segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A noite dos sorrisos amarelos

A contagem dos resultados das eleições legislativas trouxe-nos, como de costume, uma noite de sorrisos. Sorrisos amarelos, é verdade, e de variadas tonalidades, ainda assim, sorrisos. Do amarelo canário ao amarelo torrado, todos os partidos se muniram do plástico sorriso das múltiplas vitórias com que os respectivos líderes afivelam o rosto para se explicarem perante o eleitorado – sobretudo o que neles confiou, atribuindo-lhes o seu voto.

Sorriu o PS, que foi o vencedor. Além de ter sido o partido mais votado, venceu ainda as muito baixas expectativas nele depositadas, pois ainda há pouco mais de 15 dias era dado como irremediável derrotado perante a onda crescente de vitória que animava os barões das hostes ‘laranja’, convencidos de que, para o conseguirem, bastava agitar o mal-afamado nome de Sócrates, o de todos os furacões (políticos e pessoais). Mas perdeu a maioria no Parlamento e agora está condenado a arranjos e entendimentos com aqueles desditados partidos não bafejados, como ele, pela fortuna das certezas reveladas, o que não se quadra bem com a matriz política dos últimos 4 anos, muito menos com o perfil autocrático do seu tão amado quanto odiado líder! Sorriso amarelo desmaiado, a pender para o contido desdém.

Sorriu o CDS que, de acordo com o seu líder Paulo Portas, conseguiu atingir os ‘5 objectivos 5’ a que se tinha proposto, incluindo o de se tornar na terceira força do Parlamento, à frente da extrema-esquerda (nas suas próprias palavras). E o de ter alcançado, ao fim de 26 anos (?), uma tão surpreendente quanto cabalística votação de dois dígitos (???). Portas não quis explicar que tal sucesso foi obtido à custa do seu parceiro natural de coligação, que assim lhe ‘foge’ ao aconchego do poder partilhado e, a médio prazo, não segura um resultado que só a inabilidade ‘laranja’ explica – na mesma proporção, aliás, da sua arrebatada demagogia e populismo. Ou adiantar como é que pensa, no imediato e nas actuais circunstâncias, convencer a ala esquerda do PS a aceitá-lo, sem defecções graves (num e noutro). É certo que o obsessivo objectivo do PP (a sigla do partido confunde-se com a do líder) é sobretudo lutar por um lugar no poder, tendo, para isso, há muito abdicado da ideologia e se munido de um pragmático calculismo político de raiz neoliberal. Ainda assim o sorriso amarelo com que se apresentou na ribalta da noite eleitoral aproxima-o bem das suas cores, o amarelo canário.

Sorriu o Bloco, que duplicou a sua representação parlamentar e viu aumentada de forma significativa a representatividade do seu original projecto político no espectro partidário (ultrapassando o granítico PCP) e a credibilidade social das suas propostas. Mas não passou a terceira força parlamentar, defraudando as expectativas criadas. Conjugado com a fraca vitória do PS, também o seu peso político específico se viu desvalorizado pela aritmética eleitoral (o único a tê-lo é o CDS, precisamente a emergente terceira força parlamentar). Mas imagino o alívio de muita gente do Bloco perante este (inesperado) desfecho da noite eleitoral, pois isto significa a manutenção do ‘confortável’ estatuto de partido de protesto, ao menos pelos 4 próximos anos, sem dele depender a obrigação de uma ‘solução governativa estável’, a que se exporia perante a opinião pública no caso de a sua representação vir a fazer maioria com a do PS. Nem a falsa prosápia de Louçã ao anunciar, a despropósito (!), o afastamento da Ministra da Educação (?) consegue ser, à esquerda, o contraponto da falsa humildade reclamada pelo PP na hora de cantar vitória. Sorriso amarelo, portanto, mas se aqui o amarelo também se aproxima do canário, deve-se mais ao realismo das cores do que às propriedades canoras com que o seu propositor as pinta.

