quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O tabu do sistema financeiro: o controlo público da banca

A regulação... desregulada!
Quem paga, manda!” A frase, pronunciada a propósito da intervenção externa na definição das contrapartidas exigidas no ‘memorando’ para o suposto apoio financeiro da troika, é de Manuela Ferreira Leite e parece ter entrado no subconsciente das pessoas, para quem um país é gerido como se de uma família se tratasse (outro dos conceitos de um falso senso comum que se procurou instituir para justificar a política de austeridade que lhe foi associada). No último ‘Eixo do mal’ (26/12/15) este mesmo conceito foi de novo esgrimido (Daniel Oliveira), se bem que num contexto distinto, relacionado com o processo de ‘resolução’ do BANIF: “manda quem paga e somos nós todos que pagamos, os contribuintes”. Porque se torna obsceno assistir à quarta (!) ‘operação de salvação de um banco’ pelos contribuintes, enquanto os lucros, quando os houve – e foram muitos os milhões repartidos pelos ‘quatro’ ao longo dos anos! – acabaram sobretudo apropriados pelos respectivos accionistas e gestores. A salvo dos inevitáveis percalços num qualquer off-shore!

À constatação imposta pela realidade de que na banca ‘os lucros são privados, mas os prejuízos são públicos’, já pouco (ou mesmo nada) mais resta acrescentar do que insistir numa evidência: a banca não é nem pode ser tratada como um negócio como os outros. Independentemente das convicções ou da ideologia que enformem as decisões políticas, nomeadamente as que respeitam ao direito de propriedade, importa convergir no facto, decisivo e incontestável, de que o essencial da banca actual não está na captação de poupanças, mas na faculdade de criar moeda, tornando os bancos nos principais geradores da massa monetária em circulação. Uma faculdade associada à atribuição de crédito, na base do famigerado critério das ‘reservas fraccionadas’. Uma faculdade, acrescente-se, reservada ao Estado soberano, o qual a outorga aos bancos mediante – assim era suposto dever acontecer – a instituição de critérios de regulação rigorosa, devidamente supervisionados.

Ora, este modelo que funcionou com relativa estabilidade enquanto os Estados dispuseram do controlo efectivo das actividades bancárias, viu-se alterado ao longo dos últimos trinta anos por uma corrente política, dominada pela ideologia neoliberal, advogando e impondo a… desregulação! A começar precisamente pela financeira, em especial a bancária. Daí que qualquer tentativa no sentido de uma maior regulação bancária esbarre em dois obstáculos aparentemente intransponíveis: por um lado, o domínio absoluto da ideologia do mercado livre que, em nome da eficácia na tomada da decisão económica, propugna uma cada vez maior desregulação, por forma a assegurar-se, de acordo com a teoria, uma reclamada neutralidade; por outro, o monstruoso poder financeiro que tal política propiciou, expressa na globalização – de natureza essencialmente financeira – só admitirá largar mão desse incomensurável poder adquirido perante a força ou a catástrofe. Até agora tudo o que tem sido conseguido neste domínio, em resposta à enorme destruição financeira e aos múltiplos escândalos a ela associados, em nada de essencial beliscou a moldura estabelecida pela desregulação após o derrube dos últimos obstáculos legislativos à mais completa liberdade especulativa (separação das actividades bancária e seguradora, da banca comercial da de investimento, criação dos off-shores…) sobrepondo-a em absoluto à actividade produtiva (estima-se que esta apenas absorva 2% do investimento global a nível mundial). Pela simples razão de que a arquitectura estabelecida no sistema financeiro mundial – alicerçado na desregulação – o não permite sem correr o risco de se autodestruir.

A História é fértil em exemplos de obstáculos ditos intransponíveis (ultrapassáveis apenas por grandes convulsões) mais depressa superados (e de forma quase natural) do que se pudera conjecturar: de entre os mais recentes, sobressaem o ‘apartheid’ e o ‘muro de Berlim’, ambos tidos por baluartes inabaláveis imediatamente antes de ruírem com estrondo! Também o sistema erguido na base da desregulação financeira parece ser igualmente inamovível, tanto mais que à sua volta se teceu uma muralha de defesa ideológica que aparenta ser impossível derrubar. Sempre que o tema da regulação bancária é referido, logo surge um qualquer comentador – qual guardião do templo da ortodoxia dominante – a condicionar a conversa com o estafado refrão (ou sagrado tabu?): “Espero que não me venha falar de nacionalizar a banca…” e assim se corta qualquer veleidade em se discutir o assunto indo além da questão moral dos banqueiros corruptos e gananciosos ou das falhas de regulação. Mas depois de tantos episódios negativos bem exemplares, começa agora a emergir a possibilidade de se falar sobre a natureza da banca realmente existente, para além do fantasioso dogma ideológico de que a gestão privada supera a gestão pública. Para além, enfim, da persistente mas pouco eficaz discussão em torno da regulação de um sistema que foi gizado para funcionar… sem regulação!

