segunda-feira, 26 de março de 2012

No ‘mercado da democracia’, a selva dos medos e da promiscuidade política


A Greve Geral do dia 22, se avaliada apenas pelos seus aspectos meramente quantitativos, saldou-se, como era já esperado, por um relativo fracasso. Mesmo sem os números da mesma (desta vez nem a CGTP nem o Governo adiantaram quaisquer valores), a adesão à greve ficou muito aquém do que seria expectável atento o carácter de paralisação geral. Já sobre a mobilização e consciencialização conseguidas nos muitos sectores de actividade envolvidos, bem como a sua projecção mediática, os efeitos podem revelar-se positivos. O próprio nervosismo da polícia na repressão às manifestações havidas é sintomático do pânico que começa a gerar nos responsáveis políticos este tipo de acções. Ao mínimo desvio do programado, as denominadas forças da ordem têm ‘ordem’ para carregar... indiscriminadamente – até sobre jornalistas no exercício da função e devidamente identificados!

Para além destes aspectos e da ponderação a fazer sobre a utilidade de certas práticas sindicais no actual contexto social e político (claramente extravasando do tradicional âmbito nacional para o global), o que talvez mais importe analisar são as causas da fraca adesão aos apelos para a realização de uma acção solidária na defesa de interesses reconhecidamente comuns. Percebe-se então que o sentido comunitário há muito que deu lugar ao individualismo do ‘salve-se quem puder’, que a sobrevivência na selva dos ferozes mercados é a consequência lógica no termo de um longo processo zelosamente construído, sobretudo nas últimas décadas, pelo neoliberalismo.

Este é o ambiente social mais propício à eclosão do medo – a raiz da dominação pessoal – e que se manifesta de múltiplas formas: o medo do outro que gera a submissão (mas também a xenofobia); o medo da diferença patente na intolerância (de que o racismo é apenas uma das variantes); o medo do acossado induzido por ameaças várias (o medo da perda de si ou de alguma coisa, o medo da mudança,...). É notório que, hoje, a maioria dos portugueses (gregos, espanhóis, italianos,...) vive acossada, cada vez mais refugiada no seu ‘castelo’ pessoal, com medo de perder o pouco que tem. E foi seguramente o medo a principal condicionante dos resultados desta greve. O medo que se apoderou das pessoas quanto à sua situação actual e futura, que condiciona todas as suas decisões e atitudes. Em que cada um se sente entregue apenas a si próprio, num deliberado arremedo civilizado do regresso à Selva!

O extremo individualismo das sociedades actuais, alimentado pelo conjunto de valores que melhor caracterizam o sistema (competição, elitismo, consumismo,...) impede-as de ver que só em colaboração – seja a nível empresarial/sindical ou nacional/político (e cada vez mais mundial) – as suas acções têm condições de alcançar êxito na defesa dos direitos da maioria e na correcta identificação dos privilégios da escassa minoria que luta por todos os meios (legítimos ou não) para os manter! Porque, importa referi-lo (e assumi-lo na acção política), essa luta conduziu, na prática, à fusão entre o poder político e o poder dos negócios, a ponto de hoje praticamente se confundirem.

Coincidência ou não, no mesmo dia, à noite, a Quadratura do Círculo produziu um dos seus mais sintomáticos programas, num debate centrado nas relações entre a política/políticos e os negócios. O painel dos três comentadores habituais foi unânime, pelo menos em teoria (divergem nos exemplos concretos), em que nessas relações existe promiscuidade. Pacheco Pereira (JPP), paladino de uma direita que se pretende civilizada e a quem se reconhece independência de espírito bastante para não ser confundido com a carneirada no poder, foi mais preciso ao afirmar que se nos anteriores Governos (em especial o de Sócrates) era visível uma certa promiscuidade, agora passou-se para uma verdadeira comunidade de interesses, a política assume-se como mera extensão dos negócios, acrescentando, relativamente ao poder político actual, que ‘nunca nenhum Governo em Portugal desde o 25 de Abril teve tão grande proximidade, política e ideológica, com os interesses (das elites económicas)’.

Mas que esperar de um Governo que centra toda a sua estratégia política no cabalístico desígnio nacional (?) de ‘voltar aos mercados’(!) – extensão natural dessa tal comunidade de interesses de que fala JPP; cujo principal partido convoca um Congresso para debater ‘a dança das cadeiras’ – porque naturalmente prejudicado o debate sobre projectos colectivos para desenvolver o País pela há muito tomada opção política de comunhão com interesses particularistas; que concentra toda a táctica mediática no ataque à ‘figura de Sócrates’ – na expectativa de que tal ‘distracção’ permita desviar as atenções do essencial da política de austeridade/punição sobre as pessoas?

