A política económica contra a vida
A actual crise financeira é
apenas o efeito mais visível dos múltiplos desequilíbrios que hoje afectam a
organização das sociedades e das consequentes tentativas levadas a cabo pelos
diversificados interesses que nelas se digladiam de os resolver a seu favor. É
a capa ou a forma adoptada, desta feita, pela crise mais global que ameaça o
sistema pondo em causa a sua continuidade. Por trás dela perfilam-se todos os
problemas sociais que, a seu tempo, exigirão outra organização e determinarão
outro sistema.
Os episódios que o indiciam estão
tão inseridos no quotidiano das pessoas e são tão frequentes que a sua
ocorrência já pouco surpreende, dificilmente alguém pára para sobre eles
reflectir ou ainda menos os questionar, perdeu-se a noção da sua importância e
da influência que exercem sobre a vida das pessoas. É o caso, por exemplo, da
permanente tensão entre o sobe e desce das taxas e o circo especulativo instalado
nas Bolsas de todo o mundo, desbragado ritual completamente alheio à realidade
vivida, mas onde se joga (literalmente) o destino de milhões de pessoas, num
carrossel incontrolável em que se produzem e destroem fortunas inauditas, se fazem e desfazem vidas concretas.
Outros, enfim, assumem o carácter de insólitos ou
provocatórios. Recentemente os ‘mais ricos’ de alguns dos países ‘mais
desenvolvidos’ do planeta (EUA, França, Alemanha,...), decidiram, num inusitado
gesto filantrópico (?), lançar um apelo aos respectivos Estados no sentido de
lhes taxarem as suas imensas fortunas. A percepção de que, no actual processo
de transferência de valor do trabalho para o capital (que tem permitido a
acumulação de riquezas colossais num reduzido número de pessoas), poderiam
estar a ser ultrapassados os limites do suportável, pondo em risco a própria
continuidade do sistema que tanto os tem mimado (nas palavras de um deles) –
que é como quem diz, a sobrevivência da ‘galinha dos ovos de oiro’ – só
aparentemente é contraditório com a lógica de um sistema que se demonstra
insaciável e alheio a considerações morais. Trata-se, no fim de contas, do
instinto de sobrevivência interpretado pela elite dos interesses em causa.
A demarcação contrastante entre a sofisticação do aparato
cerimonioso de que se rodeiam os decisores (políticos e económicos)
responsáveis pela imposição da actual austeridade e as rotinas laboriosas dos
que lhe sofrem os efeitos, entre a preservação incólume de requintados modos de
vida e a crescente ruína de vidas em desespero, põe em confronto dois mundos
opostos, de costas voltadas, não obstante a legitimação (a democrática e a
ditada pelo mercado) reivindicada pelos primeiros.
No debate parlamentar com o Governo, após o anúncio das
principais medidas dos OE/12-13 – o tempo do plano de austeridade
imposto pela ‘troika’ – Jerónimo de Sousa, de dedo em riste para Passos Coelho,
profere a frase assassina: ‘Ó Sr. Primeiro Ministro, você sabe lá o que é
a vida!’. Incomodado pela nudez subitamente exposta, o visado replica
de forma repetitiva, quase mecânica: ‘Eu sei o que é vida, eu sei o que é a
vida,...’ Seis vezes o repetiu num claro exercício psicanalítico de
autoconvencimento, mas a frase fora-lhe fatal, a si e ao projecto ideológico
que, sob os auspícios do FMI, pretende realizar (não o esconde) a expensas
lusas. A ele e ao grupo de fundamentalistas loucos que não têm pejo de levar
por diante experiências teóricas por conta da vida de milhões de pessoas (‘bando
de criminosos’, ousou chamar-lhes Vasco Lourenço!). Indiferentes aos dramas
provocados por tais medidas, inebriados pelo brilho de modelos económicos
construídos à margem da vida real. E, por isso, votados ao fracasso, mesmo que
a poder de recursos e sofrimentos inauditos.
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