Sorriu, a medo, o PCP/CDU, perante a subida de votos e de parlamentares, ainda que desfeito o sonho de uma avalanche eleitoral equivalente à mobilização que consegue nas ruas e em instituições onde a sua presença continua a impor-se de forma determinante. Porventura tão responsáveis pelo erro de cálculo como pelo afastamento dos eleitores. Porque já contará pouco para a aritmética da composição governativa central, da noite eleitoral ficou a promessa de ‘desforra’ já na próxima disputa autárquica. Onde a sua implantação parece tão granítica quanto a sua imagem. Sorriso amarelo, pois, de um amarelo esverdeado, de um verde mais de despeito que de esperança (ou até da sua ‘componente’ ambiental).

Sorriu, enfim, o PSD, pois até os esgares que os principais líderes laranjas afivelaram à medida que iam sendo conhecidos os resultados, dando-o completamente arredado do poder, podem ser tidos como sorrisos. Sorrisos amarelos como os demais – quase tisnados de tão torrados – o certo é que o partido subiu em percentagem e representação parlamentar relativamente à hecatombe das anteriores eleições disputadas pelo Santana. Desta vez, porém, tendo tudo para as ganhar, só a incompetência política própria, a sôfrega ânsia de abocanharem o poder, o venenoso apoio de Cavaco (o beijo da morte?) e a manifesta falta de jeito podem explicar este desaire. Perante tão exangue estafermo, não admira que abutres oportunistas lhe tenham vindo morder as canelas, exaurindo-o ainda mais do magro pecúlio arrecadado e afastando-o da mesa do banquete do poder a que tanto porfiava. Ainda não foi desta que o PSD morreu, mas o cavaquismo, esse, entrou em putrefacção. Tem o que merece.

A realidade, essa, é que não tem razões para sorrir. No fim de contas talvez seja mesmo a única que não sorri. Falo da realidade vivida, não obstante as dificuldades que se antevêem para a eleitoral, face aos resultados de cada formação partidária – e às anunciadas fabulosas revelações (?) de um farisaico e cada vez mais acossado Cavaco, desta feita armado em pindérico defensor de serôdias matronas. Mas o que verdadeiramente irá estar em causa nos próximos tempos pouco terá a ver com estas calculistas contabilidades. A crise – em todas as suas dimensões – de forma alguma se compadece com essas 'minudências'.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

... à inquietante metáfora do colapso da Ilha da Páscoa! – III

A RTP2 voltou a transmitir, na sexta-feira passada, um documentário sobre o colapso ocorrido, após centenas de anos de prosperidade, na polinésica Ilha da Páscoa, a mesma que Jared Diamond, num trabalho de 2005 recentemente editado em Portugal – precisamente intitulado ‘Colapso’ – considera uma metáfora do que pode estar para acontecer à Humanidade, caso não consigamos travar a tempo o processo de destruição acelerada dos recursos naturais do planeta. Processo que começa a manifestar sinais cada vez mais preocupantes de exaustão, que importa saber interpretar, por forma a evitar atingir-se a irreversível situação de colapso. Como os que a presente crise pôs em evidência – mas aos quais ninguém parece dar muita atenção.

É por isso que se torna absolutamente essencial enquadrar os problemas que mais preocupam e pesam na vida das pessoas – a pobreza, o desemprego, as desigualdades, a injustiça,... – no modelo de organização social responsável por tal situação, onde a prosperidade, muito desigualmente repartida, assenta na predação irrestrita de recursos limitados. Nunca como agora o mundo se viu confrontado com tamanho desafio, não obstante a aparente generalizada inconsciência dos riscos que se correm se entretanto nada for feito. Aqui e ali soam alertas, logo ignorados, mas que, se escutados, nos ajudariam a perspectivar melhor a dimensão do problema: o mais recente, do Secretário-Geral da ONU, lança o dramático aviso de que ‘o mundo caminha para o abismo’!