No final sobra apenas a pergunta já tantas vezes formulada: quantos bancos mais será ainda preciso resgatar até se perceber a verdadeira natureza da actividade bancária? Até se concluir pela necessidade de uma alteração profunda (mesmo no quadro de uma economia capitalista) de todo o sistema financeiro, tendo em vista as funções de soberania monetária que lhe foram atribuídas? Da imperiosa obrigação pública de o Estado passar a controlar em absoluto um sistema que, dada a sua natureza, nunca deveria ter saído da sua órbitra – chame-se a isso nacionalização, controlo público, regulação administrativa ou outro nome qualquer?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A mudança política em Portugal (IV)

O ‘pequeno passo’ de um Acordo histórico


Cumprida a segunda fase da mudança política em Portugal (a primeira ocorreu com a rejeição nas eleições legislativas de 4Out. da alternativa austeritária da coligação da direita) com a arrastada tomada de posse de um Governo que pretende inverter as prioridades políticas actuais, pondo as pessoas no lugar dos mercados, falta agora cumprir esse desígnio na sua essência. Descontada a farronca inconsequente de um presidente à beira do fim (mas que esbraceja como se não fosse deixar de o ser!), abortada a insolente campanha de uma frustrada oposição presa à extremista tese da ilegitimidade de um governo saído maioritariamente do parlamento recém-eleito (na obstinada fixação em eleições antecipadas, com o único propósito de recuperar o poder agora perdido), os maiores obstáculos à realização do Programa de Governo negociado entre toda a esquerda encontram-se a outros níveis bem mais críticos. Não será da oposição visível e declarada (parlamentar e presidencial) que advirão as maiores ameaças ao novo Governo, elas emergem bem mais sérias e certas de outras paragens onde era suposto, pela natureza dos seus intervenientes e das regras democráticas, prevalecer a neutralidade e a isenção.

Desde logo o da matilha neoliberal instalada na comunicação social – área que devia primar pela isenção e objectividade. Contudo, o domínio ideológico é tão absoluto e insistente que sobra pouco espaço, de tempo ou de lugar, para qualquer alternativa. O resultado é a uniformização das mentalidades segundo o ‘pensamento ‘único’ neoliberal, a que a generalidade de comentadores, especialistas, analistas, políticos e demais opinantes sujeita as audiências. A prova pode ser feita nos diversos programas de ‘opinião pública’, onde a forma estereotipada como os ouvintes se expressam, mesmo quando expõem posições contrárias, revela bem a amálgama que daí resulta. Sendo hoje a capacidade de moldar consciências e uniformizar comportamentos uma generalizada característica mediática na formatação das opiniões públicas, a sua subordinação ideológica constitui a primeira grande ameaça com que um poder que pretende a mudança se irá seguramente confrontar. Já se percebeu que esse alinhamento ditará tanto a ‘prioridade jornalística’ aos opositores da nova orientação política (seja por entrevista, pelo comentário, em análise…), quanto procurará ‘amplificar a mais pequena divergência’, real ou fantasiada, entre os três principais parceiros desta solução.

Uma outra ameaça é a que provém da Europa, mais propriamente das instituições europeias – onde seria suposto preponderar mais a neutralidade. Depois da Grécia tudo parece ter ficado mais claro sobre a limitada capacidade de decisão democrática de cada estado membro da UE. O que ainda não ficou bem claro foi o âmbito desses limites na construção de uma qualquer alternativa à ‘alternativa única’ imposta por Bruxelas/Berlim. Mas depois da Grécia dificilmente os que impuseram a humilhação do ‘Grexit’ admitirão qualquer desvio à linha política traçada. A menos que a isso sejam obrigados pela realidade: a que for imposta pelas inúmeras fissuras internas à própria União (sejam de carácter económico – disfuncionalidade do Euro, crise das dívidas…; ou de carácter político – eleições em Espanha, autonomias regionais, referendo britânico…), ou pelas diversificadas dinâmicas externas (Síria-terrorismo-migrações, agudizar da crise financeira mundial…). A actual deriva securitária, em resposta à ameaça terrorista, surge bem oportuna como forma de justificar o âmbito mais alargado de restrições à democracia que a prática do ‘pensamento único exige – mesmo que os respectivos propósitos aparentem não ter qualquer relação, directa ou indirecta, entre si.

