acerto das contas: de acordo com a teoria, um crescimento económico saudável (e o próprio desenvolvimento sustentável) só terão condições de acontecer desde que baseados em contas certas. Adiantam, por isso, que a primeira condição para a melhoria de vida das pessoas é, antes de mais, pôr as contas em ordem, recorrendo à prática da imposição (aos outros) dos ‘planos de austeridade’. Teoria e prática a que se têm entregado, com tanto desvelo quanto parcos os resultados, sucessivos governos de siglas várias e acólitos mediáticos de bem nutridas figuras.

Já se percebeu (para quem ainda alimentasse dúvidas) que a mudança proposta por este governo relativamente à prática política do anterior não é de natureza, mas de ritmo, visa essencialmente acelerar (não vá o diabo tecê-las!) a liberalização da economia, ou seja, garantir ao capital condições de exploração do trabalho sem grandes entraves, facilitando a sua acumulação. Sob pretexto de gastos públicos excessivos, o objectivo é, invariavelmente, o mesmo: privatizar o que resta do sector público, desmantelar o Estado Social, fragilizar as relações de trabalho,... em suma, transferir valor do trabalho para o capital! A mudança é, sob múltiplos pontos de vista, para pior! Esta não é, certamente, a mudança que a esmagadora maioria das pessoas esperava e o mundo precisa!

Mas esta é, na realidade, a via da alternância do poder nas denominadas democracias ocidentais. Com mais ou menos acentuação, o cenário não varia muito: as mesmas políticas com novos figurantes, os mesmos carros de luxo com novos ocupantes, uma maior austeridade para os mesmos de sempre pagarem a crise que alguns provocaram e de que largamente benefici(ar)am! Acrescem ainda as explicações/justificações do costume por costumeiros anafados analistas, com a opinião pública vergada ao peso dos grandes números, exibidos por malabaristas travestidos de ‘cientistas’ e bem pagos pela pantomina das percentagens.... No caso doméstico, a descarada singularidade de uma ‘troika’ incumbida de salvar a pele dos subservientes e mal-amanhados decisores nacionais. Porque não lhes bastava – sabiam-no bem – escudarem-se no academismo de teorias construídas – sabe-se há muito – para justificar o anormal esbulho social dos últimos 30 anos!

Alternativa, precisa-se, pois – e com urgência!
(...)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Os ‘milhões da treta’

Nunca como desta vez o Presidente do FCPorto foi tão oportuno... denunciando-se. Ao falar em ‘milhões da treta’ a propósito de um negócio alheio (ainda que da área desportiva), revelou estar por dentro das manigâncias, do ‘gato escondido’, deste tipo de negócios. Porventura realizá-los também. A avaliar pelos contornos de alguns em que se encontra envolvido...

Agora que se esclareceu o perfil do tal negócio objecto do referido comentário, espera-se que a CMVM demonstre a mesma pronta e pressurosa actuação no apuramento de outros tão ou mais estranhos que este e inicie investigação adequada para os clarificar, arredando assim qualquer suspeita que sobre eles paire.

O facto de vivermos num país lamentavelmente dualista, a começar pela economia e a distribuição da riqueza – os ricos cada vez mais ricos, os pobres... – não pode servir de pretexto para que essa pecha se estenda às demais componentes sociais, em especial à justiça (nas suas três vertentes: legislar, aplicar e fiscalizar). Se bem que a experiência corrente não abona muito em favor da sua isenção, na opinião pública encontra-se até enraizada a crença contrária, a de que a justiça tem duas caras conforme os ‘acusados’.

Certo é que, se quiser ser coerente, não faltarão ‘casos’ à CMVM para investigar junto de quem demonstra saber do que fala, quando fala em ‘negócios da treta’. A começar pelos últimos, os mais recentes, já que sobre os restantes parece existir um misterioso manto legal(?) protector, tecido a partir de ‘banalidades’ processuais (pelo menos em confronto com a substância apurada), não obstante todas as evidências patenteadas.