Neste momento a ninguém passará pela cabeça, muito menos em período eleitoral, advogar travar o processo de crescimento económico que a ele conduz, até pelos efeitos induzidos numa das áreas que mais afecta as pessoas, a luta contra o desemprego. Mas não se afigura incompatível apostar, nesta conjuntura, nos temas ‘quentes’ da actualidade e, em simultâneo, nos que, mais estratégicos, irão moldar o futuro. Nesse sentido, apenas se ouviu Joana Amaral Dias, à margem da campanha, falar da necessidade de se construir um novo modelo de sociedade, contrário ao ‘oferecido pela globalização’, implicando um novo paradigma social baseado na ‘justiça fiscal e na previdência social’, exigindo outras políticas de educação, saúde e justiça.

Nada de novo, é certo. De uma forma ou de outra, este é um tema recorrente na esquerda, pode até ser considerado como a referência que, de algum modo, a separa da direita – a oposição entre a estabilidade social (a defesa do ‘status quo), em contraponto com a mudança, por uma sociedade mais justa, mais igual, mais solidária – aquilo que a direita depreciativamente apelida de ‘utopia esquerdista’.

O programa do Bloco aposta claramente na mudança e a isso se refere com grande precisão e pormenor. Precisamente a exposição que o tornou vítima do aproveitamento demagógico dos opositores, variando entre a caricatura, irritante mas inofensiva e a acusação de um tenebroso ataque (ainda por cima escondido) às classes médias, em resultado da discussão em torno dos benefícios fiscais para onde foi arrastado, em detrimento da discussão da política fiscal global – como era oportuno que se fizesse. Talvez por isso valha a pena reflectir sobre a estratégia de comunicação adoptada, uma vez que o resultado obtido certamente não corresponde ao pretendido.

Ainda assim o programa do BE apresenta-se algo fragmentado (os temas do ambiente e da sustentabilidade são tratados como um capítulo à parte, em lugar de cruzarem todas as áreas), demasiado concentrado na preocupação pelo diagnóstico às políticas desenvolvidas pelo governo PS (a meu ver apenas indispensável como enquadramento), carecendo, porventura, de uma melhor definição da sua estratégia enquanto ‘alternativa socialista’ que pretende ser, face ao seu programa político imediato. Que se reflectiu em algumas ambiguidades e deu origem a outros tantos equívocos: o já referido programa fiscal, as nacionalizações, o tema da governabilidade,...

Sobre este último e o dilema actual do BE (manter o 'confortável' estatuto de partido de protesto, que lhe tem proporcionado notável sucesso, ou assumir as responsabilidades decorrentes do ‘respeitável’ patamar eleitoral já atingido): os resultados destas eleições podem bem confrontar um partido, até agora ‘apenas’ orientado para o exercício de funções críticas ‘externas’ ao sistema, com a exigência de uma prática pedagógica - inerente ao papel que um tal partido representa numa sociedade em mudança (em transição para onde?) - no desempenho de funções no seu ‘interior’ (executivas ou outras, mais cedo ou mais tarde terá de ser assumido).
A responsabilidade da transição de dois deputados (governo de Guterres) para duas dezenas (como se prevê agora), não se resume ‘apenas’ ao número.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

...à ausência de políticas estratégicas nesta arrastada campanha eleitoral... – II

Tenho dificuldade em acompanhar e concentrar-me nos temas desta campanha. Ou por, face à magnitude do que está em causa, me parecerem destituídos de sentido – como o da liberdade de informação, a propósito do desajeitado episódio da destemperada Manuela (a Moura Guedes, claro) – ou pelo tratamento enviesado que deles é feito – da crise financeira à economia em geral, da política fiscal às políticas sociais, do emprego aos investimentos públicos – onde o TGV parece ser a ‘marca de água’ das escolhas principais a fazer nesta emergência!

