quinta-feira, 25 de julho de 2013

Primaveras violentas

E, de repente, o Brasil virou problema. Sem que nada o fizesse prever e onde menos seria de esperar, eis que o povo do futebol invadiu as ruas, não para festejar, mas para contestar os gastos com o... futebol, com as milionárias despesas do Mundial do próximo ano. Depressa a contestação alastrou a outros sectores onde o povo intuiu existirem gastos excessivos, desproporcionados relativamente à persistência das miseráveis condições de vida da maioria dos brasileiros, carentes de serviços de saúde, educação, segurança,... Nesta onda avassaladora de protestos, nem a viagem do Papa de Roma escapou e, incrédulos, assistimos a violentas manifestações de contestação às despesas com essa deslocação por parte do povo... mais católico do Mundo!

A interrogação impõe-se, óbvia: o que leva, afinal, um país aparentemente bem encaminhado do ponto de vista económico e político, com os principais indicadores sociais e o nível de vida da última década a crescerem a ritmo bem superior às das décadas precedentes, melhor posicionados no confronto com outros países em igual patamar de desenvolvimento, a enveredar pela via da contestação generalizada para afirmar as suas exigências? A utilizar a via do protesto violento em lugar dos canais institucionais, precisamente num país em que as estruturas democráticas de expressão pareciam consolidadas, sobretudo após os anos de ouro de Lula?

O que esta explosiva onda de protestos vem revelar é o profundo mal-estar que lavra na sociedade brasileira. Estes protestos, por enquanto localizados e dirigidos a alvos específicos, têm em vista provocar uma mudança na percepcionada situação insustentável de miséria em que vivem milhões de pessoas por contraste com a opulência exibida por uma escassa minoria. Procura-se atingir uma ainda mal definida origem do ‘mal’, que os protestos identificam com o poder político, simbolizado nas suas obras mais emblemáticas e de fachada. Daí a fúria das massas voltar-se tanto para os estádios de futebol como para o palanque onde o Papa irá dirigir-se aos jovens. Tudo soa a desperdício perante as enormes carências sentidas pelas pessoas, tudo suscita a sua ira e protesto.

O que se passa agora no Brasil não é, na substância, muito diferente do que já aconteceu noutras paragens. Das ‘primaveras árabes’ (incluindo a mais recente resistência turca pela secularização), às ainda dispersas lutas dos ‘indignados’ dos países do Sul da Europa (não por acaso, a bacia do Mediterrâneo), os protestos, mais ou menos violentos, parecem alastrar e os levantamentos ameaçam a estabilidade social e a comodidade das minorias instaladas. Tudo isto, contudo, não passa apenas da parte visível de um problema bem mais vasto e profundo.

Na verdade, o que esta enorme, incontida e cada vez mais ampla explosão de mal-estar expõe é um problema social de dimensões globais, não obstante as suas expressões diferenciadas de acordo com cada situação: na origem de todas elas, como matriz da revolta, a percepção das desigualdades na repartição da riqueza. Mais ainda, a certeza de que essas desigualdades, em lugar de diminuírem como era suposto acontecer face ao constante aumento da riqueza social, têm vindo a aumentar. A consciência crescente destas realidades levará um número cada vez maior de pessoas a revoltar-se e a exigir uma mudança radical, pelo que, o que se passa agora no Brasil tem tendência a estender-se a outras situações e lugares. Mas se a percepção da necessidade da mudança a torna premente (e mesmo inevitável), é ainda cedo para se perceber qual o seu conteúdo e limites.

Porque, importa referi-lo, se a matriz da revolta se encontra na percepção das desigualdades, estas assentam a sua justificação (e perpetuação) no actual modelo de organização social, construído e dominado pelo mercado, ditando a designada organização social de mercado. Isto significa que a mudança exigida só será eficaz se atingir a raiz do problema, quando for atacado o essencial: a mercantilização de todos os aspectos da vida, só possível desmontando o mecanismo social que sustenta o mercado e o impõe como evidência incontestável (a começar pela sua base financeira). Até lá outras revoltas, sob múltiplos pretextos, em muitas outras paragens irão acontecer, num movimento que tornará sobretudo cada vez mais consciente a necessidade dessa mudança radical.