Por estranho decreto, encontra-se instituída a regra de tudo se permitir a determinados figurões, que ganharam o invejável estatuto de impunidade que os torna imunes à lei, digam eles o que disserem (e, em muitas situações, façam eles o que fizerem), bem alimentado pelos ‘media’ por verem aí uma inesgotável fonte de vendas. Esse estatuto especial, entre nós, não sendo exclusivo, é hegemonizado claramente, a nível político pelo Jardim da Madeira, a nível desportivo pelo Pinto do Norte. E se as picardias do primeiro, acompanhadas ou não pela bravata chantagista da ameaça de independência para a ilha, deixaram há muito de ter piada pelos custos que, por norma, acarretam para os contribuintes (a maioria do ‘contenente’ decerto até veria com bons olhos a concretização daquela ameaça), já quanto ao segundo é-lhe apenas atribuída, quando muito, uma tão irritante quanto rançosa faceta histriónica – sempre a meter o bedelho onde não é chamado, com piadas gastas da geral!

Nada mais errado, porém. Tenho sustentado que uma das razões para a derrota do projecto da regionalização, foi o mau exemplo de ‘regionalistas’ como Pinto da Costa. Não a única, claro, nem talvez a principal, mas sem dúvida que o feroz ‘extremismo’ demonstrado por tal arauto de uma causa que poderia ter contribuído fortemente para se minimizar a crescente desertificação com que o interior do país se vê confrontado, terá levado muita gente a abster-se ou mesmo a votar contra no respectivo referendo, com receio de tais exemplos poderem vir a disseminar-se.

À parte os efeitos que decorrem da componente desportiva para o resto da sociedade (tudo, afinal, se interliga com tudo), aqui importa sobretudo alertar para a eventual duplicidade na actuação das entidades a quem cabe fiscalizar (sejam as finanças ou 'tão-só' o desporto). Ao menos para evitar que se diga existirem ‘duas justiças’, a nível económico, desportivo,...

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Mágoas e sorrisos neste ‘quente’ verão cinzento

Apanhado entre duas saídas, não resisto a rubricar aqui a primeira impressão deste Agosto que agora desponta. Início de mês e da semana, para a maioria o começo das férias, logo de manhã a ânsia informativa leva-me às notícias dos canais televisivos. Domina o acordo obtido pela madrugada entre democratas e republicanos sobre o aumento da dívida norte-americana, são conhecidos novos elementos que indiciam o agravamento da situação social na Síria (já com mais de uma centena de mortos apenas nos últimos dias), opositores detidos em Moscovo, a polémica Portas-Jardim ou o início das dissensões no seio da maioria, a troika de volta para fiscalizar a aplicação do memorando (1ª avaliação trimestral de bom comportamento), o BPN entregue de ‘borla’ pelos amigos de Mira Amaral aos angolanos do BIC, os transportes públicos mais caros a partir de hoje com aumentos que chegam a ultrapassar os 20%,...

Ressuscita a Comissão de Utentes da Ponte 25 de Abril para organizar novo buzinão contra a quebra da tradição de não se pagarem portagens durante o mês de Agosto. Mas os murmúrios e os sinais de um crescente mal-estar geral – que se sente mas ainda não é bem visível – parecem, por enquanto, mais de expectativa do que de tensão.

Por entre o amontoado de notícias e reportagens, porém, nenhuma me prendeu mais a atenção do que o directo obtido numa estação de comboios dos subúrbios de Lisboa. A propósito dos atrasos provocados por obras na via, com os ‘normais’ impactos negativos no quotidiano dos utentes (ficamos a saber que a CP ‘culpa’ a Refer pela situação...), a repórter interroga uma senhora sobre os novos aumentos tarifários. A resposta, serena e dorida, de alguém que vive sozinha por conta de um rendimento mensal à volta dos 600€, informa-nos que o aumento do seu passe se cifra em 8,25 euros!

