quarta-feira, 10 de junho de 2015

Mitos e mitomanias

Um dos episódios mais caricatos, mas bem sugestivo, a que foi dado assistir-se nos últimos tempos foi o do discurso punitivo sobre mitos – ‘mitos urbanos’ para lhes conferir um toque de modernidade – por parte de um político... mitómano! Aconteceu primeiro a propósito do incentivo à emigração dos jovens (piegas?) – agora, contra todas as evidências, nega que o tenha feito; repetiu-o logo a seguir sobre o projecto de refundação do Estado à boleia do ‘memorando’ – para agora se refugiar no enredado do texto tentando livrar-se do que então assim foi entendido… e não desmentido.

De mitos se faz, é certo, a realidade actual, mas não por via destas manhosas habilidades linguísticas de um primeiro-ministro viciado na mitomania. Sem peso nem relevância bastantes para justificarem grande perda de tempo com elas. Pois não foi certamente por ter sugerido a emigração (como forma de reduzir a pressão do desemprego descontrolado) que se assistiu nos últimos quatro anos ao maior fluxo emigratório de que há memória, nele se integrando alguns dos jovens mais qualificados de sempre. Se bem que esse discurso correspondesse a uma política que foi posta em prática em nome de um projecto de sociedade claramente definido, longamente preparado e impiedosamente prosseguido sem olhar aos custos humanos provocados. E isso, sim, já merece tempo e outro tratamento.

Como, por exemplo, o mito do Euro, expresso no conceito de que, à parte uma muito reduzida minoria radical, ninguém quer sair do Euro, pois isso corresponderia a um retrocesso de consequências irreparáveis, pelo que tudo deverá ser feito para que tal catástrofe não aconteça. Pouco importa que, pelo caminho e em nome desse mítico desígnio, se destrua a frágil estrutura produtiva do País, se delapide a sua escassa riqueza, se eliminem empregos e ocupações profissionais, se comprometa o futuro, se desfaçam vidas e projectos de vida. Neste depressivo contexto, o Euro assume-se como o essencial de um projecto em nome de um vago e distante sonho europeu. O mais curioso é que, pela boca dos seus arautos, tal sonho só terá realização na melhor das hipóteses daqui a vinte, trinta, quarenta anos… Isto se a actual tendência de baixa das taxas de juro se mantiver para não agravar demasiado uma dívida impagável! Ainda assim ele é apresentado como o único projecto possível para Portugal. Para além dele sobra o caos e a miséria!

Por esta altura, porém, já poucas dúvidas restam sobre a extinção, a prazo, do Euro. Deste Euro criado para servir – não obstante todas as mitomanias com que o envolvem para o tornar aceitável – de instrumento à implantação/imposição de um projecto político cujo objectivo último é, confessadamente, a supremacia da liberdade dos mercados sobre a vontade democrática dos povos. Se acontecer, como é provável, a expulsão da Grécia da zona Euro, pelo menos o Euro que se conhece acabou! A ilusão grega de que lhe seria permitido colocar a cabeça fora da austeridade imposta que a sufocava e assim retomar algum fôlego que lhe consentisse vir a cumprir as responsabilidades externas legitimamente contraídas, foi esmagada por uma coligação de poderes apostada, contra todas as veleidades e alternativas, em demonstrar a absoluta prioridade política daquele projecto. E é por isso que dificilmente se admite qualquer outro cenário para a Grécia.

Um eventual volte-face representaria, para além de um enorme revés e uma demonstração de fragilidade desse projecto, um perigoso e inadmissível precedente. Mais do que improvável (se se considerar a pequeníssima margem permitida ainda à política), do que aqui se trata é mesmo de uma impossibilidade, pois a lógica das forças do mercado assim o determina. Qualquer alteração introduzida no actual processo de globalização dos mercados contrária à lógica liberalizante que o domina ameaçaria abanar e fazer ruir o edifício até agora construído pelo risco de propagação e contaminação daí resultante. A menos que a consciência do instinto suicidário do sistema permita ainda, contra todas as expectativas, inverter uma situação que, descontrolada, ameaça precipitar a sua derrocada. Como, aliás, já aconteceu no passado ainda que tal só haja ocorrido após verdadeiras hecatombes – aquando da Grande Depressão, na sequência da II Guerra Mundial… Afinal talvez se não esteja hoje assim tão longe de uma situação extrema como essas!

Enquanto isso, os mitómanos da política insistem e persistem nos ‘velhos mitos’ do mercado que sustentam a ideologia neoliberal numa autêntica fuga em frente, com a maioria dos políticos e a generalidade dos ‘média’ afinados a uma só voz (só assim é possível manter uma imagem 'credível'!): que a saída do Euro será, pois, a catástrofe – a chantagem do medo parece colher resultados, pelo menos até agora; que só a gestão privada é eficaz e capaz de criar riqueza – daí esta fúria privatizadora; que a competitividade externa é vital para o País – descarada forma de legalizar o ‘dumping’ fiscal entre países; que a segurança social não é sustentável por razões demográficas – logo de imediato, com a alternativa do modelo de capitalização, a mão estendida aos Fundos de Pensões;… E tal como a coligação neoliberal no poder pretendeu ‘vender’ o milagre da austeridade criativa – com o desastre social e económico conhecido – o contraponto do PS, hoje (a única alternativa 'credível',dizem), parece basear-se noutro milagre, desta feita o de um crescimento económico salvador – sem qualquer garantia, pois, de que possa mesmo acontecer!

Os mercados não dormem, diz-se, mas são muito imperfeitos, como é bem sabido. E, importa acrescentar, limitados, no tempo e no modo da sua actuação.