Depois da tragédia grega do Euro ter vindo relembrar a importância libertadora dos cada vez mais esquecidos ‘valores culturais’ (por contraste com a atrofia provocada pelo endeusamento do Euro), descobre-se agora que é no Novo Mundo que, mais uma vez, se abre caminho para um mundo novo, com diversificadas e animadoras experiências de transformação social, naturalmente não isentas de percalços e equívocos. 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O império do ‘faz de conta’: Políticos dissimulados, políticas fracassadas...

Com o tempo e o desenrolar da crise política, tem vindo a ganhar maior significado o gesto de Vítor Gaspar que, ao demitir-se do cargo de Ministro de Passos, considerou indispensável acompanhar essa decisão de uma carta tornada pública (!), contendo as razões para tal atitude, em que assume a responsabilidade pelo incumprimento das metas do déficit e da dívida – o reconhecimento do fracasso das políticas gizadas nesse sentido – admitindo ainda falta de credibilidade e confiança para a necessária inversão dessas políticas. A plêiade de indefectíveis fiéis do credo neoliberal agitou-se num frémito de surpresa, misto de orfandade e traição à causa. A recuperação do fôlego tem sido penosa e a incredulidade reina nas hostes dos judiciosos comentadores, encartados académicos, desinteressados políticos e impolutos banqueiros, a palavra mais ouvida para descrever o estado desta gente tem sido mesmo ‘confusão’.

Essa carta constitui, sem dúvida, a peça central para a explicação da presente crise política. Porque ao confessar o fracasso da política de austeridade – tida, na lengalenga liberal, como o instrumento chave na recuperação da credibilidade do País, essencial para um ambicionado ‘regresso aos mercados’ (!) – o seu principal mentor e obreiro desferiu um golpe fatal na credibilidade e utilidade de tal política. Tão arrasador que deixou os habituais serventuários do regime e demais sequazes deste culto, profundamente abalados nas suas certezas e convicções, incapazes sequer de esconder o desânimo que lhes tolda o denodado proselitismo perante a opinião pública, prejudicando até gravemente a persistente catequese de conformação dos espíritos às directrizes da seita.

Perante este desmoronar de certezas mesmo entre os mais incontestados apoios desta política, o que leva então Passos e o seu núcleo duro (onde se inclui a generalidade dos parlamentares de suporte ao Governo) a insistirem com tanto empenho e descaramento nessas desacreditadas políticas que, numa penada, o ex-Ministro destruiu? A resposta surge na carta do também demissionário Ministro Portas: dissimulação! Passos sabe que a única forma de se manter no poder, custe o que custar, é apresentar-se inabalável nas suas convicções e certezas nos resultados desta política (o ambiente mais favorável, por razões externas), certo de que só assim lhe é possível segurar a rede clientelar de interesses e privilégios a que se encontra ligado. Mas depois do descrédito de ‘tanta convicção’ provocado pela confissão pública daquele seu ex-Ministro, só lhe resta mesmo proceder conforme a conduta ditada pelo seu outro ex-demissionário (?) Ministro, fingir que acredita, ser dissimulado!
 
É nesta trama que o PS se encontra metido. Para já conseguiu resistir – muito por ‘culpa’ da pressão de alguns dos seus notáveis que temiam a ‘pasokisação’ do partido – à negociata em torno de mais ou menos austeridade, rejeitando a fracassada política liberal do ex-Ministro Gaspar, não aceitando integrá-la ou apoiá-la, nem sequer através da abstenção (do faz de conta que não estou cá!). Parecia, pois, que, pelo menos no imediato, não iria embarcar – como em tantas outras vezes no passado, diga-se – neste cada vez mais denunciado jogo da dissimulação política. Mas se assim é, qual a razão da recusa em manter o diálogo com a restante esquerda na busca de uma plataforma comum? Os próximos episódios deverão decerto esclarecer a trama que trama este PS.

