sábado, 11 de fevereiro de 2012

O discurso milagreiro da competitividade - II


Os limites da competição: sequelas e alternativas

A realidade dos factos indica que, para além de toda a propaganda, mais que qualquer capacidade pessoal desencadeada ou estimulada pela competição e pelo gosto do risco, o que faz brotar a iniciativa e a oportunidade de investimento é, pois, a disponibilidade de capital. É, antes de mais, a dimensão do capital próprio ou alheio (crédito,...) que condiciona e determina a maior ou menor capacidade de inovar e empreender nas sociedades capitalistas. Que gera o empreendedorismo, a nova ‘palavra da salvação’, autêntico avatar liberal para a Crise, não obstante tratar-se de conceito não isento de ambiguidades! É da quantidade que, por regra, deriva a qualidade, raramente acontece o contrário – só depois esta potencia e reproduz nova quantidade/qualidade.

Ora, dado que o aumento da competitividade se obtém à custa do reforço de meios financeiros, tecnológicos e humanos, em período de crise as estratégias para o atingir por parte dos países da periferia (como no caso de Portugal) esbarram, assim, numa dupla dificuldade: a que se insere na natureza e dinâmica do próprio modelo dual de desenvolvimento capitalista (dependência dos grandes operadores) e a que resulta da escassez relativa de capitais por impostas restrições externas (restrições ao acesso dos recursos financeiros indispensáveis para tal incremento). A receita clássica é bem conhecida: o esforço suplementar exigido acaba por incidir exclusivamente sobre os recursos humanos, através da contínua depreciação da força de trabalho (desvalorização salarial, liberalização laboral,...), acentuando-se deste modo o clima depressivo da Crise por consequente atrofia da procura.
 
Porque, é bom enfatizá-lo, a competição em excesso também mata. Não só a competição não esgota (e, tão pouco, só por si o explica) as condições indispensáveis à prossecução da eficiência, do aumento da produtividade, em suma, do crescimento, como por vezes pode demonstrar-se contraproducente e até prejudicial a esse objectivo. A excessiva pressão exercida sobre os recursos, por exemplo, conduz por norma, ao desgaste prematuro e a uma gestão ruinosa dos mesmos, pondo em risco o futuro destes e dos que deles dependem. Nesse sentido, o papel da cooperação no desenvolvimento das sociedades tem vindo a ser destacado como tão importante ou mais do que a competição.

Alguns dos mais recentes desenvolvimentos da biologia, nomeadamente através do contributo da simbiose entre espécies diferentes, parecem trazer novos dados objectivos que concorrem para completar algumas lacunas na teoria da evolução e ajudam também a compreender melhor as relações sociais. Com efeito, nas duas últimas décadas reavivou-se o interesse pela investigação do denominado fenómeno simbiótico, ainda insuficientemente conhecido, até porque muito pouco divulgado, mas presente em diversas manifestações na evolução das espécies.

A simbiogénese afirma – e demonstra – que competição e cooperação, longe de serem processos antagónicos, coexistem na natureza e actuam em complementariedade. Melhor ainda, ela explica como o sucesso evolutivo das espécies resulta mais da cooperação do que da competição, dependendo do momento e do lugar, sem excluir ou desvalorizar, como é óbvio, o papel da competição no processo de selecção das diferentes estirpes.

A Crise – e as soluções que o poder liberal dominante tem vindo a desenvolver supostamente para a debelar – geraram ou acentuaram fenómenos de exclusão tão extremos e absurdos que tem vindo a relançar-se na sociedade a reflexão sobre as alternativas aos valores prevalecentes da competição, do individualismo, do efémero (busca de resultados imediatos). Por oposição, recupera-se o velho ideário (republicano, socialista,...) da solidariedade, da colaboração, da associação. Nunca é demais repeti-lo: a maior mistificação actual é fazer crer, por mil maneiras, que o ideário que pôs o mundo à beira da catástrofe (com a ajuda, diga-se, de ideário dito socialista!), será o mesmo – ainda mais aprofundado – a tirá-lo do ‘buraco’ onde se encontra!

Na situação actual e nas condições vigentes da estrutura produtiva nacional, a ênfase posta na competição apenas serve para agravar ainda mais a insatisfação socialefeitos depressivos sobre os indivíduos (em período de desemprego elevado), prejuízos acrescidos sobre as empresas (arrastadas para a falência sobretudo pela pressão da concorrência externa).