Confesso que, no fundamental, nunca me senti tão próximo de JPP como desta vez!

segunda-feira, 12 de março de 2012

Democracia ou mercado – a alternativa de uma opção inadiável – III


A democracia como alternativa ao mercado
Perante os efeitos devastadores da Crise, nomeadamente no plano social, com o desemprego a atingir, em algumas regiões, níveis próximos da desagregação social, a solução do crescimento económico impulsionado pelo aumento das exportações, apresentada como panaceia universal, revela-se de difícil senão impossível concretização (pelo menos em todos os lugares, ao mesmo tempo: os ganhos de produtividade alcançados por essa maior competitividade externa, diluem-se a nível global, pois os excedentes de uns são os déficit de outros!).

Mas para além dessas dificuldades e de subsistir sempre, no contexto do sistema capitalista, o problema da sustentabilidade desse crescimento (por força dos limites à competição, cf. referido em comentário anterior), uma alternativa assente apenas neste pressuposto não se apresenta nem eficaz nem sustentável a longo prazo, como as próprias condições que determinaram a crise indicam. Foi a insuficiência da procura e a tentativa de a compensar através do endividamento (sobretudo privado) que gerou a crise e a arrastou para o beco em que se encontra. Daí que a única alternativa viável deva ser procurada na esfera da repartição do rendimento, antes até de se avançar para o crescimento (qualquer que seja a natureza deste).

Partindo da receita neoliberal para o crescimento – aumento da competitividade pela via usual da redução salarial – M. Husson esclarece (Esquerda.net, 5/Ag./11): “Como o crescimento será fraco no período aberto pela crise na Europa, o único meio para um país criar empregos, será ganhar parte deles aos países vizinhos, tanto mais que a maioria do comércio externo dos países europeus se faz no interior da Europa. Isto é verdadeiro até para a Alemanha(...), que não pode contar só com os países emergentes para o seu crescimento e os seus empregos. As saídas neoliberais da crise são, pois, por natureza não-cooperativas: só se pode ganhar contra os outros e é este o fundamento da crise da construção europeia.

Em contraste, as soluções progressistas são cooperativas: elas funcionam tanto melhor quanto se estenderem a um maior número de países. Se todos os países europeus reduzissem a duração do trabalho e taxassem os rendimentos do capital, esta coordenação permitiria eliminar os ataques a que seria exposta esta mesma política conduzida num único país (em resposta ao argumento de que tais políticas ultrapassam o quadro nacional).  E avança, desenvolvendo : A subida da parte dos salários poderá seguir a regra dos três terços: um terço para os salários directos, um terço para o salário socializado (a protecção social) e um terço para a criação de empregos através da redução do tempo de trabalho. Esta progressão far-se-á em detrimento dos dividendos, que não têm qualquer justificação económica nem utilidade social.”

Constituindo o desemprego e a precariedade os principais problemas sociais, agora fortemente agravados pela crise, importa então sublinhar que, se não basta aumentar a competitividade para crescer, não chega crescer para se poder ampliar o emprego. Porque fundamental é crescer criando empregos úteis, aptos a satisfazer necessidades sociais, criando riqueza, pois só assim é possível garantir um crescimento sustentável. Com óbvios benefícios para o ambiente.

Para as principais conclusões deste importante debate por fazer (mas já por várias vezes aqui chamado antes), recorro de novo a M. Husson, que põe toda a ênfase na afirmação de quenão é aos economistas que cabe decidir este debate”, pois uma verdadeira saída da crise passa pela opção política da adopção de “três ingredientes indispensáveis:
1. uma modificação radical na distribuição dos rendimentos;
2. uma redução massiva do tempo de trabalho;
3. uma ruptura com a ordem mundial capitalista, a começar pela Europa realmente existente.”
Isso implica, antes de mais, o regresso à política, a substituição do mercado pela democracia. Só um ambiente efectivamente democrático, liberto da utopia liberal do mercado livre (a utopia que realmente conta), propiciará condições de progresso e de bem-estar geral. Base imprescindível ao desenvolvimento de uma estratégia de luta europeia comum que, no imediato, privilegie a resistência às políticas de austeridade e exigências no campo da reforma fiscal, do controlo dos capitais, da auditoria à dívida (apurando a que resulta da liberalização/especulação financeira, base para a sua legítima reestruturação e o posterior controlo democrático). 

As perspectivas, contudo, não parecem animadoras e propícias ao grau de consciencialização política exigido. Um recente estudo de opinião sobre a condução da política nacional e possíveis alternativas, traça um quadro desolador das expectativas dos inquiridos sobre os seus intérpretes: a par de larga maioria (62%) considerar má a prestação dos detentores do poder, uma maioria ainda mais alargada (73%)%, não confia em qualquer partido da oposição para fazer melhor! Mas a insatisfação que traduz com a acção dos políticos representa, por um lado a rejeição de uma certa forma de fazer política e alimenta, por outro a esperança na construção de uma alternativa mais autêntica que os arremedos actuais produzidos pelo formalismo das eleições.

