sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Democracia ou mercado

Nunca como hoje a imagem da política se viu tão desacreditada perante a opinião pública, pareceu concitar tanta unanimidade em torno da responsabilidade pelo que de nefasto acontece, no País e no Mundo. É aos agentes políticos que, em primeiro lugar se atribui a génese, a dimensão e os efeitos mais perversos da crise actual (financeira primeiro, social e global por fim), mas também as causas da corrupção instituída, a criminalidade não controlada (e, de um modo geral, a insegurança sentida pelas pessoas), as injustiças toleradas, a pobreza endémica instalada.

Há, de algum modo, fundamento para esta percepção generalizada, para esta aversão aos políticos, mas ela ocorre pela demissão/subversão da política, com a sua total subjugação ao poder económico, tanto ao nível dos interesses dominantes como até (porventura sobretudo) dos propósitos que a regem. Desde logo, o objectivo primeiro da política actual centra-se em favorecer um ambiente propício à criação de riqueza – em lugar de gerir, como lhe competia e de acordo com as regras democráticas, o bem comum aferido pelos interesses concretos da maioria. A subversão acontece quando a mercantilização invade a política, quando se substituem as regras democráticas pelas regras de mercado (pois na opinião dos seus epígonos, só estas garantem isenção e neutralidade na decisão sobre as diferentes opções a tomar!!!). O objectivo expresso é que toda a organização social passe a ser gerida com base nas regras de mercado, substituindo-se, deste modo, a política pela técnica.

Não será demais repetir que o essencial da estratégia do mercado – modernamente vertida na ideologia neoliberal – e dos interesses que nele se acoitam e dele se servem, passa por substituir a política (baseada em princípios e valores) pela técnica (supostamente neutra e isenta), a regra da democracia pelo poder do mercado. O discurso do ‘inevitável’ ou do ‘não há alternativa’ tem a sua origem e suporte nessa suposta base técnica de que o mercado se reclama. As soluções que propugna deixariam de constituir opções políticas para se afirmarem como tecnicamente inevitáveis!

Longe de tratar-se de mera abstracção teórica, o comando do mercado sobre a democracia – que, diga-se, ninguém se atreve a defender em público! – encontra tradução prática constante no quotidiano das pessoas. As negociatas à volta das privatizações do que ainda resta e, a nível individual, a total impunidade nos cortes dos salários e pensões, com reduções indiscriminadas, continuadas e nunca explicadas, cria a sensação nas pessoas (na maioria delas, claro) de que nada está seguro, o processo de espoliação não tem limites, a corrupção está institucionalizada e tem um rosto, a política (o que se explica, convém referi-lo, pela promiscuidade percepcionada entre os políticos e os negócios).

São precisamente as regras de mercado que introduzem nas relações democráticas o vírus da corrupção, ao sancionarem o poder do mais forte (do mais habilidoso, do mais esperto, do mais astuto,...) sobre o mais fraco. Ao contrário do que a legião de apparatchiks políticos e comentadores enfeudados nos pretende impingir fazendo-nos acreditar que essas regras são a melhor (a única!) barreira para impedir a corrupção, é precisamente a sua adopção que cria o ambiente favorável ao seu desenvolvimento. Porque abre as portas ao ‘mercado de influências’ e de subornos, porque, tal como no sistema que nele assenta (se não houver ‘travões’ regulamentares que o impeçam), os fins justificam os meios. Por mais legislação que se crie para o impedir, por mais vigilância e controle que se estabeleça, no fim o que conta mesmo é o mercado, com o seu tráfico de influências e poderes informais (discretos ou escancarados, dependendo da situação e do momento), tudo devidamente embrulhado ou a coberto de soluções que nos são impostas como tecnicamente inevitáveis!

Um dia (que se espera para breve) far-se-á a história do papel desempenhado pelas agências de rating na submissão dos países aos mercados, dos obscuros meandros envolvidos nessas operações de perda de autonomia (da soberania externa e da democracia interna). Para já uma coisa se sabe: cumprido o seu papel, essas nebulosas entidades, supostamente técnicas, retiraram-se de cena (ou pelo menos recuaram na sua exposição mediática), porventura na expectativa de poderem voltar a intervir quando vier a demonstrar-se necessário. Mas este episódio perdurará como símbolo que deve ser devidamente destacado: quando se chega ao ponto de os países serem tratados como empresas, geridos por técnicos subalternos –  as famigeradas troikas! – é a sua soberania que fica à mercê dos credores, é a democracia que se submete aos mercados. São os valores dos princípios que se subordinam ao princípio do valor. Perante a incapacidade de uma alternativa consistente à esquerda e a dúbia posição da liderança do PS, a Constituição surge, então, como a última barreira, e o recurso ao Tribunal Constitucional o último garante de uma democracia exangue! Pelo menos, por enquanto!