quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Clientes e contribuintes: a pretexto da crise, no biombo da democracia

A crise instalou-se e – agora já é oficial, Passos assim o declarou – veio para ficar! Pelo menos nos efeitos devastadores que provoca na vida das pessoas e que, ao perdurarem, irão forçosamente aprofundar-se. Bem podem vir falar – como já o fazem! – de recuperação económica, da evolução (finalmente) positiva dos indicadores que medem a desgraça, até mesmo do sucesso do programa de austeridade! Depois de destruir vidas e riqueza inutilmente (a avaliar pelos resultados obtidos comparados com os objectivos prosseguidos), a contrapartida de tanto êxito é, pois, a persistência de um elevado desemprego, o exílio de milhares de jovens qualificados obrigados a emigrar, a permanência dos cortes (provisórios, diziam!) nos salários e nas pensões, a extorsão fiscal responsável pelo estrangulamento das classes médias, a caminho da destruição.

Torna-se cada vez mais evidente que a crise foi um pretexto, um oportuno biombo que permitiu esconder os reais propósitos do sistema, a forma encontrada pelo capitalismo para reganhar os níveis de rentabilidade que lhe asseguram a sobrevivência. Depois de esgotado o expediente do crédito como forma de suprir a quebra de rendimentos da procura, dada a compressão salarial que já vinha ocorrendo – na actual conjuntura, sobretudo os clientes do negócio financeiro (nas suas diversas componentes, de especulação ou de crédito) – o sistema viu-se obrigado a recorrer ao saque directo sobre as pessoas, sob a forma de extorsão fiscal sobre os contribuintes, precarização das relações laborais, destruição de direitos sociais.

Com base nas designadas políticas de ajustamento orçamental, substituem-se os clientes (dos vários ‘negócios’ financeiros) pelos contribuintes e impõe-se ao conjunto da sociedade um gigantesco saque fiscal, ao mesmo tempo que se reduz o peso do Estado Social e aumentam as desigualdades. O espólio assim obtido transfere-se, sem pudor, para o insaciável e imutável sistema financeiro, em nome da sua sustentabilidade. Mais ainda, a crise permitiu impor, sob chantagem, todo um programa de transformação social assente na violenta regressão de direitos, implicando um claro retrocesso civilizacional!
 
A crise das dívidas, sublinhe-se uma vez mais, teve a sua origem no sistema financeiro. O elevado endividamento, público e privado, é, pois e antes de mais, o resultado das políticas de desregulação financeira, base para o desenvolvimento de agressivas campanhas de crédito (nas suas múltiplas formas, algumas bem capciosas) propícias à expansão de rentabilidade imediata, tornando-o no principal responsável pela bolha do crédito (mais de 95% da emissão de moeda em circulação resulta do crédito bancário). Ora, importa reafirmar que a ‘estabilização’ do sistema financeiro representou para o contribuinte europeu um encargo 10 vezes superior ao conjunto de todos os resgates aos Estados que o solicitaram, beneficiando desses apoios sobretudo a banca da Alemanha, França e Reino Unido!

Mas não é só a crise que tem servido de biombo às reais intenções dos donos do mundo. A democracia é igualmente utilizada como pretexto para se impor a tese da expansão do mercado (o principal expediente do sistema para garantir rentabilidade) ao resto mundo. Primeiro no Iraque, depois na Líbia, por agora na Síria (ainda em aberto), o objectivo real das intervenções externas de modo algum corresponde ao proclamado propósito de democratização de regimes a todos os títulos ignominiosos. É que os regimes instalados após essas intervenções (ou o que se adivinha no caso da Síria, infestado de fundamentalistas), em nada melhoraram relativamente às anteriores ditaduras, pelo contrário, conseguem ser piores em muitos dos aspectos que mais afectam a vida das pessoas. O que se passa na Ucrânia, hoje o destino preferido dos habituais ‘conselhos democráticos’ do Ocidente, não é muito diferente dos anteriores. A miragem dos manifestantes na reivindicada ‘europeização’, para além da óbvia disputa de lideranças regionais em ambiente de grande insatisfação popular, reproduz sobretudo a necessidade sistémica de uma maior abertura dos mercados ao... ‘Ocidente’!