As vagas referências que se vão fazendo à crise e os temas que dela se reclamam, não surgem no ambiente propício a uma análise rigorosa sobre as suas causas e as mudanças necessárias e urgentes que dela decorrem. As soluções para a ultrapassarem, resultam sobretudo da premência imposta pelas necessidades imediatas a satisfazer (mesmo se muitas dessas necessidades são, em boa medida, uma criação do sistema), pelo que não espanta todas elas adoptarem o mesmo modelo: incremento do consumo por via do aumento das disponibilidades das famílias, esperando que, deste modo, se relance a produção e a actividade das empresas, assim se garantindo o emprego.

Contudo, torna-se muito limitativo, para não dizer mesmo errado, reduzir a solução para a crise à retoma da expansão económica, mesmo se o que a determina seja o magno problema do combate ao desemprego e a criação de melhores condições de vida. Porque é exactamente o modelo de desenvolvimento que permite tais distorções que está em causa e deve ser discutido. Eu sei, todos sabem, passado o susto inicial subsequente ao desencadear de uma crise que chegou a ameaçar abalar o conforto alcançado pelas sociedades actuais, ninguém estará muito predisposto a ouvir falar de mudanças radicais no seu modo de vida. E, no entanto, tal debate parece inevitável, provavelmente já virá a sê-lo mais imposto pelas circunstâncias que pelas agendas políticas.

Na campanha, entretanto, dominam questões marginais (ainda que importantes, como é o ‘TGV’ ou a trama urdida em torno de eventuais ‘escutas em Belém’ – ‘Maquiavel à moda de Boliqueime’?), ou as questões de carácter (credibilidade,...) certamente a ter na devida conta, dado o seu valor instrumental. No caso do programa económico do PS, por exemplo (ou mesmo em outras áreas), não parece difícil, a qualquer das esquerdas, manifestar acordo a muitos dos objectivos e até medidas nele expressos: investimento público, apoio às PME’s (base para o relançamento do emprego), energias renováveis, economia social,... Não fora a recente experiência governativa alertar-nos para o valor relativo das intenções proclamadas e talvez o argumento de Sócrates da falta de credibilidade dos anteriores governos PSD ganhasse então outra força. Tanto mais que o mérito partidário do deprimente catálogo de intenções a que se resume o programa do PSD – esconde mais do que revela! – vai de par com o demérito político de quem, nas circunstâncias, fez da Verdade a sua bandeira!

Mas não é isto que configura as grandes opções estratégicas, consequentemente não é aqui que o debate político se deve centrar. Importaria então, antes de mais, caracterizar devidamente a natureza e profundidade da actual crise global (mundial) e geral do sistema (económica, política, social,...), pois até pelos volumosos meios financeiros exigidos para a suster, se percebe não ser esta uma simples crise conjuntural, em busca dos periódicos reajustamentos dinâmicos inerentes ao desenvolvimento do capitalismo (criação – destruição). Só assim seria possível estabelecer as medidas adequadas a enfrentá-la com maior eficácia e lograr a sua recuperação. Importaria, pois e em última análise, fazer a pedagogia dos temas essenciais já atrás referidos.

Mais que as circunstâncias próximas que a precipitaram – a crise financeira – torna-se forçoso atender às suas causas profundas, que radicam, como já se disse, na natureza insaciável de um sistema que necessita do crescimento contínuo para sobreviver – não se importando de, com isso, pôr em risco a sua própria continuidade como modelo (fraca perda constituiria!), mas, sobretudo, ameaçar o nosso futuro colectivo!
(...)

sábado, 19 de setembro de 2009

Da ‘persistente’ crise económica permanente... – I

Faz agora um ano que estalou a crise que pôs o mundo à beira de uma catástrofe sem precedentes. A falência do Lehmans – depois da salvação ‘in extremis’ de alguns outros ‘monstros’ financeiros – desencadeou, por todo o ‘mundo ocidental’, uma tão imprevista quanto imparável onda de desconfiança na consistência do sistema e na sua capacidade para resistir à avalanche de derrocadas financeiras que se anunciavam eminentes. Valeu, na emergência, a avisada intervenção dos poderes públicos, dos EUA à UE, do Japão à China, através de colossais e nunca antes sonhados programas de apoios financeiros, com o dinheiro dos contribuintes a servir de bóia de salvação a instituições contaminadas pelos, só então descobertos (?), ‘activos tóxicos’!