O desfecho desta rocambolesca epopeia teve o seu epílogo provisório na decisão do PR em dar à farsa política um novo fôlego, ao confirmar o remodelado Governo de Passos e Portas. Na lógica desencadeada pelo desafio lançado aos partidos subscritores do memorando no sentido de um dramático ‘compromisso de salvação nacional’ (!), impunha-se como única solução coerente a alternativa de dissolução da AR. Pois se o objectivo era a conciliação de posições entre os ‘dois lados’ do memorando, concluindo-se pela sua impossibilidade, era forçoso, sob pena da inutilidade de um tal processo, extrair dele todas as ilações levando-o às últimas consequências. Tal implicaria confirmar a falta de confiança política na proposta de remodelação do Governo de Passos e devolver a palavra aos eleitores, porque são eles que, em última análise, devem decidir. Ao optar em contrário, ficou patente a falta de coerência do Presidente em todo este processo.

A avaliar pelo passado, não custa admitir que, neste PR, a lógica dos interesses prevaleça sobre a lógica da coerência. Trata-se, afinal, do político mais responsável pela frágil situação económica e financeira do País, ao negociar, enquanto 1º Ministro, a destruição da estrutura produtiva nacional por troca com os subsídios fáceis da então CEE (acoplados ao mecanismo que incentiva a dívida interna), em benefício de específicos grupos de interesses e clientelas. É, enfim, o império do faz de conta, da dissimulação na política – em nome do pragmatismo contra os princípios, em prol dos mercados contra as pessoas, na defesa de privilégios particulares contra os interesses gerais.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Austeridade(s)


A propósito do ‘compromisso de salvação nacional’

Nos próximos dias, o País irá ser bombardeado, ainda mais do que já foi, com austeridade. Para já apenas através de declarações, debates e outras proclamações do género em torno do tema. Os resultados de tanta análise, reflexão e preocupação – palavra banalizada de tão repetida! – não se farão esperar, virão logo a seguir. Nada de bom, pois, se prepara para oferecer aos já muito sacrificados portugueses, objecto de todas as experiências académicas que iluminados teóricos e serventuários à medida, assim que tiveram oportunidade, procuraram zelosamente pôr em prática.

Tanta preocupação em torno de um tema que, não fora os nefastos efeitos sobre a vida das pessoas, pouco mais suscitaria que o enfado mediático de uma recorrente banalidade (ainda que ao jeito da sangrenta banalidade dos atentados no Iraque – todos os dias a ‘produzir’ dezenas de vítimas – ou da dramática banalidade da situação grega!), ocorre na sequência de um inesperado repto lançado pelo conjuntural inquilino de Belém. A hirta figura, confrontada com a crítica que o dava já em adiantado estado de letargo face à sua notória imobilidade, decidiu fazer prova de vida e, vai daí, num gesto que apanhou meio mundo desprevenido, ensaiou imprimir um novo impulso no desgastado e pantanoso rumo da política caseira. Chamou-lhe ‘compromisso de salvação nacional’ e, para a sua concretização, convidou os partidos que subscreveram o ‘memorando’, os dois da coligação mais o PS. Os restantes, para o Presidente de todos os portugueses, pouco ou nada contam, por se afirmarem defensores de uma política de recusa e oposta ao ‘compromisso do memorando’!

O teor das já iniciadas negociações que, segundo as intenções proclamadas, deverá conduzir ao solicitado ‘compromisso’, incidirá apenas sobre ‘esta austeridade’. Eventuais divergências entre a coligação no poder e o PS situar-se-ão sobretudo, previsivelmente, a nível do doseamento prescrito das medidas que a materializam. Seria, aliás, deveras surpreendente que outro entendimento surgisse entretanto, por parte do PS, de oposição ao sentido da actual política de austeridade. Na substância, os três estarão de acordo com a prioridade de se salvar o sistema financeiro e que, para tal, é necessário fazer cortes nos salários e pensões (directamente ou por via fiscal), comprimir os serviços sociais públicos (aumentando taxas, reduzindo benefícios), ‘reformar’ o Estado (o que significa sobretudo transferir serviços para os privados)... Discordarão, seguramente, no grau e ritmo adoptados, na extensão dos cortes havidos e na rapidez com que os mesmos foram tomados. E em medidas pontuais de suporte à Banca e aos banqueiros, por forma a atenuar escândalos como o que o Jornal ‘I’ de hoje titulava: ‘Banqueiros portugueses no top europeu dos mais bem pagos’. No final, porém, vingará a decisão que a táctica eleitoral ditar (governo técnico ‘à Monti’?).