A serenidade melancólica e o dorido sorriso que se escapam do rosto da interpelada enquanto responde às perguntas que lhe são postas, contrasta com a dramática realidade contida nestes números. Quase que chega a ser chocante e é decerto incompreensível a infinita paciência e a capacidade de resignação demonstradas neste instantâneo, obtido numa manhã cinzenta deste Agosto farto de míngua. Esta é, sem dúvida, a imagem de um certo país real que tantos dizem saber interpretar. Ao lado, é claro, dos que tiram partido da situação e amealham à conta da penúria, como o refere a notícia de há dias de os mais ricos terem, em 2010, aumentado os seus proventos em mais de 17%!!!

Não posso deixar de me interrogar sobre se esta é mesmo a única imagem do país real. Ou se, para além das esperadas movimentações institucionais (partidárias, sindicais, corporativas,...), os que sofrem os efeitos desta austeridade sem sentido vão aguentar durante muito mais tempo o peso da catadupa de medidas que já levam mais de dez longos anos de ininterruptas vagas de agravamento, mas que parecem ter apenas agora começado. Ao brutal e inédito aumento dos transportes, segue-se a privatização do que resta de rentável do sector público (fragilizando, em nome da ideologia responsável pela crise – é bom sublinhá-lo as vezes que forem necessárias – a capacidade financeira do Estado), mais restrições aos serviços públicos básicos (até onde terão coragem de levar o desmantelamento do SNSaúde?), maior precarização do trabalho com o consequente aumento do desemprego, alterações na estrutura do IVA, ‘saque’ ao 13º mês,...

Depois do socialista Sócrates ter cumprido o papel de facilitar a abertura ao capital – à semelhança dos seus congéneres e restantes social-democratas desta descaracterizada Europa – cabe aos sociais democratas lusos, no papel dos neoliberais deste globalizado planeta, prosseguir (concluir?) a tarefa de desmantelar o que resta de serviços públicos e privatizar o que, no final, ainda sobrar do Estado capaz de gerar lucro (segurança?, justiça?, prisões?,...). Sabendo o PS neutralizado pelos compromissos assumidos com a troika, agem com rapidez e total impunidade. Indiferentes às dificuldades e aos ‘pequenos’ dramas pessoais, dos milhões de pessoas que fazem o país e que apenas contam como número estatístico capaz de transferir (ou extorquir) valor significativo do trabalho para o capital, ou como contribuintes para preencher os desvios, legais que sejam, da ruinosa gestão das negociatas em que se envolvem.

Até onde, pois, os sorrisos darão lugar à raiva, a resignação à revolta?

quinta-feira, 14 de julho de 2011

As regras do mercado – II

... à incontrolável crise do sistema

No meio do amalgamado de informações que se vai abatendo sobre a Crise do Euro, contribuindo mais para a avolumar do que para a acalmar (e muito menos resolver), ninguém ainda se lembrou (ou parou para pensar) nas consequências que, a prazo curto, irá ter o fim generalizado do crédito barato, depois que se constatou que a sua lógica desembocava... no incumprimento, na dívida incobrável, na insolvência – das famílias, das empresas, até dos Estados.

O capitalismo vive do momento, das respostas aos problemas no imediato. Talvez isso explique a razão de, até agora, ter sido ignorada (ou nem sequer se ter ainda equacionado) a questão, com relevância para o equilíbrio geral do sistema, de se saber como se irá comportar a procura, a partir de agora. Depois da atrofia a que o poder aquisitivo dos assalariados foi sujeito ao longo das três últimas décadas, restou o acesso ao crédito barato para se permitir escoar a produção dos carros alemãs, dos telemóveis finlandeses, dos computadores japoneses,...