O susto era tão grande, a magnitude dos problemas apresentava-se tão fora de controle que, em Outubro de 2008, o Tesouro norte-americano aventava a hipótese de ser necessário proceder à... ‘nacionalização’ da Banca (!!!) – mesmo que o fosse apenas para, recuperado o susto e o desaire financeiro, voltar aos seus anteriores donos! Em 10 de Novembro, os ministros das Finanças da UE acordavam, entre outras medidas, ‘interditar as praças financeiras ‘off-shores’, a suprema expressão de um capitalismo criativo e desregulado que tinha sido, com devoção e sem grande contestação, a única orientação económica admitida no ‘mundo ocidental’, de repente órfão em pânico!

Passado um ano sobre o início do descalabro, a perspectiva que hoje se tem da ‘crise’ apresenta-se algo contraditória: se, por um lado, começa a desenvolver-se a ideia, fortemente apoiada nos persistentes comentários dos opinadores habituais, de que, afinal, tudo isto não passou de mais uma das perturbações a que o sistema se encontra sujeito periodicamente, por outro, a crise mantém-se e ameaça até aprofundar-se – alguns dos mais eminentes economistas têm alertado para a hipótese plausível do seu indefinido prolongamento (em ‘W’, afirma Stiglitz, perspectivando que a uma melhoria temporária se siga nova queda e assim sucessivamente). O importante, para o discurso oficial, é que a crise está à beira de ser ultrapassada..., mesmo que isso acabe por se traduzir apenas no seu adiamento para uma data posterior, o momento, por exemplo, em que os ingentes e diversificados apoios se esgotarem e os planos forem desactivados – é impensável poderem durar sempre... Susto passado, perigo esquecido!

Na actual campanha eleitoral ou fora dela, ninguém parece muito interessado em debater ou sequer aflorar os temas essenciais por trás da crise financeira (e que, em última análise, melhor a explicam): a profunda degradação do ambiente, a intensa predação dos recursos naturais (e o seu inevitável esgotamento), o crescimento económico insustentável... Porque isso equivaleria a pôr em causa os próprios alicerces de um sistema que só sobreviverá enquanto lhe for possível ignorar aqueles problemas, enfrentá-los representará eliminar a fonte que o sustenta, pois que a sua energia, o seu sopro vital radica precisamente na expansão contínua da economia. Não obstante algumas tímidas medidas no sentido da recuperação ambiental, o certo é que tudo é feito por forma a não se pôr em causa o crescimento e o lucro das empresas, o nervo, afirmam, da nossa presente prosperidade que ninguém arrisca contestar. Por vezes com a marca improvável de origens menos esperadas (e algo obscuras, como o recente anúncio da introdução de uma ‘taxa do carbono’ por Sarkozy, em França).

Mais ainda, as soluções para a crise são sempre equacionadas como se estas se destinassem e fossem aplicadas apenas no denominado ‘mundo desenvolvido ocidental’, onde floresce o capitalismo avançado do ‘Fim da História’. Pretende ignorar-se que, com a globalização, a superação dos estrangulamentos que a provocaram se encontra fortemente condicionada por tudo o que ocorra no resto do mundo e que, por isso mesmo, qualquer medida tomada num sítio, tem reflexos e provoca ricochete em todos os outros (em graus diversos). O próprio sistema capitalista deixou de ter controle na sua gestão, o gangsterismo tomou conta das leis do mercado (no desenvolvimento lógico, aliás, da sua própria racionalidade!) – e qualquer tentativa de o espartilhar, regulamentando-o, parece condenada ao fracasso.