De facto, não parece constar das preocupações deste PS (e, portanto, dos negociadores socialistas), pelo menos no conjunto dos quesitos, (1) questionar ‘esta política’ de austeridade por impor a pessoas que nada têm a ver com os desmandos financeiros na origem da crise o ‘compromisso’ do pagamento de uma factura de despesas que não contraíram (não obstante ‘culpas próprias’ por terem sabido aproveitar, por exemplo, a oportunidade dos juros baixos – agido racionalmente do ponto de vista económico, como gostam de verbalizar), (2) denunciar o ‘acordo que criminosamente o certifica e (3) propor uma ‘outra política, apresentando essa factura aos responsáveis pelo regabofe das engenharias financeiras, a matriz do descalabro.

Temos assim que, das três ‘austeridades’ em confronto, uma parece liminarmente arredada da mesa das negociações, a única afinal capaz de, em termos da ética democrática e da razão económica, responder ao impasse criado pela proposta de ‘salvação nacional’ do PR. Mas comporta um risco que nenhum dos três negociadores, comprometidos com o poder (o designado ‘arco governativo’), na prática está disposto a correr (ou sequer de ser acusado): o de contribuir para precipitar a derrocada do sistema social instituído, caso ocorresse a falência do sistema financeiro. Porque a alternativa à austeridade imposta às pessoas (em qualquer das duas versões, a dura ou a suave) passa pela aplicação de medidas de regulação e disciplina de todo o sistema financeiro global, a começar pela imediata extinção dos off-shores. E isso, sabe-se, seria a ruína de muitas das principais instituições financeiras mundiais, que rapidamente arrastariam o conjunto do sistema para a falência.

Aquilo, pois, que se apresenta como eticamente irrepreensível e até economicamente racional (pelo menos do ponto de vista democrático da satisfação do interesse geral), depara com uma impossibilidade inultrapassável na sua execução imediata. Resta saber por quanto tempo mais a realidade permitirá actuar-se (ou será pactuar?) na base do argumento do realismo e pragmatismo para se evitar fazer aquilo que se impõe do ponto de vista ético, democrático e até económico.

domingo, 14 de julho de 2013

‘A hora do mercado’: a política demite-se, resistirá a democracia ?

A inusitada crise política dos últimos dias trouxe importantes novidades à crise global em que o País (e o mundo!) está mergulhado. O anúncio da ‘demissão irrevogável’ do líder de um dos parceiros da coligação no poder, expôs, em público, a irremediável quebra do elo de confiança que aparentemente os unia no propósito firme (?) de executarem o ‘Acordo da Troika’, dando bem a percepção do ponto em que a estabilidade política se encontra e transmitindo aos mercados (como gostam de verbalizar) sinais preocupantes de aumento de risco no seu cumprimento – que a histeria dos comentadores do costume se apressou convenientemente a amplificar. Fica a dúvida sobre qual das chantagens teve maior peso na histórica cambalhota da ‘revogação da demissão irrevogável’: se a nervosa reacção dos ditos mercados, se a pose institucional daquele ‘dissimulado’ líder na sua escalada do poder!

Mas se este episódio, culminando a louca cavalgada de factos políticos de uma semana louca, parece ser o mais relevante na crise da coligação (pelas efeitos na sua continuidade, contribuindo ainda para o aumento do descrédito da política e dos políticos, da descrença na democracia, até do desânimo nas pessoas), não foi, contudo, o determinante nem o de maior peso simbólico no desenvolvimento da crise política e social. Nesta sucessão de acontecimentos, que teve o mérito de revelar, sem subterfúgios, as divergências que se sabia existirem na coligação – mas que o discurso oficial negava ou tentava dissimular – há episódios bem mais decisivos para a compreensão da realidade, seja na avaliação do passado ou na projecção das expectativas. Ou até para se ponderar a coesão da coligação no poder e a previsibilidade dos comportamentos dos seus principais protagonistas.

