A propósito do ‘compromisso de salvação nacional’
Nos próximos dias, o País irá ser bombardeado, ainda mais
do que já foi, com austeridade. Para já apenas através de declarações, debates
e outras proclamações do género em torno do tema. Os resultados de tanta
análise, reflexão e preocupação – palavra banalizada de tão repetida! – não se
farão esperar, virão logo a seguir. Nada de bom, pois, se prepara para oferecer
aos já muito sacrificados portugueses, objecto de todas as experiências académicas
que iluminados teóricos e serventuários à medida, assim que tiveram
oportunidade, procuraram zelosamente pôr em prática.
Tanta preocupação em torno de um
tema que, não fora os nefastos efeitos sobre a vida das pessoas, pouco mais
suscitaria que o enfado mediático de uma recorrente banalidade (ainda que ao
jeito da sangrenta banalidade dos atentados no Iraque – todos os dias a
‘produzir’ dezenas de vítimas – ou da dramática banalidade da situação
grega!), ocorre na sequência de um inesperado repto lançado pelo conjuntural
inquilino de Belém. A hirta figura, confrontada com a crítica que o dava já em
adiantado estado de letargo face à sua notória imobilidade, decidiu fazer prova
de vida e, vai daí, num gesto que apanhou meio mundo desprevenido, ensaiou
imprimir um novo impulso no desgastado e pantanoso rumo da política caseira.
Chamou-lhe ‘compromisso de salvação nacional’ e, para a sua
concretização, convidou os partidos que subscreveram o ‘memorando’, os dois da
coligação mais o PS. Os restantes, para o Presidente de todos os portugueses,
pouco ou nada contam, por se afirmarem defensores de uma política de recusa e
oposta ao ‘compromisso do memorando’!
O teor das já iniciadas
negociações que, segundo as intenções proclamadas, deverá conduzir ao solicitado
‘compromisso’, incidirá apenas sobre ‘esta austeridade’.
Eventuais divergências entre a coligação no poder e o PS situar-se-ão
sobretudo, previsivelmente, a nível do doseamento prescrito das medidas que a
materializam. Seria, aliás, deveras surpreendente que outro entendimento
surgisse entretanto, por parte do PS, de oposição ao sentido da actual política
de austeridade. Na substância, os três estarão de acordo com a prioridade de se
salvar o sistema financeiro e que, para tal, é necessário fazer cortes nos
salários e pensões (directamente ou por via fiscal), comprimir os serviços
sociais públicos (aumentando taxas, reduzindo benefícios), ‘reformar’ o Estado
(o que significa sobretudo transferir serviços para os privados)...
Discordarão, seguramente, no grau e ritmo adoptados, na extensão dos cortes
havidos e na rapidez com que os mesmos foram tomados. E em medidas pontuais de
suporte à Banca e aos banqueiros, por forma a atenuar escândalos como o que o
Jornal ‘I’ de hoje titulava: ‘Banqueiros portugueses no top
europeu dos mais bem pagos’. No final, porém, vingará a decisão que a
táctica eleitoral ditar (governo técnico ‘à Monti’?).
De facto, não parece constar das
preocupações deste PS (e, portanto, dos negociadores socialistas), pelo menos
no conjunto dos quesitos, (1) questionar ‘esta política’ de
austeridade por impor a pessoas que nada têm a ver com os desmandos
financeiros na origem da crise o ‘compromisso’ do pagamento de uma factura de
despesas que não contraíram (não obstante ‘culpas próprias’ por terem sabido
aproveitar, por exemplo, a oportunidade dos juros baixos – agido racionalmente
do ponto de vista económico, como gostam de verbalizar), (2) denunciar o ‘acordo’
que criminosamente o certifica e (3) propor uma ‘outra política’,
apresentando essa factura aos responsáveis pelo regabofe das engenharias
financeiras, a matriz do descalabro.
Temos assim que, das três
‘austeridades’ em confronto, uma parece liminarmente arredada da mesa das
negociações, a única afinal capaz de, em termos da ética democrática e da razão
económica, responder ao impasse criado pela proposta de ‘salvação nacional’ do
PR. Mas comporta um risco que nenhum dos três negociadores, comprometidos com o
poder (o designado ‘arco governativo’), na prática está disposto a correr (ou
sequer de ser acusado): o de contribuir para precipitar a derrocada do sistema
social instituído, caso ocorresse a falência do sistema financeiro. Porque a
alternativa à austeridade imposta às pessoas (em qualquer das duas versões, a dura
ou a suave) passa pela aplicação de medidas de regulação e disciplina
de todo o sistema financeiro global, a começar pela imediata extinção
dos off-shores. E isso, sabe-se, seria a ruína de muitas das principais
instituições financeiras mundiais, que rapidamente arrastariam o conjunto do
sistema para a falência.
Aquilo, pois, que se apresenta como eticamente irrepreensível e até
economicamente racional (pelo menos do ponto de vista democrático da satisfação
do interesse geral), depara com uma impossibilidade inultrapassável na sua
execução imediata. Resta saber por quanto tempo mais a realidade permitirá
actuar-se (ou será pactuar?) na base do argumento do realismo e pragmatismo para se
evitar fazer aquilo que se impõe do ponto de vista ético, democrático e até
económico.
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