domingo, 14 de julho de 2013

‘A hora do mercado’: a política demite-se, resistirá a democracia ?

A inusitada crise política dos últimos dias trouxe importantes novidades à crise global em que o País (e o mundo!) está mergulhado. O anúncio da ‘demissão irrevogável’ do líder de um dos parceiros da coligação no poder, expôs, em público, a irremediável quebra do elo de confiança que aparentemente os unia no propósito firme (?) de executarem o ‘Acordo da Troika’, dando bem a percepção do ponto em que a estabilidade política se encontra e transmitindo aos mercados (como gostam de verbalizar) sinais preocupantes de aumento de risco no seu cumprimento – que a histeria dos comentadores do costume se apressou convenientemente a amplificar. Fica a dúvida sobre qual das chantagens teve maior peso na histórica cambalhota da ‘revogação da demissão irrevogável’: se a nervosa reacção dos ditos mercados, se a pose institucional daquele ‘dissimulado’ líder na sua escalada do poder!

Mas se este episódio, culminando a louca cavalgada de factos políticos de uma semana louca, parece ser o mais relevante na crise da coligação (pelas efeitos na sua continuidade, contribuindo ainda para o aumento do descrédito da política e dos políticos, da descrença na democracia, até do desânimo nas pessoas), não foi, contudo, o determinante nem o de maior peso simbólico no desenvolvimento da crise política e social. Nesta sucessão de acontecimentos, que teve o mérito de revelar, sem subterfúgios, as divergências que se sabia existirem na coligação – mas que o discurso oficial negava ou tentava dissimular – há episódios bem mais decisivos para a compreensão da realidade, seja na avaliação do passado ou na projecção das expectativas. Ou até para se ponderar a coesão da coligação no poder e a previsibilidade dos comportamentos dos seus principais protagonistas.

O mais significativo, como tem vindo a ser destacado, encontra-se no teor da carta de demissão do Ministro das Finanças, pelas razões aduzidas para essa atitude. A confissão de fracasso aí expressa da sua acção política, constitui o libelo acusador mais impiedoso da inutilidade do designado ‘programa de ajustamento’ – a base para a política de austeridade – posto em prática por suposta imposição da troika de financiadores, excelente pretexto para a aplicação de uma política liberal de desvalorização do trabalho e atrofia do Estado Social. É esse documento, mais que qualquer outro facto – incluindo a tábua de salvação entretanto lançada por Cavaco tentando associar o PS ao ‘programa’ – que explica a situação actual de catástrofe social e económica e justifica uma adesão crescente à alternativa de renegociação da dívida (seja qual for a via admitida), até há pouco considerada heresia política.

Contudo, mais que proceder à renegociação da dívida (e ela é indispensável e urgente), importa considerar a renegociação das condições de funcionamento da União Europeia e da participação de Portugal no seu seio. Por razões de princípio, mais do que interesse. Pois começa finalmente a ser claro a impossibilidade de se conciliar o poder democrático com o poder dos mercados: a democracia vive cada vez mais subjugada às regras do mercado, as mais das vezes impostas sob chantagem de um inevitável ‘estado de necessidade’ – a técnica domina a política! Como é por demais sabido, a UE tem vindo a construir-se essencialmente em obediência e de acordo com as regras de mercado. A sua própria génese – e matriz – está no Mercado Comum, não obstante a sua constituição exigir o cumprimento de condições democráticas aos países que o integram, levando ao conflito constitucional crescente de normas democráticas com as regras do mercado: a tentativa de ‘constitucionalização’ de tais normas (como a ‘regra de ouro’ orçamental) tem gerado conflitos políticos e teóricos intensos.

Ao tentar sair do âmbito estrito do Mercado Comum sem adequados mecanismos de compensação para fazer face às diferenças estruturais das economias integradas numa Moeda Única, a constituição da UE agravou as divergências existentes e expôs vulnerabilidades ignoradas no confronto entre essas economias. Foram as condições criadas pelo funcionamento desta UE que determinaram, em boa medida (sem excluir, é certo, excessos e desperdícios internos), o descontrole orçamental e a dívida a que agora se pretende fazer face através das impostas políticas de austeridade – as mesmas que o demissionário ministro Gaspar considerou haverem fracassado. Importa esclarecer que a austeridade, se entendida como sobriedade, devia assumir-se como norma de conduta e não como imposição, mas sabe-se o que a ‘política de austeridade’ implica neste contexto: uma brutal transferência de recursos dos contribuintes para o sector financeiro, posto á beira da falência por práticas especulativas que, não obstante o descalabro a que conduziram, estão longe de ter sido irradiadas.

Resta, para já, a certeza da renegociação da dívida – cada vez mais próxima de uma reestruturação, a dúvida subsiste apenas quanto ao montante a abater; a par da incerteza sobre a alteração das regras de funcionamento desta insustentável UE – revisão do papel do BCE, reforço do Estado Social, política fiscal comum,... ou implosão do Euro! Resta saber até onde os Estados conseguem afirmar a sua soberania perante o poder deletério dos mercados, até quando a democracia será capaz de lhes resistir. 

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