O polido Sr. Ulrich, banqueiro com pergaminhos e nome na
praça, decidiu chamar aos portugueses ‘bestas de carga’. Não exactamente
nestes termos, claro, afinal trata-se de pessoa de trato fino e verbo cuidado, obrigado
por formação, posição e porventura até ascendência (o nome estrangeirado assim
o faz supor) a tornear as intenções, a metaforizar as ofensas. O que ele disse
mesmo foi, interrogando-se sobre se o País aguenta ainda mais cargas de austeridade – ‘Ai aguenta, aguenta’, ter-se-á expressado
deste modo – o que, traduzido em português vernáculo e vertido para as pessoas, dá exactamente aquela expressão. Mas se os portugueses são
tratados como ‘bestas de carga’, na opinião firme e abalizada do impoluto (?)
banqueiro, então ele assume-se, na mesma linguagem vernácula e chã, não como
vulgar ‘besta de carga’ (pois não suporta ‘carga’ nenhuma e a dos restantes
portugueses não lhe pesa cheta), mas como rotunda ‘besta quadrada’!
Recorro ao exemplo dos Yurok para explicar o ‘quadrado’.
Os Yurok eram (como estudado por etnólogos vai para mais
de meio século!) um povo primitivo, que habitava nas margens do rio Klamath,
algures na América (Califórnia do Norte). Toda a vida material e social deste
povo se encontrava imbricada e dependente do rio, a ponto de a sua própria
percepção geométrica do mundo ser influenciada pela morfologia física
envolvente desse rio, de configuração cilíndrica por força da densa vegetação
que cobria as suas margens e se prolongava por todo o leito do mesmo, formando um
arco compacto. E assim, ao contrário da habitual visão tridimensional, aquela
gente, com uma visão muito fechada do universo, desenvolveu uma concepção da
realidade na base de uma estrutura... tubular! A nossa herança
euclidiana reage à descrição, é certo, mas para quem se habituou a aceitar
como natural a diferença, fará o esforço de compreender que existem culturas
onde o próprio espaço físico é percebido de modos diferentes do nosso.
A etnologia, bem como as disciplinas afins da
antropologia, da sociologia, da psicologia, são áreas a que o ilustre banqueiro
pouco ou nenhum crédito dará. Os seus créditos são apenas de carácter
financeiro, quando muito socorrer-se-á da economia – daquela ‘teoria económica’
tão científica, tão isenta, tão exacta que até pede meças à que é vista como a
mais exacta das ciências, a matemática (longe, portanto, da denominada
‘economia política’ ou da perversa tendência de a integrar nas denominadas
ciências sociais, também ditas ‘ocultas’) – para melhor poder argumentar em favor
das suas teses. Vive assim fechado, também ele, num mundo à parte (só dele e de
mais uns quantos exclusivistas), ostensivamente ignorando a realidade que o(s)
rodeia, arrogantemente acreditando que todo o mundo pensa, vive e sente como
ele(s), parasitando, afinal, as vidas dos que desprezam.
A imagem que me ocorre, então, é a daqueles funcionários
chineses obrigados a fazer testes de aptidão para a polícia com a cabeça
enfiada numa caixa de forma cúbica – para não poderem copiar, para melhor se
concentrarem no exercício..., pouco importa aqui o motivo, apenas retenho o
episódio para melhor ilustrar a posição do estimado Sr. Ulrich, que assim se vê
‘obrigado’ a olhar em frente, sem se ‘distrair’ com os dramas à sua volta, a
sua visão lateral ‘limitada’ aos interesses financeiros de um
lado e à teoria económica do outro (longe da ‘economia política’,
claro, vade retro).
Eis, pois, a razão de, com toda a propriedade e sem risco
de tal vir a considerar-se ofensivo, se dever chamar ao refinado banqueiro Sr.
Ulrich ‘besta quadrada’. Ao ter classificado os portugueses, naquele
jeito ao mesmo tempo peremptório e manso, de ‘bestas de carga’, sendo
ele – até ver! – português, mas sem canga nem carga, de besta não se livra, o
resto do epíteto advém-lhe da sua visão fechada nessa espécie de caixa cúbica
onde, para proveito próprio, enterrou a cabeça e que o obriga, à semelhança da
visão tubular dos Yurok, a manifestar um pensamento limitado – no caso, ‘quadrado’!
E, já agora, profundamente ofensivo para os portugueses que lhe merecem
tanto desprezo. Pois até a aceitação da diferença tem limites. Fraco consolo, é
certo, para tão ruim defunto!