Agora, comprovada a dívida excessiva e o risco de incumprimento, sumiu-se a capacidade de endividamento, público e privado, estancou-se o recurso ao crédito criado como forma de compensação para os baixos rendimentos dos consumidores, o que terá reflexos e não deixará de afectar a procura externa, com óbvias repercussões nos tradicionais países exportadores (e respectivas balanças comerciais). Desde logo, na proporção do peso que os atingidos pela crise da dívida tiverem no comércio mundial, mas depressa esse movimento alastrará em bola de neve. Porque esta crise não afecta só, porventura nem principalmente, Portugal ou a Grécia (e de um modo mais geral, a periferia europeia), ela abarca e passa um pouco por toda a Europa (Alemanha incluída) e atinge, talvez ainda em maior grau (resta ver o que aí vem...), os EUA, o Japão,...

É sabido que, por enquanto, será possível contar com o crescente poder aquisitivo dos ‘periféricos’ fabricantes de componentes (China, Índia,...) para os produtos industriais do ‘centro’ altamente desenvolvido. Não se pode ignorar a capacidade imensa que estes novos mercados constituem pelo que, seguramente durante algum tempo (quanto mais?), irão suportar ainda o escoamento da produção e alimentar o funcionamento da máquina. Pelo menos até ao momento em que eles próprios, após um período de rápida aprendizagem, passem a dominar a tecnologia e a produzir os mesmos produtos altamente evoluídos dos países do ‘centro’.

Os poderes políticos instituídos, da Europa aos EUA, dominados pela exclusiva preocupação da resolução da crise das dívidas, parecem propositadamente alhear-se do que a explica e a (re)produz, a crescente debilidade das diferentes procuras. Paira no ar o receio de poder soçobrar a complexa rede financeira estabelecida a nível global nas últimas décadas e com ela o sistema económico, na versão neoliberal, que a teceu. Daí que, obcecados pela retoma do rumo interrompido pela brutal destruição de valor sofrida no pós crise de 2008, apenas admitam o cenário que privilegia a recomposição do abalado poder financeiro, por transferência de valor do trabalho através das políticas de austeridade que têm vindo a ser impostas por toda a parte. Esta é, aliás, a marca distintiva do neoliberalismo: o desvelo posto no suporte ao sector financeiro, contrasta com o desleixo (ou desprezo?) com que as pessoas – e a economia real – são tratadas.

Parece arredada, pois, qualquer tentativa fora dos cânones neoliberais para inverter este processo (como o keynesiano reforço da capacidade aquisitiva, pública e privada). Os efeitos daí decorrentes, contudo, tenderão a irromper em incontrolável cascata, com um poder de destruição, a nível económico e social, muito superiores aos de 2008. Afinal, tratar-se-ia aqui apenas, para já, de garantir a estabilidade no funcionamento do sistema, de preservar o modo de produção e consumo de massas, de assegurar a manutenção do estilo de vida ocidental, posto em causa quando se desconjunta a máquina que gera o consumo – que é aonde levam estas políticas de austeridade, justificadas como inevitáveis pela desconfiança dos mercados: palavra das agências de rating! Essas mesmas que, sem pudor e sem razão, atribuíram ao país a classificação de ‘lixo’!

Que se aprestam a desempenhar a função da orquestra no afundamento do Titanic!

terça-feira, 12 de julho de 2011

As regras do mercado - I

Da descontrolada crise do Euro...

Após uma primeira, unânime – e algo inesperada – reacção de protesto à notação da Moody’s ao risco do país por parte de políticos e analistas, desalentados com esta posição, começa agora a fazer-se sentir algum desconforto com essas reacções, tidas por excessivas e pouco objectivas, contrárias à ‘inevitável’ e sacrossanta vontade dos mercados. Vontade exemplarmente expressa, começa a perceber-se melhor, nas análises e orientações das agências de rating, erigidas em guardiãs da lei e da fé. Contrariá-las representava, até agora, sacrilégio intolerável e – asseguravam-nos – inútil e mesmo contraproducente, pois elas representavam a nua e crua realidade, hostilizá-las apenas contribuía para atrasar a recuperação da necessária confiança dos mercados!