As maiores expectativas quanto ao futuro desta nova solução governativa, no entanto, concentram-se em torno do que se antecipa como um difícil relacionamento entre o PS e os seus parceiros à esquerda (BE, PCP, PEV e agora também o PAN) tendo em conta as divergências de partida, a nível sociológico, ideológico e até histórico. A tensão entre aquilo que se convencionou chamar de ‘moderação socialista’ face ao ‘radicalismo de esquerda’ (ainda que se vislumbre uma facção radical no seio do próprio PS) será uma realidade sempre presente enquanto durar o Acordo e estender-se-á a todas as áreas políticas relevantes. O centro dessa tensão estará, sem surpresas, no difícil e muito instável equilíbrio entre o ‘rigor orçamental’ exigido pelo Tratado Orçamental e a ‘urgente reposição’ do esbulho perpetrado pela direita (em rendimentos e em direitos sociais e do trabalho). Mas se a manutenção do acordo depende, antes de mais, desse equilíbrio – com o PS a não abdicar do rigor orçamental e a esquerda radical a exigir a reposição de direitos usurpados – ele irá ser constantemente posto à prova, a partir desde logo do estrito cumprimento da lei vigente. É no domínio do trabalho e da precarização das relações laborais que mais se faz notar a urgência na reposição da legalidade subtraída: a nível dos contractos a prazo (renovados por tempo indefinido), dos falsos recibos verdes (sujeitos a horários, a dupla tributação e sem direitos sociais)…

A favor da manutenção e estabilidade do Acordo milita a certeza de que as principais vítimas de um eventual fracasso serão, em primeira linha, os seus protagonistas. Essa é seguramente a sua maior garantia, bem destacada aliás pela generalidade de quantos, à direita e à esquerda, se têm pronunciado a propósito. E a convicção de, caso se mantenha o entendimento que permitiu tal Acordo contra todas as oposições e contrariedades – contra até os mais ansiados vaticínios de desavenças e do seu inexorável termo para breve – ainda assim se tratar só do primeiro passo para uma efectiva mudança social, para já apenas destinado a repor equilíbrios perdidos pela acção destruidora do fundamentalismo neoliberal. Daí o recurso às ‘velhas e esquerdistas’ receitas keynesianas da retoma económica pela via da procura interna na sua versão mais básica – o consumo das famílias – com receio de se meter o Estado nisto e atrair-se a ira de Bruxelas! Tratar-se-á, afinal – como sempre na História – de um pequeníssimo passo na longa, penosa, mas persistente caminhada em nome da dignidade e da decência, contra todas as dependências e a desigualdade, em nome, enfim, da permanentemente inacabada emancipação do homem. A convicção, pois, de que a História não acaba aqui.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A mudança política em Portugal (III)

Prestes a desparecerem de cena. Prestes a emigrarem?

Da austeridade ao rigor: as pessoas no lugar dos mercados?

A grande novidade nas eleições de 4 de Outubro foi a expressão clara de que a mudança exigida pelos eleitores não se esgotava na mera e tradicional alternância de protagonistas no poder político: rejeita a sua continuidade à direita que o detinha, mas também não confia no PS para lho entregar sem condições. Assim, para além dos protagonistas, os eleitores exigiram uma mudança de políticas, uma alternativa em lugar da alternância. É este o contexto que permite explicar o acordo à esquerda agora celebrado, só possível pela conjugação dos resultados dessas eleições: por um lado uma votação no PS aquém das expectativas, por outro a forte representação do BE e a resistência do PCP acabaram por impor dentro do próprio PS (até como forma de sobrevivência política) a constituição de um governo com apoio parlamentar do BE, PCP e PEV.

Embora a mudança política que aqui se configura como alternativa de esquerda à austeridade imposta pela direita seja intentada através de um acordo visando não uma coligação mas ‘apenas’ o apoio parlamentar a um governo do PS, isso em nada diminui o alcance que se pretende dele extrair no que é de mais essencial a tal mudança – a reposição dos direitos do trabalho e a defesa do Estado Social – ao mesmo tempo que garante maior coerência interna pelo facto de ser constituído apenas por um só partido que, além do mais, não gera resistências nas sensíveis (e pouco democráticas) instâncias europeias. Poder-se-ia mesmo sintetizar a política do PS, para a Europa, pautada basicamente pelo rigor orçamental e financeiro, em detrimento de uma política da austeridade (visando a desvalorização do trabalho e a destruição do Estado Social). É, pois, no contexto em que a austeridade dá lugar ao rigor, que os ‘princípios orientadores’ que enformam o acordo assumem maior importância face à sua concretização num Programa de Governo e sobretudo nos OE anuais, garantindo a estabilidade e longevidade que estes, sujeitos a actualizações periódicas, não podem, como é óbvio, assegurar.
    
