sábado, 11 de janeiro de 2014

A ‘Crise actual’ e as Crises deste nosso modo de vida - I

Os dramas da crise de um modo de vida 

Os cataclismos recentemente ocorridos em diversas partes do Globo, Portugal incluído, trouxeram de novo ao debate um tema – as alterações climáticas – que parecia já esquecido face à maior prioridade concedida ao que envolve os efeitos da austeridade na degradação contínua da vida das pessoas. As imagens dos inúmeros dramas pessoais causados pelas intempéries tiveram pelo menos o mérito, no meio da desgraça imposta pelas forças da natureza, de relembrar às pessoas um problema bem real e próximo, que ameaça alterar de forma radical o seu modo de vida. Sobretudo o das populações da orla costeira portuguesa – que arrisca desaparecer em extensão significativa – expressando um misto de resignação e revolta perante o que aconteceu.

Entretanto e perante todos vai-se desenrolando um outro drama, este de natureza social, até há poucos anos impensável (pelo menos na forma que está a tomar), do repentino desmoronar de um modo de vida construído ao longo de décadas. Assistimos, impotentes, à contínua e imparável derrocada de um delineado futuro de dignidade (e bem-estar) que já tínhamos como adquirido, sobretudo observamos, entre a angústia sussurrada e a raiva contida, a violenta retirada de direitos tidos como fundamentais à sua construção. A realidade tem vindo a impor-se, cruel, à utopia colectiva – assume-se agora! – de um mundo diferente e melhor.

Havia a percepção, quando não mesmo a consciência firmada, de que este modo de vida, assente no consumo crescente, era insustentável pela própria natureza limitada das coisas. Bem antes de outros o afirmarem com propósitos bem diferentes, muitos foram os que alertaram para os riscos de um crescimento ilimitado que o sistema alimenta e de que se alimenta. Os recursos naturais são limitados e haviam já sido emitidos inúmeros sinais e muitos alertas tendentes a abrandar, senão mesmo a inverter, este exacerbado ritmo de consumo. Em lugar do habitual crescimento económico, para muitos de nós o desenvolvimento social passa já pelo seu decrescimento.

Mas não ‘este’ decrescimento imposto, esta ‘austeridade inevitável’ da transferência de rendimentos da maioria que trabalha para benefício exclusivo da minoria financista que capturou os Estados, servindo-se – servindo quem os serve – das ramificações internas dos prestáveis colaboracionistas necessários à execução dessa tarefa. A impotência advém, pois, de se saber tudo isto nas mãos de uma minoria que, sustentada numa experiência de milenar arteirice e a coberto da ignorância da maioria, mantém férreo controle sobre a exploração do trabalho de que se nutre. A raiva, essa, brota da dramática constatação de tal maioria, não obstante constituir objectivamente uma força imensa, permanecer muito fragmentada e dispersa. Há muita gente a pronunciar-se, a actuar no sentido da mudança em prol de um mundo diferente, mas cada um a lutar para seu lado. O que, objectivamente, beneficia quem a explora.

Dir-se-á que sempre assim foi, a consciência de classe (ou a sua ausência) permite explicar esta situação de grande fragmentação de pontos de vista quando se trata de defender os interesses específicos das maiorias sociológicas. Mas se a divisão se compreende e aceita no que respeita às soluções alternativas, o certo é que nunca como hoje parece ter havido tanta unanimidade em torno do diagnóstico e da necessidade de alterar uma situação cujos danos sociais ameaçam tornar-se irreversíveis. O que virá a seguir deverá ser determinado pelas próprias dinâmicas sociais e políticas (se a política ainda tiver espaço para actuar), todo o voluntarismo ideológico, por mais fundamentado que o seja, parece, face à prioridade assumida, descabido e até pernicioso – precisamente na medida em que possa bloquear o urgente derrube de uma situação danosa a todos os níveis.

O que está em causa na inevitável alteração do modo de vida que se perspectiva – seja por exigência ecológica das alterações climáticas (se não for por antecipação, sê-lo-á seguramente por adaptação), seja por imposição ideológica das actuais políticas de austeridade – vai muito para além das mudanças em curso nos hábitos de consumo. Nela se joga sobretudo o futuro da democracia (e do progresso), no quadro do confronto de duas tendências opostas: a primeira, no sentido do aprofundamento da partilha democrática, aposta na redução das desigualdades sociais e consequente alargamento da cidadania; a segunda, assente na hierarquização da posse, acentua a tendência elitista hoje dominante do crescente fosso das assimetrias actuais para níveis cada vez mais obscenos – o que conduzirá inevitavelmente ao aumento da intensidade dos conflitos sociais, de dimensão e consequências imprevisíveis.
   
Neste contexto, suscita grande perplexidade a aparente resignação das pessoas aos efeitos desta política de austeridade. A tese mais difundida nos media para o explicar é a do temor de as alternativas poderem ainda ser piores. Pretende veicular a ideia de que, afinal, as pessoas compreendem as medidas tomadas, porque sabem que não há alternativa, para o que muito contribui a posição dúbia ‘deste’ PS (em linha, aliás, com os restantes partidos social-democratas europeus!), entalado entre o compromisso do ‘memorando’ que assinou – a aceitação da austeridade e subsequente destruição da economia – e a sua rejeição defendida pela esquerda (com ou sem Euro) como forma de salvar o País. Contudo, mais que resignação, as pessoas denotam contida indiferença e muita impotência, revelando que apenas aguardam o momento para agir. E enquanto esperam, acumulam pressão e agressividade, o que normalmente resulta em situações de grande violência, logo que a oportunidade se depara.
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