Enquanto isso, a persistência na alternativa do primado do mercado – e no culto do individualismo extremo – conduzirão, inexoravelmente, à desagregação: dos negócios, das comunidades, do território!

sábado, 10 de março de 2012

Democracia ou mercado – a alternativa de uma opção inadiável – II

O mercado contra a democracia

Contra todos os fundamentalismos de mercado (dos negócios, da política, da ideologia,...), foi a intervenção do Estado, pois, que salvou o sistema da derrocada que a Grande Depressão parecia ir provocar. Mas se as lições da História facilmente se esquecem, mais difícil se torna apagar-lhe os traços culturais entretanto impressos, sobretudo se estes se traduzem na difusão de novos saberes, técnicas ou modos de vida. A maior presença do Estado nas sociedades, contribuiu para alargar de forma decisiva o acesso aos avanços da ciência e do progresso, expressa na fixação de um novo patamar de direitos públicos na construção do Estado de Direito, os direitos sociais (depois da conquista dos direitos civis e dos direitos políticos). 

A luta contra o Estado esconde sobretudo o propósito de se substituir a política pelo mercado. A de se considerar o mercado imprescindível à democracia, pois só ele permitiria a liberdade económica. O que a prática política indica, porém, para além de qualquer polémica ideológica, é que, no final, por esta via o mercado substituiu a democracia na maior parte das decisões sociais e políticas. Seja no espaço nacional ou nas instituições internacionais. Tudo na actualidade se subordina às regras do mercado global. Sob a capa de aparentes soluções técnicas pretende-se fazer passar a ilusão da falsa isenção das opções políticas.

Importa frisar agora e sempre: o domínio do mercado não é uma mera abstracção ideológica, tem expressão concreta na criação e manutenção dos privilégios da minoria que o defende e na degradação ou mesmo destruição dos direitos sociais da imensa maioria que o ignora (ou ‘finge’ ignorar-lhe os efeitos, por via da cerrada manipulação mediática de que é vítima). Em nome dos mercados, impõem-se programas de austeridade sobre cidadãos que em nada contribuíram para os desequilíbrios financeiros que lhe servem de pretexto, mas garante-se a manutenção e até o reforço de faustosos estilos de vida exclusivos a certas camadas da população, pouco ou nada afectados pela Crise.

Não surpreende, pois, a defesa acérrima dos mecanismos do denominado ‘mercado livre’, por parte dos seus principais beneficiados ou dos que, de algum modo, tiram partido dessa situação. No contexto da UE, o seu paradigma é o famoso art. 107 do Tratado de Maastricht (replicado no de Lisboa) que estabelece a autonomia do BCE perante o poder político e os Estados, prerrogativa que nenhum outro sistema financeiro nacional admite. Autonomia que o autoriza a ceder fundos a 1% aos bancos comerciais, para estes os emprestarem a taxas 3, 4 ou mais vezes superiores aos Estados, que, por sua vez, se encarregam de extorquir das respectivas populações os recursos para fazer face a tal transferência de valor, num ignominioso processo de recapitalização bancária feito à custa do agravamento das condições de miséria da grande maioria das pessoas!

Nada, porém, de muito surpreendente ou fora de vulgar, tendo em conta o cabalístico e esconso contexto financeiro em que tudo isto se processa. Perante os efeitos já conhecidos da crise nele gerada, escasseiam os adjectivos para qualificar a manutenção de uma situação socialmente ruinosa. Recorde-se que o sistema financeiro paralelo (‘shadow banking system’ e as célebres OTC fora de qualquer controle, à cabeça os opacos Hedge Funds e as famigeradas praças ‘off-shores’) representava, em 2007 (segundo o insuspeito Federal Reserve Bank de Nova Iorque), quase o dobro das transacções inscritas nas contas do sistema bancário, estimando-se que ainda hoje, depois da crise e dos ajustamentos subsequentes, as operações ‘clandestinas’ sejam superiores às registadas em mais de 20% – com nefastas repercussões na consequente e colossal evasão fiscal e no branqueamento das redes criminais!

Tudo isto foi (é) possível por o mercado se haver substituído à democracia! Por se considerar possível, até desejável, que as regras ‘automáticas’ do mercado se sobrepusessem ou pudessem prescindir do controle das regras democráticas. Por se aceitar que a determinante económica, sem dúvida a base real da sociedade, assumisse igualmente o papel de dominante política, sob comando absoluto do mercado, actuando sem tutela nem controle.

