O mercado contra a democracia
Contra todos os fundamentalismos
de mercado (dos negócios, da política, da ideologia,...), foi a intervenção
do Estado, pois, que salvou o sistema da derrocada que a Grande Depressão parecia ir
provocar. Mas se as lições da História facilmente se esquecem, mais difícil se
torna apagar-lhe os traços culturais entretanto impressos, sobretudo se estes
se traduzem na difusão de novos saberes, técnicas ou modos de vida. A maior
presença do Estado nas sociedades, contribuiu para alargar de forma decisiva o
acesso aos avanços da ciência e do progresso, expressa na fixação de um novo
patamar de direitos públicos na construção do Estado de Direito, os direitos
sociais (depois da conquista dos direitos civis e dos direitos
políticos).
A luta contra o Estado esconde sobretudo o propósito de se
substituir a política pelo mercado. A de se considerar o mercado imprescindível
à democracia, pois só ele permitiria a liberdade económica. O que a prática
política indica, porém, para além de qualquer polémica ideológica, é que, no
final, por esta via o mercado substituiu a democracia na maior parte das
decisões sociais e políticas. Seja no espaço nacional ou nas instituições
internacionais. Tudo na actualidade se subordina às regras do mercado global.
Sob a capa de aparentes soluções técnicas pretende-se fazer passar a ilusão da
falsa isenção das opções políticas.
Importa frisar agora e sempre: o domínio do mercado não é uma mera
abstracção ideológica, tem expressão concreta na criação e manutenção dos
privilégios da minoria que o defende e na degradação ou mesmo destruição dos
direitos sociais da imensa maioria que o ignora (ou ‘finge’ ignorar-lhe os
efeitos, por via da cerrada manipulação mediática de que é vítima). Em nome dos
mercados, impõem-se programas de austeridade sobre cidadãos que em nada
contribuíram para os desequilíbrios financeiros que lhe servem de pretexto, mas
garante-se a manutenção e até o reforço de faustosos estilos de vida exclusivos
a certas camadas da população, pouco ou nada afectados pela Crise.
Não surpreende, pois, a defesa acérrima dos mecanismos do denominado
‘mercado livre’, por parte dos seus principais beneficiados ou dos que, de
algum modo, tiram partido dessa situação. No contexto da UE, o seu paradigma é
o famoso art. 107 do Tratado de Maastricht (replicado no de Lisboa) que
estabelece a autonomia do BCE perante o poder político e os
Estados, prerrogativa que nenhum outro sistema financeiro nacional admite.
Autonomia que o autoriza a ceder fundos a 1% aos bancos comerciais, para estes
os emprestarem a taxas 3, 4 ou mais vezes superiores aos Estados, que, por sua
vez, se encarregam de extorquir das respectivas populações os recursos para
fazer face a tal transferência de valor, num ignominioso processo de recapitalização
bancária feito à custa do agravamento das condições de miséria da grande
maioria das pessoas!
Nada, porém, de muito surpreendente ou fora de vulgar, tendo em conta o
cabalístico e esconso contexto financeiro em que tudo isto se processa. Perante
os efeitos já conhecidos da crise nele gerada, escasseiam os adjectivos
para qualificar a manutenção de uma
situação socialmente ruinosa. Recorde-se que o sistema financeiro
paralelo (‘shadow banking system’ e as célebres OTC fora de qualquer
controle, à cabeça os opacos Hedge Funds e as famigeradas praças ‘off-shores’)
representava, em 2007 (segundo o insuspeito Federal Reserve Bank de Nova Iorque), quase o
dobro das transacções inscritas nas contas do sistema bancário,
estimando-se que ainda hoje, depois da crise e dos ajustamentos subsequentes,
as operações ‘clandestinas’ sejam superiores às registadas em mais de 20%
– com nefastas repercussões na consequente e colossal evasão fiscal e no
branqueamento das redes criminais!
Tudo isto foi
(é) possível por o mercado se haver substituído à democracia! Por se considerar possível, até desejável,
que as regras ‘automáticas’ do mercado se sobrepusessem ou pudessem prescindir
do controle das regras democráticas. Por se aceitar que a determinante
económica, sem dúvida a base real da sociedade, assumisse igualmente o
papel de dominante política, sob comando absoluto do mercado,
actuando sem tutela nem controle.
(...)
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