O mais significativo, como tem vindo a ser destacado, encontra-se no teor da carta de demissão do Ministro das Finanças, pelas razões aduzidas para essa atitude. A confissão de fracasso aí expressa da sua acção política, constitui o libelo acusador mais impiedoso da inutilidade do designado ‘programa de ajustamento’ – a base para a política de austeridade – posto em prática por suposta imposição da troika de financiadores, excelente pretexto para a aplicação de uma política liberal de desvalorização do trabalho e atrofia do Estado Social. É esse documento, mais que qualquer outro facto – incluindo a tábua de salvação entretanto lançada por Cavaco tentando associar o PS ao ‘programa’ – que explica a situação actual de catástrofe social e económica e justifica uma adesão crescente à alternativa de renegociação da dívida (seja qual for a via admitida), até há pouco considerada heresia política.

Contudo, mais que proceder à renegociação da dívida (e ela é indispensável e urgente), importa considerar a renegociação das condições de funcionamento da União Europeia e da participação de Portugal no seu seio. Por razões de princípio, mais do que interesse. Pois começa finalmente a ser claro a impossibilidade de se conciliar o poder democrático com o poder dos mercados: a democracia vive cada vez mais subjugada às regras do mercado, as mais das vezes impostas sob chantagem de um inevitável ‘estado de necessidade’ – a técnica domina a política! Como é por demais sabido, a UE tem vindo a construir-se essencialmente em obediência e de acordo com as regras de mercado. A sua própria génese – e matriz – está no Mercado Comum, não obstante a sua constituição exigir o cumprimento de condições democráticas aos países que o integram, levando ao conflito constitucional crescente de normas democráticas com as regras do mercado: a tentativa de ‘constitucionalização’ de tais normas (como a ‘regra de ouro’ orçamental) tem gerado conflitos políticos e teóricos intensos.

Ao tentar sair do âmbito estrito do Mercado Comum sem adequados mecanismos de compensação para fazer face às diferenças estruturais das economias integradas numa Moeda Única, a constituição da UE agravou as divergências existentes e expôs vulnerabilidades ignoradas no confronto entre essas economias. Foram as condições criadas pelo funcionamento desta UE que determinaram, em boa medida (sem excluir, é certo, excessos e desperdícios internos), o descontrole orçamental e a dívida a que agora se pretende fazer face através das impostas políticas de austeridade – as mesmas que o demissionário ministro Gaspar considerou haverem fracassado. Importa esclarecer que a austeridade, se entendida como sobriedade, devia assumir-se como norma de conduta e não como imposição, mas sabe-se o que a ‘política de austeridade’ implica neste contexto: uma brutal transferência de recursos dos contribuintes para o sector financeiro, posto á beira da falência por práticas especulativas que, não obstante o descalabro a que conduziram, estão longe de ter sido irradiadas.

Resta, para já, a certeza da renegociação da dívida – cada vez mais próxima de uma reestruturação, a dúvida subsiste apenas quanto ao montante a abater; a par da incerteza sobre a alteração das regras de funcionamento desta insustentável UE – revisão do papel do BCE, reforço do Estado Social, política fiscal comum,... ou implosão do Euro! Resta saber até onde os Estados conseguem afirmar a sua soberania perante o poder deletério dos mercados, até quando a democracia será capaz de lhes resistir. 

terça-feira, 2 de julho de 2013

Sobre a Greve Geral

O balanço da Greve Geral de 27 de Junho não pode ficar confinado aos rituais do costume: de um lado o Governo desvalorizando a dimensão da seus efeitos, do outro os Sindicatos enfatizando os sectores onde ela mais se fez sentir. Ou às já habituais ‘tiradas parvas’ oriundas do Governo – na esteira da lendária ‘intentona dos pregos’ do fogoso Ângelo Correia, o ‘padrinho’ desta pútrida cáfila, agora, parece, já arrependido e em purga apressada – desta feita bem mais prosaicas como a de que o ‘país precisa é de trabalho’ (a sério? e o desperdício de mais de 1 milhão de desempregados?) ou que, afinal, o ‘país não parou’ (tal como o tempo, também não parou...).

