Os dramas da crise de um modo de vida
Os cataclismos recentemente
ocorridos em diversas partes do Globo, Portugal incluído, trouxeram de novo ao
debate um tema – as alterações climáticas – que parecia já esquecido
face à maior prioridade concedida ao que envolve os efeitos da austeridade
na degradação contínua da vida das pessoas. As imagens dos inúmeros dramas
pessoais causados pelas intempéries tiveram pelo menos o mérito, no meio da
desgraça imposta pelas forças da natureza, de relembrar às pessoas um problema
bem real e próximo, que ameaça alterar de forma radical o seu modo de vida.
Sobretudo o das populações da orla costeira portuguesa – que arrisca
desaparecer em extensão significativa – expressando um misto de resignação e
revolta perante o que aconteceu.
Entretanto e perante todos
vai-se desenrolando um outro drama, este de natureza social, até
há poucos anos impensável (pelo menos na forma que está a tomar), do repentino
desmoronar de um modo de vida construído ao longo de décadas.
Assistimos, impotentes, à contínua e imparável derrocada de um delineado futuro
de dignidade (e bem-estar) que já tínhamos como adquirido, sobretudo
observamos, entre a angústia sussurrada e a raiva contida, a violenta retirada
de direitos tidos como fundamentais à sua construção. A realidade tem vindo a
impor-se, cruel, à utopia colectiva – assume-se agora! – de um mundo diferente
e melhor.
Havia a percepção, quando não mesmo a consciência firmada,
de que este modo de vida, assente no consumo crescente, era insustentável
pela própria natureza limitada das coisas. Bem antes de outros o afirmarem com
propósitos bem diferentes, muitos foram os que alertaram para os riscos de um
crescimento ilimitado que o sistema alimenta e de que se alimenta. Os recursos
naturais são limitados e haviam já sido emitidos inúmeros sinais e muitos
alertas tendentes a abrandar, senão mesmo a inverter, este exacerbado ritmo de
consumo. Em lugar do habitual crescimento económico, para muitos de nós o
desenvolvimento social passa já pelo seu decrescimento.
Mas não ‘este’ decrescimento imposto, esta ‘austeridade
inevitável’ da transferência de rendimentos da maioria que trabalha para
benefício exclusivo da minoria financista que capturou os Estados, servindo-se
– servindo quem os serve – das ramificações internas dos prestáveis
colaboracionistas necessários à execução dessa tarefa. A impotência
advém, pois, de se saber tudo isto nas mãos de uma minoria que, sustentada numa
experiência de milenar arteirice e a coberto da ignorância da maioria, mantém
férreo controle sobre a exploração do trabalho de que se nutre. A raiva,
essa, brota da dramática constatação de tal maioria, não obstante constituir
objectivamente uma força imensa, permanecer muito fragmentada e dispersa. Há
muita gente a pronunciar-se, a actuar no sentido da mudança em prol de um
mundo diferente, mas cada um a lutar para seu lado. O que, objectivamente,
beneficia quem a explora.
Dir-se-á que sempre assim foi, a consciência de classe (ou
a sua ausência) permite explicar esta situação de grande fragmentação de pontos
de vista quando se trata de defender os interesses específicos das maiorias
sociológicas. Mas se a divisão se compreende e aceita no que respeita às
soluções alternativas, o certo é que nunca como hoje parece ter havido tanta unanimidade
em torno do diagnóstico e da necessidade de alterar uma situação cujos
danos sociais ameaçam tornar-se irreversíveis. O que virá a seguir deverá ser
determinado pelas próprias dinâmicas sociais e políticas (se a política ainda
tiver espaço para actuar), todo o voluntarismo ideológico, por mais
fundamentado que o seja, parece, face à prioridade assumida, descabido e até
pernicioso – precisamente na medida em que possa bloquear o urgente derrube de
uma situação danosa a todos os níveis.
O que está em causa na inevitável alteração do modo de
vida que se perspectiva – seja por exigência ecológica das
alterações climáticas (se não for por antecipação, sê-lo-á seguramente por
adaptação), seja por imposição ideológica das actuais políticas de
austeridade – vai muito para além das mudanças em curso nos hábitos de consumo.
Nela se joga sobretudo o futuro da democracia (e do progresso), no quadro do
confronto de duas tendências opostas: a primeira, no sentido do
aprofundamento da partilha democrática, aposta na redução das desigualdades
sociais e consequente alargamento da cidadania; a segunda, assente na
hierarquização da posse, acentua a tendência elitista hoje dominante do
crescente fosso das assimetrias actuais para níveis cada vez mais obscenos – o
que conduzirá inevitavelmente ao aumento da intensidade dos conflitos
sociais, de dimensão e consequências imprevisíveis.
Neste contexto, suscita grande perplexidade a aparente resignação
das pessoas aos efeitos desta política de austeridade. A tese mais
difundida nos media para o explicar é a do temor de as alternativas
poderem ainda ser piores. Pretende veicular a ideia de que, afinal, as pessoas
compreendem as medidas tomadas, porque sabem que não há alternativa, para o que
muito contribui a posição dúbia ‘deste’ PS (em linha, aliás, com os restantes partidos social-democratas europeus!), entalado entre o compromisso
do ‘memorando’ que assinou – a aceitação da austeridade e subsequente
destruição da economia – e a sua rejeição defendida pela esquerda (com ou sem
Euro) como forma de salvar o País. Contudo, mais que resignação, as pessoas
denotam contida indiferença e muita impotência, revelando que
apenas aguardam o momento para agir. E enquanto esperam, acumulam pressão e
agressividade, o que normalmente resulta em situações de grande violência,
logo que a oportunidade se depara.
(...)
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