Assiste-se, entretanto, ao alardear da verdadeira natureza política da direita, na desesperada tentativa de vir a influenciar o exangue poder presidencial – de quem, não obstante, depende a opção imediata a seguir. Percebe-se que para a direita, a perda do poder que, directa ou indirectamente, sempre havia detido (antes e depois do 25 de Abril) é uma ideia simplesmente insuportável, a ameaça de uma alternativa política que afronta a sua tese do ‘não há alternativa’ tornou-se-lhe intolerável. Daí a recusa em aceitar todas as consequências dos resultados eleitorais e a enorme agitação que tem vindo a promover: retirada a máscara da decência e dos formalismos democráticos, dos insultos passou às ameaças e não tem pejo em apelar ao desvairado golpismo da mais espúria proposta de revisão constitucional feita à medida dos seus interesses imediatos… Neste momento a direita vive obcecada em desvalorizar o acordo (que é frágil, pouco consistente, não fala da Europa…), cavalga todos os extremismos, incluindo os apelos mais destemperados e antipatrióticos aos mercados, agências de rating, UE... A reacção de indiferença dos invocados salvadores provocou o desalento numa direita em perigoso desatino!

Para a esquerda, porém, esta realidade nova representa um enorme desafio e o risco é avaliado pela percepção das forças partidárias que o suportam em saberem dependente dele o futuro dos respectivos projectos políticos. Mais que a assinatura do acordo, pois, a melhor garantia do compromisso assumido e do empenhamento de todos os seus signatários é, acima de tudo, a consciência de que, caso algo corra mal, os mais penalizados serão os que incorrerem na quebra do acordado – como tem vindo a ser bem destacado por muitos, incluindo os seus representantes. De algum modo é nisso que a direita aposta: nas fricções que inevitavelmente hão-de surgir entre as boas intenções da esquerda e as condições adversas de uma realidade, interna e externa, claramente hostil à mudança ou a qualquer alternativa ao modelo imposto por Berlim/Bruxelas; na exploração das divergências idiossincráticas (históricas, ideológicas, diferente base social) de cada uma das forças políticas que o subscreveram – incluindo nos pontos que não foram objecto das negociações (mas devidamente sinalizados).

A realidade se encarregará de ditar, a seu tempo, o destino das principais áreas de divergência fora do acordo (Tratado Orçamental, Euro, dívida…). Tanto a realidade que é possível antecipar em cada uma dessas áreas (v.g., adensam-se os sinais de uma nova crise financeira/bancária), como a que surgirá de imprevisto por força de acontecimentos ‘fortuitos’ (v.g., depois dos ataques de Paris, Hollande informou que vai continuar a não respeitar o sacrossanto limite do deficit, agora sob pretexto dos investimentos exigidos pela luta contra o terrorismo). Muito além da persistente e ilegítima discussão em torno da legitimidade do acordo – traduzindo apenas o desespero de uma direita (acolitada por formatados, despeitados e bem amestrados opinadores políticos) que se recusa a largar o poder e que tenta ainda ‘recuperar’ o PS ou, no mínimo, condicionar-lhe a acção – todos têm plena consciência da magnitude dos problemas envolvidos na mudança que a esquerda se propõe levar a cabo.


Resta então aguardar pela arrastada decisão de um Presidente que, antes das eleições se ‘gabarolava’ de ter todos os cenários estudados e saber muito bem o que iria fazer depois delas. Afinal os resultados apurados e as negociações estabelecidas entre parceiros nada recomendáveis segundo os cânones vesgos de um político que diz não o ser, parecem haver-lhe trocado as voltas e o homem vive na angústia de ter de fazer aquilo que tem vindo a público dar a entender que não quer fazer – a ‘crise política’ de que fala foi ele que artificialmente a criou! Em contraste com o que foi a miséria política, intelectual e moral do mandato de um Presidente gabarolas e pesporrente, de momento às voltas com as opiniões de quantas corporações existem no País – afinal o único ‘país real’ que conhece – esta imposta espera ‘cavaquista’, contudo, algo de positivo tem vindo a granjear: deu mais tempo à política para descer às ruas, invadir as praças, interessar as pessoas, tomar conta da vida – e isso é bom! Quanto à contagem decrescente do que resta do ‘cavaquismo’, decerto não rezará a história, mas acentua os traços de um personagem mesquinho e destituído de decência! Depois de finado, nem paz à sua alma instiga – apenas porque um ser assim é seguramente desprovido dela!