Os resultados estão à vista: o sofisticado exclusivismo do modo de vida de uma escassa minoria assim conseguido (planeado de forma intencional), só tem paralelo no extremar das desigualdades sociais, no acentuar da degradação ambiental, na criação até de inultrapassáveis impasses económicos ao... próprio mercado!
(...)

quinta-feira, 8 de março de 2012

Democracia ou mercado – a alternativa de uma opção inadiável – I


O mercado acima da política

Quando, em Setembro de 2008, a falência do Lehman Brothers prenunciou um eminente colapso financeiro mundial e a ameaça se estendia mesmo à derrocada do próprio capitalismo (cf. Attali), em pânico os responsáveis políticos dos maiores blocos económicos anunciaram a sua disposição de intervir rapidamente sobre as próprias condições de funcionamento do sistema. De um lado e do outro do Atlântico sucedem-se reuniões e decisões numa frenética corrida contra o tempo com vista a repor a confiança no abalado sistema financeiro. Para além do reforço das garantias aos depositantes e de precipitadas nacionalizações de inúmeras instituições bancárias e seguradoras, um pouco por todo o lado, em Novembro os ministros das Finanças da UE acordam numa reforma em cinco pontos, em que os dois mais emblemáticos eram o controle das agências de rating (ainda longe dos ‘estragos’ que posteriormente viriam a provocar) e a interdição das praças financeiras off-shores!

Passado o susto, porém, tudo isto foi esquecido e o mundo retomou o caminho da ‘normalidade’, de forma ainda mais acentuada: especulação financeira ditada pelo domínio absoluto das regras do ‘mercado livre’ (as agências de rating assumem o poder efectivo nas decisões políticas); transferência de recursos do trabalho para o sector financeiro (reposição do valor destruído pelo rebentamento da ‘bolha’ especulativa) com base no discurso da inevitável austeridade, seja directa ou indirectamente com a destruição do Estado Social! Em nome de uma propalada eficiência dos mercados, tanto mais possível – assim reza a doutrina – quanto mais livres eles forem!

Quando, no início dos anos 30 do séc. XX, o capitalismo parecia enredado (e prestes a soçobrar) na pureza dos princípios do ‘mercado livre’, o conservador lorde britânico J.M. Keynes percebeu que só a intervenção do Estado na economia (contra todos os dogmas, pois) o poderia salvar de uma morte anunciada. Foi do intervencionismo keynesiano, juntamente com a experiência do New Deal de Roosevelt (também fortemente intervencionista), que resultou a lenta negociação do Pacto Social na origem do moderno Welfare State, o qual garantiria ao mundo capitalista o seu maior período de paz e prosperidade – os 30 gloriosos anos – não obstante a importância, para ambas, de um contributo tão improvável como o propiciado pelo clima ameaçador da Guerra Fria no equilíbrio mundial (o equilíbrio do terror).

Não foi pacífica – e muito menos isenta de acesa luta ideológica (além da política, sindical,...) – a ascensão das ideias que conduziram à adopção do modelo de Estado Social. Desde cedo Hayek e a ‘sua’ escola austríaca, posteriormente organizados na Societé Mont Pèlerin, encetaram uma autêntica cruzada tendo como propósito o combate ao colectivismo, considerado no sentido mais amplo do termo, nele englobando os regimes fascista, nazi, soviético e, pasme-se, a então nascente teoria keynesiana, acusada da suprema heresia de pretender estabelecer uma via intermédia entre a economia de mercado e o recurso à intervenção estatal.

Como se sabe, esta cruzada levou à vitória, já nos anos 80, do ‘thatcherismo’ no Reino Unido e do ‘reaganismo’ nos EUA, aqui com o esteio do talvez principal guru das ideias neoliberais, Milton Friedman. O seu objectivo confesso passa pela desestatização da sociedade, libertando o indivíduo da tutela do Estado, tido como o grande obstáculo à completa expressão das suas capacidades. Na prática, pretendem afastar a política do caminho do mercado, sob pretexto de as supostas soluções técnicas que este induz serem mais eficientes na aplicação dos recursos e neutras na decisão (não comprometidas com as partes envolvidas). Deste modo, toda a regulação social, tanto a nível económico como político, pertenceria ao Mercado, mecanismo que, dizem, assegura uma alocação óptima dos recursos escassos e a sua hipotética neutralidade seria o garante da isenção e eficiência nas opções a tomar. Ao contrário do Estado que, segundo eles, capturado por grupos de interesses, tenderia a ser ineficiente e até corrupto.

A opção do mercado em detrimento do Estado – contra a política, pois – favoreceu, como se previa (e talvez fosse esse o seu propósito) os interesses dos mais poderosos, desprotegeu de forma irremediável os mais fracos e excluídos. Em nome da eficiência e dos mais capazes. A selecção produzida beneficiou um número restrito de pessoas, mas determinou um interminável rol de problemas. Que desembocam agora na maior Crise sistémica de que há memória!
(...)