terça-feira, 18 de março de 2014

Crescimento? Só se for o da regressão social contínua!

O debate político dos últimos tempos voltou a ser dominado pelo crescimento económico (na realidade ele nunca deixou de estar presente, com maior ou menor dominância é ele que alimenta a vitalidade do sistema), considerado a panaceia para os males que atormentam o país e o mundo. Foram, primeiro, os anémicos sinais de uma tendência imprecisa rapidamente transformados em início de uma robusta retoma, quando não mesmo em milagre económico (a excessiva euforia do ministro Pires de Lima deu lugar, entretanto, a uma mais contida exaltação e até a desculpas pelo exagerado entusiasmo).

Mas logo depois vieram os avisos, sob a forma de relatórios, dos (in)suspeitos do costume: afinal, tanto o FMI como a Comissão Europeia consideram frágil o crescimento e, por isso mesmo, pouco sustentáveis os sinais dessa ansiada retoma. O que não os inibe, contudo, aparentemente de forma incongruente, de convergirem no sucesso do programa de austeridade, a causa próxima da actual crise de crescimento! É claro que para sustentarem esta conclusão – e assegurarem a continuidade da austeridade, como é do interesse do capital financeiro e de todos os que gravitam à sua volta, políticos e comentadores políticos incluídos! – necessitam de construir cenários na base de pressupostos que, por mais irrealistas que se apresentem, suportem a tese de uma recuperação económica que permita pagar a dívida sem reestruturação. E, daí, o retorno em força do tema do crescimento económico.

A estabilidade social e política das sociedades actuais, é bem sabido, depende do crescimento. Sem ele a coesão social corre riscos de desagregação, os conflitos sociais, inerentes a qualquer sociedade organizada, tendem para uma maior violência. Acresce que o ADN do sistema capitalista assenta no crescimento contínuo, toda a organização social fundada nele depende da verificação desse pressuposto. Quando tal não acontece ou quando qualquer acto ou facto o põe em causa, irrompe a crise, sob múltiplas formas e dimensões. Foi precisamente o que aconteceu com a enorme dívida acumulada, a que o poder político respondeu através da austeridade e a asfixia do Estado Social. A tese largamente veiculada de que o sobreendividamento que arrastou a crise foi provocado pelo excesso de benefícios sociais e o financiamento dos direitos democráticos, não se coaduna com a constatação do aumento generalizado das desigualdades precisamente no período em que a dívida pública mais cresceu.

Enquanto foi possível ao poder político manter o discurso do ‘não há alternativa’, pouco sobrou às pessoas para além da resignação ao ‘inevitável’ – apresentado sob a forma de programa de austeridade, embora matizado pela promessa de se tratar de uma medida provisória. Mas a partir da altura em que esta ameaçou tornar-se definitiva, muitos foram obrigados a admitir e a considerar possíveis outros cenários e desfechos. A reestruturação da dívida, há muito constante das propostas ditas radicais, entrou em força na ordem do dia com o objectivo de a conciliar com a vida! De a tornar mais suportável, pelo menos.

A demonstração final de que a dívida actual é insustentável (e que a via da austeridade se esgotou) foi produzida (a contragosto, diga-se) em exercício puramente académico pelo ‘apolítico’ Cavaco que, não obstante o optimismo lírico dos dados em que o baseou (a generalidade dos comentadores considerou-os irrealistas!), ainda assim conclui que serão necessários entre 20 a 30 anos (!) para a estabilizar em níveis sustentáveis (os famosos 60% do PIB). Outras contas concluíram, entretanto, que tal cálculo está errado e os anos de penitência estarão mais perto do dobro desse número. Enfim, uma eternidade! Por esta andar Cavaco ainda irá reivindicar ter sido ele o primeiro a suscitar a necessidade da reestruturação da dívida!
 
Certo é que aumenta a consciência social de que a alternativa à reestruturação da dívida é a austeridade permanente (e crescente), o que envolve em última análise, a opção entre democracia ou mercado (a subordinação aos especuladores que implica ‘honrar’ todos os compromissos da dívida). Só mesmo uma renegociação que inclua o perdão de pelo menos boa parte dos juros especulativos passados, poderá ainda evitar cair-se na insustentável situação do empobrecimento progressivo até limites socialmente insuportáveis: velhos sem passado, jovens sem futuro, por conta de um presente sequestrado pelos compromissos de uma dívida, em parte com origem ilegítima, dada a forma abusiva como foi contraída.

Sabe-se, entretanto, que o crescimento económico tem vindo a desacelerar desde a década de 60 (Marc Ferro, O regresso da História), por efeito da persistente redução da procura global induzida pela destruição de empregos (e consequente baixa de salários) provocada pela crescente automação. Os diversos expedientes a que o sistema lançou mão para colmatar esse efeito, nomeadamente através da expansão do crédito, tiveram como resultados por um lado a enorme concentração de riqueza e o aumento das desigualdades (contribuindo para a gradual quebra da procura), por outro o disparo do endividamento (das famílias, das empresas e do Estado) para níveis que se veio a constatar serem insuportáveis. A retoma económica (filiada na crença do crescimento contínuo) aparece assim como a solução universal para se sair da crise. Contudo, a incapacidade de se substituírem os empregos destruídos pela avalanche da automação e a persistência de um elevado desemprego, abala em definitivo essa crença no crescimento contínuo. A retoma reduz-se então ao início de mais um ciclo sem saída, com final já anunciado.