Cá como lá, importa conseguir distinguir em cada momento, para além de todos os biombos erguidos pelo dominante pensamento único, o essencial do acessório, o prioritário do secundário, na complexa realidade social. O espectáculo pífio a que temos assistido ultimamente, com a direita e a esquerda a esgrimirem mirradas percentagens sobre a pindérica evolução positiva da economia portuguesa, só não se qualifica de patusco porque ele esconde a dramática realidade de vidas em desespero. Mas é elucidativo do modo como a esquerda em geral encara as saídas para a crise e se deixou arrastar para um campo que sabe não poder vencer – não obstante a consciência das limitações, nas actuais circunstâncias, à acção dos partidos ou à pedagogia do diálogo/confronto de ideias (mesmo que não descambe na demagogia ou num seu arremedo). A resistência a um sistema insaciável por natureza, que não olha a meios para conseguir sempre maiores lucros – afinal o segredo da sua longevidade e, em última análise, a única forma de garantir a sua sobrevivência! – já advirá mais em razão dos excessos cometidos (fragmentação regional, erosão social, talvez até uma nova crise bancária,...) ou, sobretudo, dos limites físicos à sua própria expansão (escassez de recursos, ambiente,...).

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A ‘Crise actual’ e as Crises deste nosso modo de vida - II

A persistência da Crise – para além da ‘crise financeira’

Sem contestação, vai-se banalizando a ideia, expressa em debates ou simples comentários, de que ‘só as empresas criam riqueza’. O uso de tal afirmação surge, invariavelmente, quando se pretende contrariar o papel do Estado na economia e na sociedade em geral. O contexto institucional serve bem o objectivo político: confinar a criação da riqueza ao confronto entre as instituiçõesEstado’ e ‘Empresa’, reduzir o trabalho a mera categoria instrumental! Em última análise relembra, a quem o tenha esquecido, a ‘ordem natural das coisas’: quem manda é o capital, o trabalho deve subordinar-se à organização empresa, o trabalhador vive na dependência do empresário! É, pois, toda uma filosofia de actuação política, um completo programa social que se encontra contido em tal expressão.

Trata-se, sem dúvida, de uma construção ideológica com claros intuitos políticos, que subtilmente se vai instilando na mente das pessoas e que só na forma consegue traduzir a realidade. Ora, por muito que isso custe aos fundamentalistas do mercado, o único factor que cria riqueza é mesmo o trabalho, seja ele organizado em empresas (sob tutela pública ou privada) ou executado fora delas ou mesmo prolongado no capital, sob a forma de máquinas, edifícios, saber e tecnologia,... O que não impede de tal construção mental – elaborada consciente ou inconscientemente – singrar à direita e à esquerda, dita e redita como verdade incontestável ou dogma infalível. Enfim, de produzir os efeitos pretendidos. De colaborar no propósito essencial prosseguido com estas políticas, a desvalorização do trabalho!

É este o contexto político da austeridade. E depois de destruírem a vida a meio milhão de pessoas (sobre os destroços de outro meio milhão já existente), de expulsarem da sua terra mais de 300 mil (a maioria jovens qualificados), de destruírem um País, os fautores da desgraça e próceres do programa político que a tal conduziu – o famigerado memorando da troika! – iniciam agora um estranho ritual de entoação de loas e aplausos aos sinais positivos emitidos pelos mercados, a quem obedecem e reverentemente se curvam. A partir de agora e se ainda dúvidas restassem, quem manda são os ditos mercados, pois até aquele arremedo de democracia realmente existente foi posto em causa e, pelo menos por enquanto, metido na gaveta (ombreando ao lado de outra ‘velharia histórica’ já antes lá colocada, o socialismo).

