Aparentemente, não se percebe o que levou, nos últimos
tempos, importantes figuras do poder económico a arriscarem a imagem de
prestígio (associada ao sucesso) que ostentam na opinião pública, a terem de se
expor através de ‘ousadas’ afirmações sobre a grave situação actual do País. Do
muito glosado ‘ai aguenta, aguenta’ de Ulrich, às deambulações
filosóficas em torno da subsidiodependência, do ‘mamar na teta do
Estado’ de Soares dos Santos ou à mais recente defesa de baixos salários
por parte de Belmiro, tudo parece permitirem-se estes expoentes de estrénuo
patriotismo e inexcedível solidariedade. Porque dificilmente ignoram as
reacções que as suas palavras provocam, sobretudo num momento em que a maioria
(a que eles não pertencem) passa por enormes dificuldades e carências. O que
pode levar então pessoas a que não falta nada (nem sequer um pouco de
inteligência), a demonstrarem uma tão aparente falta de senso? A optarem pela
afronta gratuita e a provocação inútil? A assumirem uma ostensiva defesa do
sistema contra a própria lógica dos seus interesses imediatos?
Entretanto e após dois anos de políticas deliberadas de
uma brutal austeridade, comandadas pelo famigerado ‘memorando da troika’,
perante o já iniludível fracasso dos objectivos a que se propunham, surge agora
a mais surpreendente das explicações pela boca do núcleo responsável pela sua
elaboração e execução: afinal o memorando original foi mal desenhado, o
que explicaria o desastre dos resultados! Primeiro o inconstante
deputado Frasquilho, depois o enfadonho ministro Gaspar, por último o nutrido
gestor Catroga – o mesmo que, em 3 de Abril 2011, afirmava que ‘a negociação
do programa de ajuda externa (o dito memorando) foi essencialmente
influenciado pelo PSD’! – todos à uma garantem existirem erros no ‘desenho
original’ (!) do programa.
Sendo este mais um peculiar contributo do ‘economês’ – já
tínhamos a ‘engenharia financeira’,... – deste episódio sobra sobretudo a
desfaçatez que caracteriza a impunidade da pandilha. Já não bastava terem
destruído a vida de muitas pessoas com a política que deliberadamente impuseram
ao País, faltava-lhes empurrar a culpa dos maus resultados para o desenho mal
feito (!), invocar a falta de jeito de ‘alguém’ (?) na concepção do modelo para
o agora assumido aborto. E sobressai ainda a rubicunda cara de pau de Catroga,
confesso participante na orgia que gerou tal aborto, mas recusando assumir
responsabilidades na consumação do indecoroso acto, sacudindo a água do capote,
sem que a lógica do raciocínio o leve a enjeitar a disforme criatura, ou seja,
a austeridade.
A explicação para o coro estrategicamente coeso,
determinado e uníssono em torno da tese oficial do ‘não há alternativa’ a
esta austeridade, tem a ver, por um lado com a sensação do enorme poder
de que desfrutam, suficiente o bastante para impunemente dizerem o que pensam –
o que pensam melhor poder servir os seus interesses! – sem receio de graves
consequências pessoais; por outro, com o melindre do momento e a consciência de
que, detendo esse poder, chegou a hora de darem a mão ao fragilizado poder político
que afinal tanto os tem mimado (na terminologia de Warren Buffet, o 2º mais
rico do mundo).
Numa altura em que os acontecimentos relevantes tendem a
acelerar o seu ritmo (contínua degradação dos indicadores económicos e sociais,
crise de Chipre, decisão do TC,...) e ameaçam precipitar, no seio da UE, um
desfecho de todo imprevisível, mas onde ainda são possíveis todos os cenários –
incluindo a indesejada mas cada vez mais provável implosão do Euro, difícil de
evitar se algum país se vir obrigado a sair dele – os diferentes grupos
económicos tomam posição na defesa dos seus interesses específicos. Porque ‘eles’
sabem que, se o edifício ruir, são quem tem mais a perder, sobretudo agora e
após observarem que até o paraíso fiscal sediado na suposta fortaleza de Chipre
se demonstrou refúgio pouco seguro para os irrequietos capitais errantes que
vagueiam pelo mundo das aplicações especulativas – e por isso puseram o planeta
à beira do precipício.
Em contrapartida, quem tem pouco ou nada, pouco ou nada perderá, embora
‘eles’ confiem, alicerçados em milénios de experiência, que as pessoas
dificilmente arriscam com receio de perderem o pouco que têm. Mas o desespero
para onde estão a ser empurradas milhares delas pode alterar este cálculo e
precipitar um desfecho não desejado. É a observação histórica que se encarrega
também de o confirmar!