Para além da recorrente e deprimente caricatura expressa na hipocrisia dos que manifestando acordo e até apoio ao ‘inalienável’ direito à Greve em geral, estão sempre contra ‘esta’ greve em particular (pelo momento económico, pela oportunidade política, pelos prejuízos causados aos utentes, por,..., por,..., por...), importa sobretudo destacar, na altura de fazer o balanço, as motivações por trás desta paralisação, avaliar a eficácia desta luta, hoje, no contexto social e político actual, aferir o que determina (ou condiciona) a adesão ou oposição à mesma, considerar a percepção das pessoas sobre a sua utilidade. E, na sequência, se possível, ponderar alternativas (e a sua viabilidade no conjunto das práticas sociais) às tradicionais formas de luta sindical. Tarefa tanto mais urgente quanto escassa a paciência dos excluídos para aguentar o desespero crescente. Projecto estimulante, mas de concretização seguramente difícil e necessariamente morosa.

As mais das vezes – intui-se – estas atitudes são determinadas por posições preconcebidas, em função de uma ideologia ou ligação partidária. Pelo menos admite-se que tal aconteça naquele núcleo mais restrito mas determinante no sucesso ou insucesso deste tipo de lutas. Desta vez, porém, a adesão à greve (dos que nela participaram e dos que a ela deram o seu apoio, mesmo não a tendo realizado, por medo ou por razões económicas) aparece sobretudo motivada pelo grande mal-estar social que atravessa toda a sociedade (e que parece querer explodir, sob pretextos diferentes, um pouco por todo o lado). Assume sobremaneira o valor simbólico de um grito de revolta que espera ser ouvido, encontrar tradução na prática política. Contudo, o poder, escudado nos compromissos externos de uma ‘troika’ em decomposição, mantém-se irredutível na sua orientação, fechado no seu reduto ideológico, obstinado na sua cruzada sectária. Já só entenderá mesmo a linguagem da revolta, resta saber quando e em que condições ela ocorrerá.

Para já, no final de mais uma jornada, resta o cansaço: antes de mais, o enorme cansaço das mentiras dos políticos, das políticas falhadas, da austeridade inútil, da recessão infinda, da precariedade laboral, das promessas não cumpridas, da destruição da estrutura produtiva, das redes do poder corrupto – sobretudo da impunidade do poder financeiro, principal causa da crise – , da vida sem presente nem futuro; mas também um certo cansaço subsequente ao vazio que surge no termo de cada nova luta (greve ou manifestação), que se traduz no lento mas desgastante acumular de frustrações pela sensação crescente de inutilidade deste tipo de esforços.

A situação actual da maioria das pessoas, porém, mostra-se de tal ordem aviltada, que a indignação que transpira de cada acto do seu quotidiano faz supor aguardarem apenas por um pretexto para a violência extravasar. Sobretudo à medida que vão tomando consciência da verdadeira origem da crise que se disse ter acontecido por culpa própria – por se ter vivido acima das possibilidades – mas que hoje se sabe ter sido gerada em esconsas redes mundiais de especulação financeira, a coberto de uma pretensa engenharia de sofisticados produtos (produtos estruturados, derivados,...!) que, valendo-se da ganância, serviram para construir, sobre o engano de milhares de incautos, o luxo de vidas exclusivas, até agora inamovíveis, não obstante declarações em contrário.

É esta rede tentacular, que está longe, pois, de ter sido desmantelada, ou sequer controlada, que mais importa desmascarar, a nível global e nos dois planos: insistente divulgação da verdadeira origem da crise, ou seja, o casino em que se transformou o sistema financeiro desregulado, com a conivência e o benefício da política; denúncia das infames condições de funcionamento dos artífices da crise, desde as inalteradas práticas financeiras baseadas nos famigerados off-shores, às remunerações milionárias a que se atribuem os seus dirigentes (indexadas aos resultados de tais práticas, portanto, viciadas por natureza) – tanto na manutenção dos privilégios obtidos de forma capciosamente fraudulenta, como na sua insustentável (e criminosa) continuidade actual.

Talvez concentrando a atenção em alvos restritos visando acertar onde mais dói ao sistema, ajude a construir-se uma alternativa social capaz de se opor à impunidade de que os detentores do poder, político e económico, actualmente gozam, em benefício próprio e da escassa minoria que servem. O que exige uma cada vez mais urgente coordenação de esforços, a nível europeu e mundial.