Com a imposição dos Tratados de Mastricht, Nice e Lisboa aos parceiros da União Europeia, a locomotiva dos mercados tomou conta dos comandos de uma Europa sem política, sem capacidade para traçar outro rumo que não seja o ditado pelos interesses da finança mundial, regionalmente liderados pelas conveniências estratégicas de uma Alemanha cada vez mais hegemónica. Mas quando se entrega o comando da vida em sociedade aos ditos automatismos do mercado, sem freios e poucos entraves (talvez um simulacro no Parlamento Europeu, já que os Nacionais estão constitucionalmente submetidos, ‘de jure’ ou ‘de facto’, aos famosos condicionalismos dos Tratados), o risco é mesmo a locomotiva esbarrar, descontrolada, nos históricos conflitos regionais potenciados pela competição inerente ao sistema. Conhecendo-se a actual intensidade competitiva dos mercados a nível global, estará então a nossa sobrevivência dependente da intensidade do(s) próximo(s) conflito(s)? A retirada do Estado e da política do caminho do mercado representa, é certo, o regresso à pureza dos princípios – a doutrina da ‘mão invisível’ – mas antecipa, de algum modo, os limites e o termo de um sistema baseado na competição, tanto mais eficaz quanto menos regras ou barreiras encontrar pela frente.

Por muito encorajadores, pois, que se vislumbrem e destaquem os sinais ou até mesmo se venham a revelar positivos os resultados económicos desta austeridade enviesada (os propósitos proclamados escondem os realmente prosseguidos), a evolução do País e o seu futuro imediato, pelo menos o das suas maiorias sociais, pouco ou nada beneficiarão com isso. As políticas de austeridade são para manter, hoje condicionadas por dois factores estruturais decisivos de impossível remoção ou alteração no curto prazo: a nível interno, uma estrutura produtiva nacional desmantelada a troco dos subsídios da Europa (e, sabe-se hoje, por troca com o reforço da alemã); a nível externo, toda a arquitectura institucional imposta pela UE/Alemanha, que, na prática, se revela de valor equivalente ao constitucional (neste sentido, pouco significado tem já a polémica em torno da constitucionalização de certas normas dos Tratados).

É assim que, perante o nível insustentável da dívida pública actual, a ideia – inicialmente excomungada – de que só uma reestruturação dessa dívida poderá levar à saída da crise, surge agora consensual. A partir daqui, porém, aprofundam-se as divergências, com os fiéis paladinos da austeridade nas suas várias versões (a dura e a moderada), ainda na ardente expectativa de um ‘milagre’ por via da alteração da estrutura institucional da UE, a falarem em reescalonamento de prazos, na redução de juros e, os mais avisados, até mesmo de corte de montantes! E enquanto tal ‘milagre’ não chega (bem podem esperar...), convém recordar-lhes, então, que só isso também não chega para se sair da crise financeira a que fomos submetidos – e que domina o quotidiano das pessoas, em desfavor de uma devida maior atenção aos sinais que traduzem e exigem a mudança dos actuais paradigmas, a nível económico, ambiental, social,...

sábado, 11 de janeiro de 2014

A ‘Crise actual’ e as Crises deste nosso modo de vida - I

Os dramas da crise de um modo de vida 

Os cataclismos recentemente ocorridos em diversas partes do Globo, Portugal incluído, trouxeram de novo ao debate um tema – as alterações climáticas – que parecia já esquecido face à maior prioridade concedida ao que envolve os efeitos da austeridade na degradação contínua da vida das pessoas. As imagens dos inúmeros dramas pessoais causados pelas intempéries tiveram pelo menos o mérito, no meio da desgraça imposta pelas forças da natureza, de relembrar às pessoas um problema bem real e próximo, que ameaça alterar de forma radical o seu modo de vida. Sobretudo o das populações da orla costeira portuguesa – que arrisca desaparecer em extensão significativa – expressando um misto de resignação e revolta perante o que aconteceu.

Entretanto e perante todos vai-se desenrolando um outro drama, este de natureza social, até há poucos anos impensável (pelo menos na forma que está a tomar), do repentino desmoronar de um modo de vida construído ao longo de décadas. Assistimos, impotentes, à contínua e imparável derrocada de um delineado futuro de dignidade (e bem-estar) que já tínhamos como adquirido, sobretudo observamos, entre a angústia sussurrada e a raiva contida, a violenta retirada de direitos tidos como fundamentais à sua construção. A realidade tem vindo a impor-se, cruel, à utopia colectiva – assume-se agora! – de um mundo diferente e melhor.