De repente, porém, até os que consideravam o seu papel intocável, se atreveram a pô-las em causa. Para além dos aspectos psicossociais envolvidos nesta posição (assomos de serôdio pendor nacionalista?), a aparente contradição que ela comporta sugere, para já, o destaque de três notas mais objectivas:

A primeira tem a ver precisamente com a surpresa manifestada por aqueles que agora se manifestam, mais que surpresos, indignados: é que a Moody’s ‘apenas’ se manteve na lógica das suas anteriores intervenções! Daí que o desconforto pela posição dos neo-indignados surja por parte do núcleo duro teórico, receoso de que esta escalada acabe por abalar toda a construção económica/política neo-liberal. Que possa pôr em causa as políticas de austeridade, o processo de transferência de valor do trabalho para o capital. As críticas viram-se então para as instâncias europeias (enquanto utilizadores dessas notações), acusadas de lhes darem a importância que, afinal, até nem merecem assim tanto (!). E de contradição em contradição se vai pontuando esta atribulada crise do Euro, cada vez mais próxima da sua mais que provável extinção – por auto-implosão!

A segunda – destacada, em especial, por Manuela Silva (SIC/Expresso da Meia Noite) – alerta para o que deve ser considerado essencial neste processo: mais do que apodar de abusivas, parciais ou fraudulentas as intervenções das agências de rating, atribuindo-lhes empenho directo na crise do Euro (interesses cruzados), importa perceber que por trás de tudo isto alastra o processo mais vasto de financeirização da economia global, centrado na valorização do dinheiro, arredado da economia real e das pessoas. A bolha financeira mundial assume proporções imensas (estima-se sete vezes a economia real), no horizonte perfila-se, eminente e ameaçadora, uma devastadora catástrofe! O desprezo pela realidade, ditado pela arrogância ideológica, ameaça acabar em auto-destruição!

O que nos permite, em terceiro lugar, desembocar na questão central da própria sobrevivência do capitalismo, dos múltiplos recursos e inúmeras artimanhas de que dispõe para ultrapassar as crises que vai produzindo, como a presente, em que se vê confrontado com a debilidade crescente da procura: depois de esgotada a via do crédito barato como forma de compensação para a diminuída capacidade aquisitiva dos consumidores (por força da sistemática redução do peso do trabalho no Rendimento Nacional empreendida nas últimas três décadas), o que resta então a um sistema que se constrói na base do consumo? A realidade assim o determina: sem consumo não há capitalismo e sem procura solvente não há consumo.

Subsiste, é certo, ainda e sempre, o magno problema com que o sistema se confronta, o de o seu princípio vital – o crescimento contínuo (sem o qual surgem as crises...) – esbarrar num mundo de recursos escassos, o da expansão ilimitada da economia se confrontar com os limites do planeta. Mas isso, que atinge o âmago do sistema, também fica já para lá dele, não está ao seu alcance resolvê-lo, transcende-o.

Por agora, importa olhar um pouco além da ‘mera’ crise do Euro, entrar na questão central que impede a sua resolução e a de todas as crises capitalistas, a procura solvente.
(...)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Euro ‘alemão’ na armadilha do crédito

A crise actual teve origem, como se sabe, nos EUA, mas rapidamente atingiu a Europa a ponto de, agora, ser nesta que mais se faz sentir. Pelo menos é nela que, por enquanto, mais se centram os meios que a amplificam, da deletéria acção das agências de ‘rating’ à urdida intermediação da comunicação social. Começou pelo rebentamento da bolha imobiliária dos ‘sub-prime’, rapidamente se transformou numa amplificada crise financeira mundial, para se transferir e estacionar, nos últimos meses, na crise das dívidas soberanas da periferia da Europa. O que inicialmente podia vir a ser uma profunda crise do dólar, afinal depressa se converteu na prova de sobrevivência do Euro, fruto de dinâmicas próprias ou tramas alheios.

