A crise instalou-se e – agora já
é oficial, Passos assim o declarou – veio para ficar! Pelo menos nos efeitos
devastadores que provoca na vida das pessoas e que, ao perdurarem, irão forçosamente
aprofundar-se. Bem podem vir falar – como já o fazem! – de recuperação
económica, da evolução (finalmente) positiva dos indicadores que medem a
desgraça, até mesmo do sucesso do programa de austeridade! Depois de destruir
vidas e riqueza inutilmente (a avaliar pelos resultados obtidos comparados com
os objectivos prosseguidos), a contrapartida de tanto êxito é, pois, a
persistência de um elevado desemprego, o exílio de milhares de jovens
qualificados obrigados a emigrar, a permanência dos cortes (provisórios,
diziam!) nos salários e nas pensões, a extorsão fiscal responsável pelo
estrangulamento das classes médias, a caminho da destruição.
Torna-se cada vez mais evidente
que a crise foi um pretexto, um oportuno biombo que permitiu esconder os reais
propósitos do sistema, a forma encontrada pelo capitalismo para reganhar os
níveis de rentabilidade que lhe asseguram a sobrevivência. Depois de esgotado o
expediente do crédito como forma de suprir a quebra de rendimentos da
procura, dada a compressão salarial que já vinha ocorrendo – na actual
conjuntura, sobretudo os clientes do negócio financeiro (nas suas diversas
componentes, de especulação ou de crédito) – o sistema viu-se obrigado a
recorrer ao saque directo sobre as pessoas, sob a forma de extorsão
fiscal sobre os contribuintes, precarização das relações laborais, destruição
de direitos sociais.
Com base nas designadas políticas de ajustamento
orçamental, substituem-se os clientes (dos vários ‘negócios’
financeiros) pelos contribuintes e impõe-se ao conjunto da
sociedade um gigantesco saque fiscal, ao mesmo tempo que se reduz o peso do
Estado Social e aumentam as desigualdades. O espólio assim obtido transfere-se,
sem pudor, para o insaciável e imutável sistema financeiro, em nome da sua
sustentabilidade. Mais ainda, a crise permitiu impor, sob chantagem,
todo um programa de transformação social assente na violenta regressão de
direitos, implicando um claro retrocesso civilizacional!
A crise das dívidas, sublinhe-se
uma vez mais, teve a sua origem no sistema financeiro. O elevado endividamento,
público e privado, é, pois e antes de mais, o resultado das políticas de
desregulação financeira, base para o desenvolvimento de agressivas campanhas de
crédito (nas suas múltiplas formas, algumas bem capciosas) propícias à expansão
de rentabilidade imediata, tornando-o no principal responsável pela bolha do
crédito (mais de 95% da emissão de moeda em circulação resulta do crédito
bancário). Ora, importa reafirmar que a ‘estabilização’ do sistema financeiro representou
para o contribuinte europeu um encargo 10 vezes superior ao conjunto de todos
os resgates aos Estados que o solicitaram, beneficiando desses apoios sobretudo
a banca da Alemanha, França e Reino Unido!
Mas não é só a crise que tem
servido de biombo às reais intenções dos donos do mundo. A democracia é
igualmente utilizada como pretexto para se impor a tese da expansão do
mercado (o principal expediente do sistema para garantir rentabilidade) ao
resto mundo. Primeiro no Iraque, depois na Líbia, por agora na Síria (ainda em
aberto), o objectivo real das intervenções externas de modo algum corresponde
ao proclamado propósito de democratização de regimes a todos os títulos
ignominiosos. É que os regimes instalados após essas intervenções (ou o que se
adivinha no caso da Síria, infestado de fundamentalistas), em nada melhoraram
relativamente às anteriores ditaduras, pelo contrário, conseguem ser piores em
muitos dos aspectos que mais afectam a vida das pessoas. O que se passa na
Ucrânia, hoje o destino preferido dos habituais ‘conselhos democráticos’ do
Ocidente, não é muito diferente dos anteriores. A miragem dos manifestantes na
reivindicada ‘europeização’, para além da óbvia disputa de lideranças regionais
em ambiente de grande insatisfação popular, reproduz sobretudo a necessidade
sistémica de uma maior abertura dos mercados ao... ‘Ocidente’!
Cá como lá, importa conseguir distinguir em cada momento, para além de
todos os biombos erguidos pelo dominante pensamento único, o essencial do
acessório, o prioritário do secundário, na complexa realidade social. O
espectáculo pífio a que temos assistido ultimamente, com a direita e a esquerda
a esgrimirem mirradas percentagens sobre a pindérica evolução positiva da
economia portuguesa, só não se qualifica de patusco porque ele esconde a
dramática realidade de vidas em desespero. Mas é elucidativo do modo como a
esquerda em geral encara as saídas para a crise e se deixou arrastar para um
campo que sabe não poder vencer – não obstante a consciência das limitações, nas
actuais circunstâncias, à acção dos partidos ou à pedagogia do
diálogo/confronto de ideias (mesmo que não descambe na demagogia ou num seu
arremedo). A resistência a um sistema insaciável por natureza, que não olha a
meios para conseguir sempre maiores lucros – afinal o segredo da sua
longevidade e, em última análise, a única forma de garantir a sua
sobrevivência! – já advirá mais em razão dos excessos cometidos (fragmentação
regional, erosão social, talvez até uma nova crise bancária,...) ou, sobretudo, dos limites físicos à sua própria expansão
(escassez de recursos, ambiente,...).