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A mudança política em Portugal (II)

A história de um acordo à esquerda: um passo à retaguarda, dois passos em frente

A mudança política em Portugal teve, no dia 10 de Novembro/15, o culminar apenas da primeira fase de um processo que se adivinha longo e atribulado. Deu-se, para já, um passo importante nesse processo, mas tudo não passou ainda dos aspectos mais formais envolvidos num trajecto que vai ter já muito em breve, tudo o indica (e a despeito dos humores venenosos do ‘pastel’ de Belém), a sua grande prova de fogo. Foram criadas bases para se dar início a uma mudança real na política portuguesa, mas as transformações sociais exigidas enfrentam um cenário de tantas incertezas, a nível interno e externo, que se torna impossível antecipar seja o que for, a imprevisibilidade é mesmo a única certeza. Talvez seja esta até a única área de possível acordo com a caterva de comentadores que, por estes dias ainda mais que no passado, pressurosamente se afadigam em pintar o caos e o drama perante o que asseguram ser uma ‘alternativa impossível’ que teimam em esconjurar.

Mas se é difícil antecipar o futuro, agora em particular, afigura-se oportuno ponderar sobre o caminho andado para aqui chegar e recordar alguns dos passos que o possibilitaram. Embora se devam sobretudo acentuar os valores comuns a todos quantos se reclamam da esquerda, herdeira de uma longa tradição sintetizada na trilogia que a revolução francesa consagrou, não é possível ignorar – neste momento importa até avivá-lo bem (coisa que os comentadores também fazem mas com propósitos antagónicos dos aqui terçados) – o ponto de partida das divergências ideológicas das três principais forças políticas que garantem o acordo que torna possível essa mudança. Independentemente das razões e explicações para o longo e profundo divórcio entre posições políticas aparentemente próximas, o certo é que só agora parecem criadas as condições que permitiram um entendimento mínimo entre PS, BE e PCP. Um entendimento desde logo na rejeição conjunta de uma posição política antagónica aos três (consubstanciada na política de austeridade actual), depois traduzido em programa mínimo de governo – o que de facto constitui a grande novidade!

Para aqui chegar, porém, foi preciso, antes, passar pela prova da divisão profunda que separava as esquerdas, como no famigerado chumbo do PEC IV, apresentado pelo PS de Sócrates e rejeitado no que foi entendido por uma aliança espúria entre esquerda (BE, PCP e PEV) e direita (PSD e CDS/PP). Mas só na aparência é possível considerar essa rejeição como uma aliança: a direita entendeu, depois de aprovar os anteriores três PECs, rejeitar o IV para poder ‘ir ao pote’ do poder (na expressão do seu líder Passos Coelho). Quanto à esquerda, apenas manteve a coerência da sua posição política: seria estranho e sobretudo incoerente se, depois da rejeição dos três anteriores PECs, votasse favoravelmente, por puro tacticismo, o IV! Mas mais que voltar à história desse tempo, por demais conhecida, o que mais importa agora destacar são os efeitos dessa posição na evolução política.

Sabe-se o que se seguiu a esse chumbo. Após eleições antecipadas, a coligação de direita tomou o poder propondo-se ir além do ‘memorando’ imposto pela troika, traduzindo-se na aplicação de uma política de austeridade com o propósito explícito de empobrecer o país – acusado de viver acima das suas possibilidades – através de uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para o capital impondo a maior e mais violenta agressão aos direitos dos trabalhadores em democracia. Os resultados desta operação política foram duplos: por um lado a direita radicalizou-se ao ponto de pretender converter o Estado Social num Estado assistencialista, eliminando assim os últimos resquícios de social-democracia que ainda perduravam num partido que dela se reclama; por outro sinalizou à esquerda a prioridade da defesa desse Estado Social contra os ataques desta direita, criando as condições para o acordo agora assumido.

Sem a experiência que o ‘episódio PEC IV’ acabou por proporcionar – permitindo à direita coligada aplicar o seu programa num violento exercício de poder sobre quem trabalha, causticando o PS na oposição – dificilmente a esquerda convergiria primeiro na avaliação conjunta do que foi a destruição inútil de vidas e recursos, ímpar na democracia portuguesa, depois na agregação de esforços no sentido da mudança que agora se perspectiva. Foi preciso o PS perceber a natureza desta direita ideologicamente comprometida e os dois partidos à sua esquerda concluírem que, para garantir o essencial – a vida das pessoas – nas condições actuais, isso implicava cedências programáticas (mesmo que temporárias), para que um acordo nunca antes conseguido entre os três fosse agora possível e viesse a concretizar-se. Um pequeno passo para a mudança – mas um passo bem decisivo!

