quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Nacionalização da Banca

Refira-se desde já que, a não ser que um imprevisto (mas não de todo improvável) cataclismo económico a venha precipitar e a torne urgente, dificilmente a nacionalização do sistema financeiro terá lugar nos próximos tempos. Aqui e no mundo dito civilizado, o termo encontra-se proscrito, a sua mera pronúncia implica olhares interpelantes e risos nervosos (sintomática a frequência com que estes episódios interditos vão ocorrendo!). E, no entanto, esta é uma daquelas palavras malditas que, não obstante a carga histórica negativa com que a fazem acompanhar, tende a impor-se cada vez mais como realidade imperativa sobre todas as ideologias ou preconceitos. A menos que, em nome de um qualquer fundamentalismo religioso ou secular, se pretenda contrariar a evidência e afrontar o destino, comprometendo o futuro.

Porque esta é uma daquelas áreas em que o comando não pode – não deve – ficar entregue a privados. Ou então pode e os resultados estão à vista: o BES é ‘apenas’ mais um episódio de uma saga  interminável – caso não seja travada entretanto. Esta é, enfim, uma daquelas áreas que, à semelhança das que garantem a segurança dos cidadãos, exige intervenção exclusiva por parte do Estado. No sentido igualmente da protecção de pessoas e bens. Sob pena de a corrupção tomar conta do quotidiano da comunidade, de se defraudar a confiança dos cidadãos nas instituições que é suposto existirem para os servir e lhes facilitar a vida. De o poder democrático se subjugar à tecnocracia, de as sociedades serem dominadas pela plutocracia financeira. De o interesse público ficar subordinado a interesses particularistas: trata-se, em suma, de uma área demasiado influente e decisiva para a vida colectiva das comunidades para poder ser deixada ao arbítrio, senão mesmo aos caprichos, de privados (por mais honestos e rigorosos que sejam).

É por isso que importa ser claro, sem deixar de ser pragmático, quando se aborda em política este tema. Deve, pois, afirmar-se, antes de mais, que, a nível estratégico, só o controle público do sistema financeiro – que passa desde logo pela inevitável nacionalização da Banca – permite as condições exigidas pelo desenvolvimento económico e social, ao garantir o suporte indispensável à economia real, sem desvirtuamentos especulativos nem enviesamentos na natureza da actividade (a designada engenharia financeira). Contudo e assumindo-se que, no imediato, esse cenário será de todo impossível de alcançar, importa explicitar objectivos exequíveis de curto prazo, incidindo tanto a nível do cumprimento rigoroso das regras estabelecidas, como do seu maior aprofundamento.

Dois temas sobretudo merecem especial atenção e têm dominado este debate: o sempre adiado controle ou extinção dos off-shores (entidade mais virtual que real, mas cuja presença se impõe para além de toda a lógica: ninguém a defende mas todos a aceitam – e utilizam) e o regresso ao ‘core’ da actividade bancária tradicional (depósitos/poupança e crédito), repondo-se a separação, varrida pela onda liberal da desregulação, entre a banca comercial e a de investimentos. A avaliar pelo ambiente económico e político dominante, claramente desfavorável a mexidas profundas no actual modelo financeiro, será muito difícil antever alterações significativas em qualquer destes dois temas. Mas a realidade evolui muito depressa, como se viu (e continua a ver!) pelos acontecimentos dos últimos dias. Entretanto e não obstante o pouco mais que virtual papel da regulação financeira (aqui ou em qualquer parte do mundo, se dúvidas houvesse o caso BES encarregou-se de as desfazer), impõe-se uma vigilância apertada sobre o seu desempenho, por forma a que se cumpram ao menos as regras estabelecidas de controle do sector.

Enquanto os diversos vírus que afectam o sistema não fazem o seu caminho e produzem o seu efeito (o último terá sido o ‘esquema’ engendrado à última da hora para a salvação do BES, fazendo intervir a restante banca através da utilização de um denominado Fundo de Resolução modelado em cima da hora – e as reacções negativas começaram já a fazer sentir-se, nos bancos e não só!), resta a denúncia de práticas abusivas e de situações ilegítimas que, não obstante a austeridade imposta à sociedade, parecem consolidadas. Práticas e situações que perduram intactas, herdadas de um passado (agora hipocritamente causticado) em que foi permitido à Banca expandir o seu negócio de forma engenhosa mas artificial, assente numa alavancagem financeira monstruosa (na sua dupla acepção) e avessa ao controlo, gerando proveitos talhados à medida dos interesses imediatos dos seus gestores. De que usufruem ainda em larga escala, pois pouco ou nada foi feito para corrigir tais práticas ou responsabilizar os seus autores.

Por fim, quantos mais ‘episódios BES’ ainda serão então necessários para se impor uma solução alternativa ao sistema? Para se mudar de sistema?

*****

P.S. – Surpreendente – sobretudo preocupante – a revelação do Governador do BP, esta tarde no Parlamento, de que ‘o sistema financeiro esteve no fio da navalha no último fim-de-semana’ (!!!), antes da criação do ‘último grito’ em engenharia financeira que constituiu a ‘Resolução’ do BES. Importa então ver se a opção por essa alternativa, em detrimento de outras – entre elas a que podia ter recorrido, em tempo, à ‘recapitalização’ nos termos já antes utilizados pelo BCP, BPI e Banif (impedindo a contaminação da restante banca, mas obrigando à cativação de fundos ‘reservados’ para o próximo ano, ano de eleições!) – não irá gerar uma dinâmica de imprevisíveis consequências sobre todo o sistema financeiro, alastrando depois ao resto da economia. Enfim, se a implosão aparentemente controlada do BES ficará contida nos seus próprios limites ou se daí não irá resultar nada de mais grave, levando porventura à explosão sem controle do sistema (ou partes dele). Afinal que mais ‘experiências laboratoriais’ nos esperam ainda?