A inusitada crise política dos
últimos dias trouxe importantes novidades à crise global em que o País (e o
mundo!) está mergulhado. O anúncio da ‘demissão irrevogável’ do líder de
um dos parceiros da coligação no poder, expôs, em público, a irremediável
quebra do elo de confiança que aparentemente os unia no propósito firme (?) de
executarem o ‘Acordo da Troika’, dando bem a percepção do ponto em que a
estabilidade política se encontra e transmitindo aos mercados (como gostam de
verbalizar) sinais preocupantes de aumento de risco no seu cumprimento – que a
histeria dos comentadores do costume se apressou convenientemente a amplificar.
Fica a dúvida sobre qual das chantagens teve maior peso na histórica
cambalhota da ‘revogação da demissão irrevogável’: se a nervosa
reacção dos ditos mercados, se a pose institucional daquele
‘dissimulado’ líder na sua escalada do poder!
Mas se este episódio, culminando
a louca cavalgada de factos políticos de uma semana louca, parece ser o mais
relevante na crise da coligação (pelas efeitos na sua continuidade,
contribuindo ainda para o aumento do descrédito da política e dos políticos, da
descrença na democracia, até do desânimo nas pessoas), não foi, contudo, o
determinante nem o de maior peso simbólico no desenvolvimento da crise
política e social. Nesta sucessão de acontecimentos, que teve o mérito
de revelar, sem subterfúgios, as divergências que se sabia existirem na
coligação – mas que o discurso oficial negava ou tentava dissimular – há
episódios bem mais decisivos para a compreensão da realidade, seja na avaliação
do passado ou na projecção das expectativas. Ou até para se ponderar a coesão
da coligação no poder e a previsibilidade dos comportamentos dos seus
principais protagonistas.
O mais significativo, como tem
vindo a ser destacado, encontra-se no teor da carta de demissão do Ministro
das Finanças, pelas razões aduzidas para essa atitude. A confissão de
fracasso aí expressa da sua acção política, constitui o libelo acusador
mais impiedoso da inutilidade do designado ‘programa de ajustamento’ – a
base para a política de austeridade – posto em prática por
suposta imposição da troika de financiadores, excelente pretexto para a
aplicação de uma política liberal de desvalorização do trabalho e atrofia do
Estado Social. É esse documento, mais que qualquer outro facto – incluindo a
tábua de salvação entretanto lançada por Cavaco tentando associar o PS ao ‘programa’
– que explica a situação actual de catástrofe social e económica e justifica
uma adesão crescente à alternativa de renegociação da dívida
(seja qual for a via admitida), até há pouco considerada heresia política.
Contudo, mais que proceder à
renegociação da dívida (e ela é indispensável e urgente), importa considerar a renegociação
das condições de funcionamento da União Europeia e da participação de
Portugal no seu seio. Por razões de princípio, mais do que interesse. Pois
começa finalmente a ser claro a impossibilidade de se conciliar o
poder democrático com o poder dos mercados: a democracia vive cada vez mais
subjugada às regras do mercado, as mais das vezes impostas sob chantagem de um
inevitável ‘estado de necessidade’ – a técnica domina a política! Como é por
demais sabido, a UE tem vindo a construir-se essencialmente em obediência e de
acordo com as regras de mercado. A sua própria génese – e matriz – está no
Mercado Comum, não obstante a sua constituição exigir o cumprimento de
condições democráticas aos países que o integram, levando ao conflito
constitucional crescente de normas democráticas com as regras do
mercado: a tentativa de ‘constitucionalização’ de tais normas (como a ‘regra de
ouro’ orçamental) tem gerado conflitos políticos e teóricos intensos.
Ao tentar sair do âmbito estrito
do Mercado Comum sem adequados mecanismos de compensação para fazer face às
diferenças estruturais das economias integradas numa Moeda Única, a
constituição da UE agravou as divergências existentes e expôs vulnerabilidades
ignoradas no confronto entre essas economias. Foram as condições criadas pelo
funcionamento desta UE que determinaram, em boa medida (sem excluir, é
certo, excessos e desperdícios internos), o descontrole orçamental e a dívida a
que agora se pretende fazer face através das impostas políticas de austeridade
– as mesmas que o demissionário ministro Gaspar considerou haverem fracassado.
Importa esclarecer que a austeridade, se entendida como sobriedade, devia
assumir-se como norma de conduta e não como imposição, mas sabe-se o que a ‘política
de austeridade’ implica neste contexto: uma brutal transferência de
recursos dos contribuintes para o sector financeiro, posto á beira da falência
por práticas especulativas que, não obstante o descalabro a que conduziram,
estão longe de ter sido irradiadas.
Resta, para já, a certeza da renegociação da dívida – cada vez mais
próxima de uma reestruturação, a dúvida subsiste apenas quanto ao
montante a abater; a par da incerteza sobre a alteração das regras de
funcionamento desta insustentável UE – revisão do papel do BCE, reforço
do Estado Social, política fiscal comum,... ou implosão do Euro!
Resta saber até onde os Estados conseguem afirmar a sua soberania perante o
poder deletério dos mercados, até quando a democracia será capaz de lhes resistir.
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