Esta é, afinal, a lógica imposta pela globalização. Pelo menos, por enquanto.
(...)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O mundo está a avançar para o abismo!!!

O insensato (ou perigoso?) ‘alarmista’ que ousou proferir tal enormidade, a propósito dos efeitos das alterações climáticas, só pode ter sido algum tresloucado esquerdista ou descontrolado ambientalista (admitindo que esquerdista e ambientalista não comem do mesmo prato), em qualquer dos casos um irresponsável. Mas não, esta frase surgiu do sítio porventura mais improvável de aparecer, dadas as especiais responsabilidades do seu autor na compatibilização de interesses a nível mundial.
Reproduzo da edição digital do ‘Público’ de hoje (03.09.09):

O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, alertou hoje na Conferência climática mundial, em Genebra, que o mundo “está a avançar para o abismo” devido à intensificação do fenómeno das alterações climáticas.
Temos o pé pregado a fundo no acelerador e dirigimo-nos para o abismo”, disse Ban Ki-moon na 3ª conferência da ONU sobre Clima, a decorrer em Genebra de 31 de Agosto a 4 de Setembro.
O secretário-geral da ONU, que chegou do Árctico onde constatou os impactos das alterações climáticas, lamentou que, durante anos, os cientistas tenham sido acusados de serem alarmistas. “Mas os verdadeiros alarmistas são aqueles que dizem que não podemos agir pelo clima porque isso iria abrandar o crescimento económico”.
Não têm razão. As alterações climáticas podem desencadear um desastre maciço”, acrescentou, preocupando-se com os milhões de pessoas que vivem nas zonas costeiras um pouco por todo o mundo, ameaçadas com a subida do nível médio do mar. “O que vão eles fazer quando as tempestades empurrarem o mar terra adentro? Para onde hão-de ir?
.'

Virou-se o bico ao prego! Até aqui eram apodados de alarmistas, ‘os cientistas’ que alertassem para os crescentes impactos das alterações climáticas, agora é o próprio responsável máximo pela mais importante instituição mundial que decide juntar-se aos ‘alarmistas’ e afirmar que o mundo ‘está a avançar para o abismo’ (!) – caso não tiremos o pé do acelerador do crescimento. Num mundo ‘viciado’ em crescimento económico (as razões últimas para tal, já por diversas vezes aqui expostas, estão longe das ‘necessidades por satisfazer’, o suposto objecto da economia, pois não podem ser dissociadas de um sistema movido/dirigido pelo 'motor' da valorização da mercadoria), não consigo antecipar a reacção da maioria das pessoas. Até porque, para muita gente (porventura a maioria), o episódio da Manuela (a outra, a Moura Guedes) é que constituiu a verdadeira ‘cacha’ do dia (nas próprias palavras da dita)! Dá que pensar!

Ora, todos os políticos de todas as políticas têm como principal objectivo, na área económica e social, demonstrarem o maior empenhamento e apresentarem propostas no sentido do desenvolvimento. E quando falam de desenvolvimento falam, antes de mais, de crescimento económico, da criação das condições que a ele conduzam e da forma mais rápida possível de lá chegarem, pois só assim garantem a confiança e a fidelidade dos seus eleitores. Estabeleceu-se mesmo uma espécie de ‘maratona’ – ou (para usar a imagem de Ban Ki-moon do ‘acelerador’) de Fórmula 1’ – para ver quem cresce mais, pois só os mais rápidos, os que mais aceleram, conseguem vencer (tal como nas empresas).

Agora, porém, no chocante alerta do secretário-geral da ONU, acelerar continuamente o crescimento económico, pode bem estar a conduzir o mundo para o abismo!