sábado, 7 de novembro de 2015

Mudança política em Portugal: da extrema-direita à esquerda

A perspectiva das negociações à esquerda se saldarem por um acordo de governo, permitiu revelar, talvez como nunca antes havia ainda acontecido, a verdadeira natureza da direita portuguesa. Da sobranceria inicial perante a mera intenção dos partidos em negociar, ao crescente nervosismo expresso numa irritação por vezes insultuosa, até ao clima de chantagem e ameaças (à medida que se foi convencendo que a intenção era para levar a sério e não apenas uma forma de ‘pressão negocial’), a direita nacional, vertida nos dois partidos que praticamente a esgotam (CDS/PP e PPD/PSD), demonstrou à evidência que quem a constitui – e quem conjunturalmente a lidera e a representa – revela os tiques totalitários com que frequentemente pretende estigmatizar (e excluir) a esquerda.

Importa esclarecer, entretanto, que o totalitarismo que impregna a ideologia e a prática da direita nacional lhe advém por duas vias. A primeira, universal e presente na globalidade das formações de direita (e em muitas ditas de esquerda, a que o PS até aqui não foi imune), decorre da ideologia do pensamento único neoliberal, imposto pelo que se designa de globalização inevitável construída na base da liderança incontestada dos mercados – expressa nas políticas de austeridade. Ao excluir qualquer alternativa fora desta concepção (que o acrónimo TINA sintetiza), esta ideologia revela-se antidemocrática e totalitária, ao nível dos totalitarismos que causticaram o séc. XX. O excessivo e acéfalo seguidismo evidenciado pelos prosélitos da versão lusa desta componente universal na formação do totalitarismo, pode explicar-se pelos resquícios, ainda presentes em alguns estratos, da herança salazarenta e da nostalgia colonialista (sobretudo nos ‘retornados’ mais revanchistas) – ambos contribuindo para diferenciar a direita portuguesa das suas congéneres europeias. Isso explicaria também o facto da extrema-direita em Portugal manter expressão residual (bem longe das conhecidas na Europa): coexistindo sem atritos no mesmo espaço partidário da direita tradicional, não vê vantagens nem necessita de se autonomizar.

Foi a esta promíscua amálgama de ideologias e interesses (dos negócios aos partidários), que o PS de António Costa, contra todos os Assis nele infiltrados, decidiu dizer não, porventura antevendo o risco de poder vir a perder o que resta da sua identidade social diluindo-se numa prática política que tudo submete ao poder dos mercados. De pronto, a histeria instalou-se na direita. Na direita dos políticos, dos comentadores, dos analistas TINA do pensamento único sem lugar a alternativas, dos democratas com pânico de, afinal, a democracia poder funcionar, todos manifestando uma incontida ira contra os evitáveis riscos de aventuras políticas ao arrepio da vontade de Bruxelas/Berlim. Costa é acusado de falta de ética, de golpista, de traição (o episódio Seguro…). A perspectiva de um governo à esquerda é caracterizada como ‘fraude eleitoral’, até mesmo como ‘golpe de estado’! Nunca como agora surgiram tantos especialistas em marxismo, leninismo, marxismo-leninismo, trotskismo e afins. Duvida-se que 1% sequer dos que esgrimem esses conceitos, as mais das vezes utilizados apenas para apostrofar adversários ou evidenciar negros presságios, saiba um mínimo do que eles envolvem. Nos seus raciocínios estereotipados, pensarão talvez que bastará a simples invocação do nome para incutir o terror desejado!

Não podem ignorar-se num futuro governo das esquerdas as dificuldades próprias de partidos com programas muito diferentes em áreas sensíveis, embora as grandes divergências entre PS e os partidos à sua esquerda – em torno do Tratado Orçamental (TO), Euro e renegociação da dívida – aparentem ser mais teóricas que práticas. Em teoria, o PS afirma-se a favor do Euro e do TO, contra a renegociação da dívida; Bloco e PCP dizem-se contra as duas primeiras, lutam pela terceira. Na prática, no entanto, é possível observar:
-        Sobre o TO, é hoje quase unânime a opinião de que é impossível de cumprir, nomeadamente no preceito de redução da dívida para 60% do PIB em ‘apenas’ 20 anos, nas condições económicas actuais (daí o PS falar na necessidade de uma leitura inteligente do Tratado, que mais não é que a sua derrapagem inevitável).
-        Quanto ao Euro, as assimetrias da sua construção só agora começam a ser evidenciadas e com enorme brutalidade, a nível económico e nomeadamente nos efeitos sociais: na prática todos estão de acordo que não pode continuar como está. Necessita, pois, de um maior amadurecimento para se confirmar como moeda inviável levando, portanto, à sua alteração ou mesmo à sua rejeição.
-        Por último, a renegociação da dívida irá colocar-se, mais cedo ou mais tarde (quanto mais tarde o for, maior a probabilidade de os seus efeitos serem mais desastrosos para todos, devedores e credores). Sabendo-se ser inevitável, falta apenas saber quando irá acontecer. Um dos actuais “vice” de Costa (Pedro Nuno Santos) foi co-autor (com F. Louçã, R. Cabral e Eugénia Pires) de uma proposta (modesta?) de renegociação da dívida.