A componente europeia da crise tem vindo a desenvolver-se em torno de duas questões principais interligadas: uma atribulada construção do Euro (e do projecto europeu), de par com o endividamento excessivo de alguns Estados e dos particulares, um pouco por toda a parte. Contudo, do emaranhado caótico de informações que a turbulência destes dias tem produzido, começa a evidenciar-se e a ganhar forma na consciência das pessoas uma ideia mais definida do que se encontra em causa nesses dois pontos: que o projecto do Euro (e da própria UE) foi gizado e tem vindo a efectivar-se de acordo com o perfil e os interesses da Alemanha (ainda aqui, de uma certa Alemanha!); que o endividamento constitui a via a que o sistema recorre, esgotados outros meios, para ultrapassar os inevitáveis bloqueios de uma procura solvente.

A conjugação do aumento desigual da produtividade (em benefício dos países de especialização produtiva de maior pendor exportador, como é o caso alemão), com a redução do peso do trabalho na repartição do PIB (a que se assistiu ao longo das três últimas décadas por força da aplicação das doutrinas neoliberais), determinaria uma forte contracção da procura não fora o recurso ao estratagema (ou armadilha) do crédito barato. Na realidade, não foram as pessoas que procuraram o crédito, o crédito é que foi (literalmente) ao encontro das pessoas, ‘oferecido’ pelas Instituições Financeiras – as únicas a lucrar com este esquema – em campanhas de promoção agressivas e de elevado risco, como veio a comprovar-se.

O papel dos Estados, nas circunstâncias e sob o efeito das mesmas doutrinas, foi o de servilmente ‘colaborarem’ nesta monstruosidade através da destruição do edifício normativo (a desregulamentação financeira) erguido sobretudo em resultado da Grande Depressão, ao mesmo tempo que, endividando-se também, tentavam manter, por forma a não alienarem as suas bases eleitorais, os serviços mínimos do Estado Social.

Entretanto, o nível de irracionalidade a que chegou a situação actual na questão das ‘dívidas soberanas’ é de tal ordem que leva mesmo pessoas razoáveis a tentarem encontrar explicação, sem quaisquer dados de suporte, numa hipotética ‘conspiração contra o euro’ e a própria integração europeia. A isso induz a acção e a disposição (desconfiada, agitada, nervosa,...) dos famigerados mercados – essa abstracção sem rosto, mas não desprovida de emoções – a qual permite o exercício de se descortinarem por trás dela cavilosas artimanhas! Mantidos à solta, actuando sem regras e ao sabor dos interesses que os dominam, os ditos mercados transmitem a sensação de encobrirem obscuras manobras, geridas por entidades misteriosas, mas com objectivos bem definidos e pensados. Os políticos não passariam, nesta perspectiva, de títeres manipulados sem capacidade de intervenção. Sempre lestos a agitar, como forma de chantagem sobre as pessoas, o exemplo dos gregos – metecos no seu próprio país, párias na Europa que criaram (a começar pelo próprio nome).

Mesmo depois de já se saber o que irá acontecer à Grécia e, muito previsivelmente a mais uns quantos países europeus, em resultado da acção espontânea dos mercados (!), continua a vingar a tese de que a solução passa pela saída total do Estado da economia, deixando aos privados (leia-se, capital financeiro) a tarefa de esfrangalharem os restos que sobram desta operação monstruosa iniciada nos já longínquos 70, amadurecida nos 80, aprofundada nos 90 e acabada já nos inícios deste século, com enorme estrondo, diga-se, no meio de uma crise de que se não vê saída, presa na voragem das políticas que a originaram!

Para já, por via do endividamento atingido (Estados e particulares, ambos caídos na armadilha do crédito barato), foi posto em causa o projecto europeu – seja qual for o conteúdo defendido para esse projecto – mas desde logo ‘este’ feito à imagem e para servir os interesses alemãs (e afins).

domingo, 3 de julho de 2011

Chamaram-no? Agora aturem-no!