Eu sei, todos o sabem, o tema do crescimento (e por maioria de razão, o do desenvolvimento) não pode ser reduzido ao que foi dito, nem sequer se pode dizer que tenha sido aqui abordado. Apenas fica o registo de alguns desencontros de um mundo tão multifacetado quanto inesperado, mas em que dá gosto viver. Pelo menos, por enquanto.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Equívoco ou paradoxo: aumentar o consumo para sair da crise? Qual crise?

Consigo compreender a insistência com que a generalidade dos comentadores e partidos da esquerda vêm procurando demonstrar a necessidade de reforçar a procura interna como forma mais viável (ou mesmo a única) para, no imediato, se relançar a economia, se acabar com o flagelo do desemprego, enfim, se sair da crise – com isso apostando e propondo medidas que propiciam o aumento mais rápido do consumo, o que contribui para o inevitável agravamento das precárias condições materiais que sustentam a economia global actual e, consequentemente, a queda, a prazo, em novas crises cada vez mais profundas.

De tal modo que começa a ser difícil de aceitar e até compreender, então, que os mesmos comentadores e partidos de esquerda não se disponham a fazer a pedagogia do devido enquadramento destas opções, dedicando, ao menos, uma palavra de alerta para a questão da insuportável pressão sobre os recursos (e do seu inevitável esgotamento) a que tal solução, se prolongada no tempo, inevitavelmente conduz para, logo que estabilizada a economia e a crise ultrapassada, seja possível enveredar por outros rumos mais sustentáveis que os até agora percorridos – que, a manterem-se, colocam em risco o próprio futuro ‘desta’ civilização.

Torna-se sobretudo incompreensível que as soluções propostas para se ultrapassar a crise, insistam no mesmo tipo de medidas que a ela conduziram (à estafada solução liberal da procura externa, via exportações, sobrepõe-se agora a solução keynesiana da procura interna), acabando por se confundir, afinal, com as causas profundas que a produziram: na sua raiz, o (incontestado?) paradigma produtivista/consumista, que ameaça descambar num beco sem saída, precisamente por falta de recursos (que não, dizem os optimistas inveterados, crentes nas capacidades ilimitadas da ciência para nos tirar do aperto!). Todos parecem muito preocupados em repor os ‘mecanismos normais’ (!) da economia, ignorando as repetidas ameaças de várias rupturas – de que a financeira foi apenas a expressão mais visível – e cujos afloramentos estruturais principais se detectam a nível da escassez do emprego e dos recursos.

Não os recursos entendidos na acepção manhosa do calculista Pina Moura, para quem o mais importante se centra, agora e sempre, na obsessiva preocupação liberal pelo déficit das contas públicas. Ou mais propriamente, pelo Estado mínimo, que a tanto se reduz o objectivo, dele e de quantos o acompanham, por trás de tal obsessão: o tão propalado equilíbrio é para obter à custa, como de costume, da componente laboral do investimento, ou seja, da desvalorização do trabalho – não obstante todas as afirmações em contrário. Elucidativo o percurso deste personagem – da militância no mais puro e duro estatismo, ao deslumbramento serôdio por um liberalismo cediço – cumprindo, pois e com assinalável sucesso, diga-se, o caminho habitual do arrivista político!

E tudo então parece resumir-se em saber (esperemos que não da maneira mais dolorosa) se aquela aparente contradição se pode reduzir apenas a mais um momentâneo paradoxo, daqueles que a ‘ciência económica’ assim identifica e pretende explicar (produtividade, poupança,...) – e se propõe resolver oportunamente: pelo recurso ao há muito esgotado 'reforço das procuras' ?; ou se, pelo contrário, ‘ciência’ e ‘cientistas’ não estarão a laborar num perigoso equívoco – cujos efeitos todos nós, mais cedo ou mais tarde, viremos a sentir. Ou a sofrer.