Perante a cada vez mais evidente degradação das condições financeiras – a nível nacional, europeu e até mundial – a tarefa de António Costa e dos seus prováveis parceiros de esquerda no suporte de uma solução destinada acima de tudo a apear o poder totalitário da austeridade e em repor um mínimo de decência na vida colectiva afigura-se tremendamente difícil. Após as eleições, a esquerda (PS, BE, PCP) viu-se confrontada com um dilema político: assumir os resultados para, na sequência da campanha, estabelecer um acordo histórico para governar, travando a austeridade, ciente dos riscos de afrontar uma situação de extrema debilidade financeira, com perspectivas de agravamento; ou, na avaliação desses riscos, por mero tacticismo evitar o acordo e aguardar melhor oportunidade para derrubar o governo já empossado, permitindo à direita continuar no poder mantendo a austeridade permanente – além de não garantir sucesso, esse tacticismo acabaria por alienar todo o apoio eleitoral. A decisão, para além de todos os calculismos e pesados os riscos e os compromissos, só podia ser devolver às pessoas a vida roubada pela austeridade.

domingo, 18 de outubro de 2015

O medo – sempre o medo! – a arma da direita contra entendimentos à esquerda

Ainda mal refeitos da estupefacção que os atingiu assim que se soube das ‘conversas interessantes’ que o PS estabeleceu com o PCP e Bloco, a incredulidade começa a dar lugar à ira mal contida contra tamanho desaforo, à mistura com ameaças veladas e chantagens descaradas (na base de sentenças categóricas sobre os compromissos externos, sempre agitando os fantasmas da Grécia). A desonestidade com que se interpreta a intenção dos eleitores pretendendo que esta foi no sentido da ‘maioria europeia dos 70%’ (!) só tem paralelo com a igual desonestidade com que se pretendeu influenciar/manipular a sua opinião antes das eleições através do medo. Mas para além da profusão de opiniões que se vão ouvindo, sem surpresa na sua esmagadora maioria garantindo a interpretação autêntica dos resultados a partir de uma intuída genuína intenção dos eleitores, o que mais importa averiguar são os dados objectivos. E esses apontam, sem sofismas ou enviesamentos opinativos:

1.      A partir dos números apurados nas eleições:
  •    A maioria de que a coligação de direita dispõe para governar não lhe permite, por si só (como pretendia), um exercício estável. A única forma de o conseguir seria através de um acordo com o PS (excluindo desde logo os restantes dois maiores partidos parlamentares, por razões óbvias).
  •    Neste Parlamento é possível a constituição de uma outra maioria, integrando o PS, o BE e o PCP – uma coligação de esquerda – estável e tão legítima como qualquer outra, não obstante ser a primeira vez que tal hipótese é posta na democracia portuguesa e as resistências, culturais e outras, que arrasta.

2.      Com base nas declarações e promessas da campanha:

  •      Parece deliberadamente esquecida (e daí pouco referida) a afirmação de António Costa de jamais se aliar à Coligação de direita ou viabilizar-lhe um OE, talvez a declaração chave deste processo: todos os eleitores souberam, com antecedência, do projecto pós-eleitoral do PS, o que anula qualquer interpretação que aposte num outro propósito (utilizando linguagem cara à direita, os eleitores já ‘descontaram’, nas urnas, os votos socialistas que não aceitavam uma previsível aliança à esquerda, transferindo-os para a coligação, o que explicaria a sua ‘grande’ votação após anos de austeridade).
  •       Faz-se por ignorar o conteúdo das três propostas apresentadas por Catarina Martins no frente-a-frente com António Costa para viabilizar um Governo de esquerda liderado pelo PS (a ponto de se colocar o início deste processo de aproximação entre as esquerdas apenas quando Jerónimo de Sousa, já depois das eleições, se declarou disponível para viabilizar um tal Governo).
  •     Mas também o PCP, ainda antes das eleições, havia manifestado disponibilidade para viabilizar um governo de esquerda, pela prioridade atribuída à luta contra as actuais políticas de austeridade.