Os últimos meses antes das eleições legislativas mais pareceram uma desenfreada cavalgada dos partidos parlamentares estranhamente atraídos para o abismo! Percebia-se a estratégia da atracção da direita (PSD e CDS), ansiosa por ‘meter a mão no pote’: com o pano de fundo da crise propício e os ventos europeus a favor, bastar-lhe-ia esperar que, por estranhos propósitos, a esquerda (PCP e BE) se estatelasse, contando para isso com o híbrido centrão, conduzido por um PS, também ele preso de uma estranha vertigem suicidária (o episódio do secretismo em torno do PEC IV está ainda por esclarecer). E não foi preciso esperar muito para tal estratégia resultar. A chegada ao poder da direita acontece, pois, em condições que lhe são bem favoráveis, por deferência e especial obséquio de uma esquerda que demonstra sérias dificuldades em aprender com as experiências passadas.

Coube ao PS, pendurado ao centro (como de costume) e alienado da esquerda (como é frequente), preparar o caminho e abrir a porta à sua entrada: pela via menos imaginativa, de PEC em PEC até à ‘troika’ final, mas também (talvez até sobretudo) através do trabalho feito junto da opinião pública, preparando-a para aceitar, em nome de uma hipotética redenção num futuro a perder de vista, todas e quaisquer medidas de uma austeridade ilimitada e sem garantia de sucesso, levando-a resignadamente a reconhecer, como inevitável, todas as malfeitorias que, em consequência, entenderem infligir-lhe.

Não soube a esquerda (PCP, BE e tantos outros) contrariar o discurso de todas as ‘inevitabilidades garantidas’, lutar contra o medo e o desespero que se foi infiltrando, apresentar alternativas viáveis ao curso do inevitável, desmontar convictamente a estratégia da direita. Não só não o soube fazer, como até com ela se conluiou bastas vezes e, de mãos dadas, passo a passo, se chegou a este ponto!

Agora, mais que expectativas, restam perplexidades, bem reflectidas na quase paralisia no tom dos discursos com que a esquerda enfrentou o debate do programa de Governo na AR – com um PS em estado catatónico, amarrado aos compromissos que ele próprio teceu! Se, por um lado, a clarificação ideológica de uma direita que se proclama e gaba de ultraliberal (mesmo que temperada por uma serôdia e desusada democracia-cristã) pode ser vista como salutar, o certo é que o resultado desta governação poderá vir a afirmar-se pelas piores razões e os seus efeitos perdurarem por muito tempo, traduzindo-se num recuo social de consequências imprevisíveis.

Para já, o que sobra da substância do debate, é o propósito central de desferir o golpe de misericórdia no Estado Social, de o transformar num Estado Assistencialista, recuando quase um século na concepção dos direitos sociais e humanos. Constitucionalmente garantidos, adiante-se. À mistura com convenientes medidas imediatas de fácil pendor popular e garantida aceitação: extinção dos Governos Civis (à mistura com um imbróglio constitucional); suspensão do fecho de escolas do 1º Ciclo no interior do país (à mistura com o contrário do que consta no ‘memorando’); utilização dos militares no combate aos incêndios florestais (à mistura com o facto de não ser inédito); abolição do lugar de sub-director dos centros regionais da Segurança Social,...

Pelo meio, uma nota simpática, quanto ao estilo do novo ministro das Finanças: directo, objectivo, sem rodeios, diria quase ‘naïf’ nas respostas. Questionado por uma jornalista sobre se podia adiantar a data de um determinado evento, respondeu simplesmente: ‘Não posso, não senhor’! Lapidar. E um sorriso. Quanto ao resto – e o resto aqui é tudo – as expectativas são nenhumas: quem, aos 17 anos, se dá ao trabalho e consegue ler o ‘Capital’ de Marx, para, aos 50, se dizer admirador de M. Friedman... Para quem tem em mãos a principal tarefa do programa de Governo de Passos...

Perante as novas medidas anunciadas (outras se seguirão), depois das juras da campanha eleitoral, apetece apenas dizer: Chamaram-no? Aí o têm! Agora aturem-no!