A competição faz parte do instrumental com que o fundamentalismo liberal espera proceder à punição/purificação da sociedade portuguesa, acreditando assim, através da ‘selecção natural’, revigorar a obsoleta estrutura produtiva nacional. Tal como a política da austeridade inevitável, eufemismo com que se justifica a espoliação descarada dos rendimentos do trabalho por conta de uma arquitectada ‘ajuda externa’ para pagamento exclusivo aos devedores – em lugar da sempre adiada mas inevitável reestruturação da dívida. À custa de mil sacrifícios impostos às pessoas, por conta de uma suposta miraculosa ideia sem futuro: a agenda liberal que espera concretizar-se à boleia da intervenção da ‘troika’!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O discurso milagreiro da competitividade - I


Os 'donos da bola'

Não há, hoje, indicador económico mais visado, a nível dos objectivos prosseguidos, das políticas a desenvolver ou das análises críticas, venham elas da direita ou da esquerda, que o da competitividade, seja nacional, empresarial ou mesmo individual. A competição ergue-se como o supremo critério de validação da acção política, todas as medidas são tomadas em nome da melhoria da posição competitiva do país, tudo se subordina a esse imperativo de ‘sobrevivência na selva’ que é a capacidade de cada grupo ou indivíduo superar os feitos dos ‘outros’.

A competição, é certo, faz parte da vida, não é possível fugir a ela. Dir-se-á mesmo ser essencial ao desenvolvimento, sem ela não haveria progresso por ausência dos indispensáveis estímulos. Aparentemente, pois, todos a aceitam, ou a ela se sujeitam. Com base no argumento de ser ela que melhor consegue atingir os níveis de eficiência que modelam e onde assenta a evolução da Humanidade, a que mais contribui para melhorar as condições materiais do homem.

Desenvolvem-se competências individuais, exploram-se as vantagens comparativas nacionais. O objectivo é criar melhores condições para competir, para vencer a concorrência, seja na disputa de um lugar ou emprego numa empresa, ou na colocação de um produto ou serviço no comércio mundial. Este modelo, levado ao extremo no sistema capitalista, proporcionou desenvolvimentos ímpares na História da Humanidade. Contudo, ao acentuar a selecção dos mais capazes produziu igualmente a exclusão, ao fomentar a inovação e a criatividade incentivou o desperdício. Não é, pois, apenas de benefícios ou aspectos favoráveis que é possível (e se deve) falar quando se aborda o tema da competição, existe um outro mundo, não menos impactante, para além dos êxitos que, justamente ou não, lhe são atribuídos.

Para além do sobe e desce das estatísticas e do relativismo que as caracteriza (diferenças de sector para sector, de região para região,...) – quando não mesmo da sua manipulação – importa então considerar pelo menos três níveis na análise da competição e da competitividade:
1.      Quem dita as regras do ‘jogo’ (o ‘jogo competitivo’)
2.      Quem suporta e lhe sofre os efeitos
3.      Que sequelas produz (para além das que a propaganda liberal difunde)
Fixemo-nos, por ora, no primeiro ponto, tentando perceber como é que as regras da competição surgem e quem as produz.

Na competição, como na vida em geral, quem manda são os ‘grandes’, são eles que detêm o poder, ditam as regras e estabelecem as condições para o seu exercício. São os ‘donos da bola’ das brincadeiras de crianças. No que respeita ao denominado ‘desenvolvimento capitalista’, a competição fomentou e produziu sociedades duais, constituídas na sua essência por um centro industrial e tecnologicamente evoluído (o dos grandes operadores, países ou empresas) e uma periferia fornecedora de recursos, materiais e humanos, de pendor mais consumista (pontuada aqui e ali com laivos tecnológicos do centro).

A evolução dos últimos trinta anos, com a ‘desregulação dos mercados’, propiciou (entre outros) dois movimentos essenciais. Por um lado, o dualismo capitalista alastra ao interior das empresas e dos países, extremando as desigualdades sociais. Por outro, a grande Finança assume o controle global das economias, dando lugar à financeirização total das sociedades: tudo se encontra dependente do sector financeiro (e do que nele aconteça), é ele que comanda as necessidades tanto dos povos como dos indivíduos, que regula a produção e o consumo, que dita as regras de convivência social e rege a própria democracia. O comando político deixou de pertencer à democracia institucional transformada em mero auxiliar mediático do poder financeiro.

A captura do Estado pelo poder económico foi expressivamente documentada pelo ‘grande’ Warren Buffett, ao afirmar que ‘é tempo de os políticos pararem de mimar os ricos’! Assim, é difícil de aceitar que o Estado se mantenha neutro no papel de árbitro que é suposto exercer: a sua falta de isenção na definição das regras do jogo tende, aliás, a ser favorecida por elevados níveis de corrupção e excesso de burocracia. Mas mesmo que desempenhasse com isenção e eficiência esse papel, dificilmente o jogo deixaria de estar viciado, pela simples razão de que, quem manda dispõe de outros argumentos (nem sempre legais, quase nunca éticos) para impor os seus pontos de vista e ganhar. O desvelo com que o actual governo mima as empresas e os ricos (na razão directa da sua dimensão e poder económico) e despreza quem ‘apenas’ trabalha é disso boa prova!


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