Refira-se desde já que, a não ser
que um imprevisto (mas não de todo improvável) cataclismo económico a venha
precipitar e a torne urgente, dificilmente a nacionalização do sistema
financeiro terá lugar nos próximos tempos. Aqui e no mundo dito
civilizado, o termo encontra-se proscrito, a sua mera pronúncia implica olhares
interpelantes e risos nervosos (sintomática a frequência com que estes episódios interditos vão ocorrendo!). E, no
entanto, esta é uma daquelas palavras
malditas que, não obstante a carga histórica negativa com que a fazem
acompanhar, tende a impor-se cada vez mais como realidade imperativa sobre
todas as ideologias ou preconceitos. A menos que, em nome de um qualquer
fundamentalismo religioso ou secular, se pretenda contrariar a evidência e
afrontar o destino, comprometendo o futuro.
Porque esta é uma daquelas áreas
em que o comando não pode – não deve – ficar entregue a privados. Ou então pode
e os resultados estão à vista: o BES é ‘apenas’ mais um episódio de uma
saga interminável – caso não seja
travada entretanto. Esta é, enfim, uma daquelas áreas que, à semelhança das que
garantem a segurança dos cidadãos, exige intervenção exclusiva por parte do
Estado. No sentido igualmente da protecção de pessoas e bens. Sob pena de a
corrupção tomar conta do quotidiano da comunidade, de se defraudar a confiança
dos cidadãos nas instituições que é suposto existirem para os servir e lhes
facilitar a vida. De o poder democrático se subjugar à tecnocracia, de as
sociedades serem dominadas pela plutocracia financeira. De o interesse público
ficar subordinado a interesses particularistas: trata-se, em suma, de uma área
demasiado influente e decisiva para a vida colectiva das comunidades para poder
ser deixada ao arbítrio, senão mesmo aos caprichos, de privados (por mais
honestos e rigorosos que sejam).
É por isso que importa ser claro,
sem deixar de ser pragmático, quando se aborda em política este tema. Deve,
pois, afirmar-se, antes de mais, que, a nível estratégico, só o controle público do sistema financeiro
– que passa desde logo pela inevitável nacionalização da Banca – permite as
condições exigidas pelo desenvolvimento económico e social, ao garantir o
suporte indispensável à economia real, sem desvirtuamentos especulativos nem
enviesamentos na natureza da actividade (a designada engenharia financeira). Contudo
e assumindo-se que, no imediato, esse cenário será de todo impossível de alcançar,
importa explicitar objectivos exequíveis de curto prazo, incidindo tanto a
nível do cumprimento rigoroso das regras estabelecidas, como do seu maior
aprofundamento.
Dois temas sobretudo merecem
especial atenção e têm dominado este debate: o sempre adiado controle
ou extinção dos off-shores (entidade mais virtual que real, mas cuja presença
se impõe para além de toda a lógica: ninguém a defende mas todos a aceitam – e utilizam)
e o regresso
ao ‘core’ da actividade bancária tradicional (depósitos/poupança e crédito),
repondo-se a separação, varrida pela onda liberal da desregulação, entre a
banca comercial e a de investimentos. A avaliar pelo ambiente económico e
político dominante, claramente desfavorável a mexidas profundas no actual modelo
financeiro, será muito difícil antever alterações significativas em qualquer
destes dois temas. Mas a realidade evolui muito depressa, como se viu (e
continua a ver!) pelos acontecimentos dos últimos dias. Entretanto e não
obstante o pouco mais que virtual papel da regulação financeira
(aqui ou em qualquer parte do mundo, se dúvidas houvesse o caso BES
encarregou-se de as desfazer), impõe-se uma vigilância apertada sobre o seu
desempenho, por forma a que se cumpram ao menos as regras estabelecidas de
controle do sector.
Enquanto os diversos vírus que
afectam o sistema não fazem o seu caminho e produzem o seu efeito (o último
terá sido o ‘esquema’ engendrado à última
da hora para a salvação do BES, fazendo intervir a restante banca através da
utilização de um denominado Fundo de Resolução modelado em cima da hora – e as reacções negativas começaram já a fazer sentir-se,
nos bancos e não só!), resta a denúncia
de práticas abusivas e de situações ilegítimas que, não obstante a
austeridade imposta à sociedade, parecem consolidadas. Práticas e situações que
perduram intactas, herdadas de um passado (agora hipocritamente causticado) em
que foi permitido à Banca expandir o seu negócio de forma engenhosa mas
artificial, assente numa alavancagem financeira monstruosa (na sua dupla acepção) e avessa ao controlo, gerando proveitos talhados à medida dos interesses imediatos dos
seus gestores. De que usufruem ainda em larga escala, pois pouco ou nada foi
feito para corrigir tais práticas ou responsabilizar os seus autores.
Por fim, quantos mais ‘episódios BES’ ainda serão então necessários
para se impor uma solução alternativa ao sistema? Para se mudar de sistema?
P.S. – Surpreendente – sobretudo preocupante – a revelação
do Governador do BP, esta tarde no Parlamento, de que ‘o
sistema financeiro esteve no fio da
navalha no último fim-de-semana’ (!!!), antes da criação do ‘último grito’ em engenharia financeira
que constituiu a ‘Resolução’ do BES. Importa
então ver se a opção por essa alternativa, em detrimento de outras – entre elas
a que podia ter recorrido, em tempo, à ‘recapitalização’ nos
termos já antes utilizados pelo BCP, BPI e Banif (impedindo a
contaminação da restante banca, mas obrigando à cativação de fundos ‘reservados’
para o próximo ano, ano de eleições!) – não irá gerar uma dinâmica de
imprevisíveis consequências sobre todo o sistema financeiro, alastrando depois
ao resto da economia. Enfim, se a implosão aparentemente controlada do
BES ficará contida nos seus próprios limites ou se daí não irá resultar
nada de mais grave, levando porventura à explosão sem controle do sistema
(ou partes dele). Afinal que mais ‘experiências
laboratoriais’ nos esperam ainda?
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