Conhecidos os resultados das
eleições na Grécia e confirmada a impossibilidade de o Syriza obter a maioria
absoluta, as apostas que se faziam nos comentários da noite eleitoral que mais
expectativas gerou nos últimos anos iam todas para uma aliança com o To Potami, a formação que, no espectro
partidário grego, atentas as afinidades ideológicas e programáticas, mais talhada
parecia para uma coligação de governo. Na manhã seguinte, logo que se soube do
acordo firmado entre o Syriza e o Anel (Independentistas Gregos), partido colocado à direita da Nova Democracia, a certeza deu lugar à estupefacção. Como era
possível uma aliança da esquerda radical com uma direita de tendências pouco
recomendáveis em diversas áreas (imigração, igualdade de género…)?
E, no entanto, no actual contexto
da política grega e europeia, esta é a única opção que faz sentido. Porque ela
transmite a todos os interlocutores do já empossado novo Governo grego, em
especial à Europa do directório germânico, um claro e inequívoco sinal sobre as
intenções dos vencedores das eleições: prioridade absoluta à reestruturação da dívida e ao fim da austeridade, sem quaisquer
subterfúgios ou tergiversações. Porque é a única que assume a ruptura com a submissão a que foi sujeito o povo grego e permite abertura para
todos os cenários políticos, sem receio de se ficar refém de compromissos, incluindo,
caso seja necessário, encarar a saída do euro – espera-se não ser preciso
chegar aí, mas se o for… – cenário afastado pelo europeísta To Potami.
Perante as ameaças que se
perfilam torna-se impossível, para já, prever o futuro iniciado com este grito
de revolta e ninguém minimamente sensato arrisca fazê-lo, não obstante os
comentários ouvidos nessa memorável e histórica noite eleitoral, muito
interessante e particularmente instrutivo de acompanhar. O despeito, a raiva
pouco contida, o empenhado prognóstico no espalhanço da experiência, ainda e
sempre a defesa do ‘não há alternativa’ (agora um pouco menos convicta, é
certo), dominou a generalidade dos comentadores (com algumas notáveis
excepções, claro), dos puros e duros do ‘pensamento único’, aos
social-democratas enfeudados... ao ‘pensamento único’, todos irmanados no ardente desejo de um rápido fracasso do Governo liderado pelo Syriza (falam até numa
nova tragédia grega!), para conforto das suas más consciências ou ínvios
proselitismos.
A expectativa que a cáfila
mediática alimentava de, vencidas as eleições, o Syriza acabasse por moderar o
radicalismo das suas propostas procurando evitar (ou pelo menos adiar) o
confronto – a lógica eleitoral cedendo perante a realidade única do mercado, as
promessas dando lugar aos compromissos ditados pelo sistema – parece, assim, desvanecer-se.
Deste modo e no curto espaço de algumas horas, ocorreram dois factos históricos
de relevante significado: à ousadia dos eleitores gregos de romperem com o
seu passado de fidelidades partidárias, junta-se a ousadia dos eleitos
do Syriza de romperem com a submissão externa e a política mole dos compromissos pós-eleitorais
para justificação do não cumprimento das promessas eleitorais.
Os problemas do novo Governo
liderado pelo Syriza na sua histórica missão de dar conteúdo à esperança que
veio gerar, na Grécia e no resto da Europa, só agora vão realmente começar. Falta
conhecer a posição dos parceiros europeus (governos e instituições comunitárias) e até onde estarão dispostos a levar as ameaças e a chantagem
exercidas antes das eleições. Falta sobretudo saber se a ideologia por trás do
actual directório alemão se continuará a impor ao pragmatismo da sua
tradicional ‘realpolitik’, se Schauble & Ca. (Merkel representa mais uma
figura de opereta manipulada pelo poderoso complexo financeiro-industrial germânico)
serão capazes de manter uma posição de intransigência indo até à destruição da
Europa (incluindo a própria Alemanha).
Neste contexto, o menos
importante é a triste figura exibida pelo ‘corcunda
de S. Bento’, minúscula personagem cuja dimensão se encontra na razão
inversa das malfeitorias perpetradas aos seus concidadãos (a corcunda, no caso,
não é defeito físico mas característica moral, precisamente o inverso do
personagem de Vitor Hugo). Tanto de um lado como do outro da alternância, a defesa das pessoas e dos
interesses nacionais que, por dolo próprio ou erro nosso, lhes tem sido
cometida, traduziu-se antes na sua crescente degradação e/ou alienação. Competirá aos
portugueses, então, demonstrar, tal como
fizeram os gregos, que as humilhações que têm vindo a sofrer não podem durar
sempre, que uma alternativa a esta política é possível, é necessária, é mesmo
inevitável. Que possa traduzir-se neste paradoxo linguístico: no momento em que
afirmamos ‘somos todos gregos’, a
nossa esperança é que o feito dos gregos
do último domingo nos ajude a rapidamente vermo-nos 'menos gregos' do que até
aqui.
Pormenor simbólico mas não
despiciendo, a informalidade que caracterizou os actos de posse do novo Governo. Pode ser apenas um detalhe sem conteúdo, mas é revelador do propósito de instituir
uma outra forma de fazer política: corte radical com o passado a começar
pelas amarras da pose bem comportada, submissa e veneradora de que a gravata se
constitui como símbolo não inócuo nem destituído de importância.