Havia a percepção, quando não mesmo a consciência firmada, de que este modo de vida, assente no consumo crescente, era insustentável pela própria natureza limitada das coisas. Bem antes de outros o afirmarem com propósitos bem diferentes, muitos foram os que alertaram para os riscos de um crescimento ilimitado que o sistema alimenta e de que se alimenta. Os recursos naturais são limitados e haviam já sido emitidos inúmeros sinais e muitos alertas tendentes a abrandar, senão mesmo a inverter, este exacerbado ritmo de consumo. Em lugar do habitual crescimento económico, para muitos de nós o desenvolvimento social passa já pelo seu decrescimento.

Mas não ‘este’ decrescimento imposto, esta ‘austeridade inevitável’ da transferência de rendimentos da maioria que trabalha para benefício exclusivo da minoria financista que capturou os Estados, servindo-se – servindo quem os serve – das ramificações internas dos prestáveis colaboracionistas necessários à execução dessa tarefa. A impotência advém, pois, de se saber tudo isto nas mãos de uma minoria que, sustentada numa experiência de milenar arteirice e a coberto da ignorância da maioria, mantém férreo controle sobre a exploração do trabalho de que se nutre. A raiva, essa, brota da dramática constatação de tal maioria, não obstante constituir objectivamente uma força imensa, permanecer muito fragmentada e dispersa. Há muita gente a pronunciar-se, a actuar no sentido da mudança em prol de um mundo diferente, mas cada um a lutar para seu lado. O que, objectivamente, beneficia quem a explora.

Dir-se-á que sempre assim foi, a consciência de classe (ou a sua ausência) permite explicar esta situação de grande fragmentação de pontos de vista quando se trata de defender os interesses específicos das maiorias sociológicas. Mas se a divisão se compreende e aceita no que respeita às soluções alternativas, o certo é que nunca como hoje parece ter havido tanta unanimidade em torno do diagnóstico e da necessidade de alterar uma situação cujos danos sociais ameaçam tornar-se irreversíveis. O que virá a seguir deverá ser determinado pelas próprias dinâmicas sociais e políticas (se a política ainda tiver espaço para actuar), todo o voluntarismo ideológico, por mais fundamentado que o seja, parece, face à prioridade assumida, descabido e até pernicioso – precisamente na medida em que possa bloquear o urgente derrube de uma situação danosa a todos os níveis.

O que está em causa na inevitável alteração do modo de vida que se perspectiva – seja por exigência ecológica das alterações climáticas (se não for por antecipação, sê-lo-á seguramente por adaptação), seja por imposição ideológica das actuais políticas de austeridade – vai muito para além das mudanças em curso nos hábitos de consumo. Nela se joga sobretudo o futuro da democracia (e do progresso), no quadro do confronto de duas tendências opostas: a primeira, no sentido do aprofundamento da partilha democrática, aposta na redução das desigualdades sociais e consequente alargamento da cidadania; a segunda, assente na hierarquização da posse, acentua a tendência elitista hoje dominante do crescente fosso das assimetrias actuais para níveis cada vez mais obscenos – o que conduzirá inevitavelmente ao aumento da intensidade dos conflitos sociais, de dimensão e consequências imprevisíveis.
   
Neste contexto, suscita grande perplexidade a aparente resignação das pessoas aos efeitos desta política de austeridade. A tese mais difundida nos media para o explicar é a do temor de as alternativas poderem ainda ser piores. Pretende veicular a ideia de que, afinal, as pessoas compreendem as medidas tomadas, porque sabem que não há alternativa, para o que muito contribui a posição dúbia ‘deste’ PS (em linha, aliás, com os restantes partidos social-democratas europeus!), entalado entre o compromisso do ‘memorando’ que assinou – a aceitação da austeridade e subsequente destruição da economia – e a sua rejeição defendida pela esquerda (com ou sem Euro) como forma de salvar o País. Contudo, mais que resignação, as pessoas denotam contida indiferença e muita impotência, revelando que apenas aguardam o momento para agir. E enquanto esperam, acumulam pressão e agressividade, o que normalmente resulta em situações de grande violência, logo que a oportunidade se depara.
(...)