A partir daqui e com base na evolução de uma situação ainda longe de esclarecida, muito menos decidida, parecem legítimas algumas considerações, como as seguintes:
-        Foi a enorme pressão que resulta da grande votação no Bloco (e da consolidação da do PCP) que obrigou o PS a negociar à esquerda, pois de outro modo dificilmente o faria: a confirmar-se o que é público, um governo das esquerdas já só não existirá se o PS o não quiser! Daí as referências – e os apelos – à ‘tradição das negociatas’ por parte de uma direita despeitada.
-        Até que ponto a aparente sonsice das (não) respostas da coligação às questões postas pelo PS sobre a real situação do País não esconde dados negativos relevantes, daí resultando uma (arriscada) estratégia de recuo temporário, deixando o ‘problema’ nas mãos da esquerda (foi assim que Cavaco chegou ao poder: AD–>Bloco Central–>Cavaco), esperando voltarem reforçados lá mais para diante.
-        Em qualquer circunstância, seja em desespero seja por estratégia, a direita venderá cara a sua expulsão do poder: ameaças de desestabilização com recurso à UE, tentativa de (as)segurarem todos os lugares públicos possíveis (dentro ou fora da Administração) antes de serem ‘corridos’ (por ex., na Segurança Social)…

Aqui chegados, constituiria grave erro histórico (com a devida penalização dos responsáveis) desperdiçar a oportunidade de se constituir uma plataforma de esquerda subscrita pelas três principais forças que dela se reclamam, defraudando a enorme expectativa das pessoas por quem se diz que correm estas negociações – sem prejuízo de se reconhecerem enormes dificuldades na conciliação das posições de princípio dessas três esquerdas (descontada a caricatura com que a direita pretende desvalorizar o facto, por o Bloco ser contra a NATO ou o PCP pretender sair do Euro!). Uma plataforma de esquerda disposta a afirmar, em primeiro lugar, o primado da democracia sobre o poder dos mercados (sem ilusões, mas também sem ambiguidades).

Se prevalecesse o mero cálculo político, o avolumar de sinais que apontam para uma nova e mais violenta crise financeira ditaria especiais precauções na elaboração de um acordo de governo por parte dos diversos parceiros nas negociações – a capacidade da direita no controlo absoluto dos mecanismos do poder exime-a destes tão triviais cuidados! Mas seguramente tanto o PS como os partidos à sua esquerda não deixarão de acautelar todas as eventualidades previsíveis nos termos de um eventual acordo que venham a firmar. Tanto mais que parece cada vez mais forte a probabilidade de a crise vir a atingir, mais ou menos violentamente, os países do centro, com inevitáveis reflexos nas periferias até por via de eventuais (mas admissíveis) alterações na política europeia.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A ‘inteligência dos eleitores’ interpela a coerência dos comentadores!

Conhecidos os resultados das eleições legislativas de 4/Out. último e tal como no final de qualquer outra eleição, logo se falou também sobre a ‘inteligência dos eleitores’, a suprema sabedoria na manifestação da sua vontade na atribuição de responsabilidades aos eleitos – ainda que, como sempre, restringida aos resultados dos partidos ditos do ‘arco da governação’. A vitória apenas com maioria relativa da coligação no poder sinalizaria a vontade dos eleitores na manutenção do governo mas não na continuidade da sua política de austeridade (pelo menos nas doses aplicadas), o que explicaria, de igual modo, o papel de contrapeso a que o PS ficaria reduzido, penalizado por, em adesão à tese da coligação no poder, bem escorada numa intensa barragem mediática, ter sido ele o responsável pela crise actual. Desta sábia geometria ditada pela ‘inteligência dos eleitores’ – manter no poder o governo em funções, mas sem maioria para não lhe ser possível aplicar a austeridade pretendida – excluir-se-ia o significativo aumento de votos que os mesmos eleitores decidiram atribuir aos partidos ditos de protesto, pondo a descoberto a natureza das convicções dos que têm da democracia uma concepção ainda próxima da coutada medieval!

Acresce que esses resultados têm vindo a servir para testar e pôr à prova algumas das mais enraizadas certezas do panorama político nacional: desde logo, a divisão partidária entre partidos de poder (o famigerado ‘arco da governação’, com PS-PSD-CDS) e partidos de protesto (PCP e BE, nomeadamente); depois, a convicção de que, precisamente por opção própria, nunca os segundos aceitariam exercer (ou partilhar) o poder, mantendo-se sempre na confortável posição do protesto. Agora que os ditos partidos de protesto se demonstram disponíveis para viabilizarem uma fórmula de governo à esquerda (integrando ou tão só apoiando um Governo do PS), está a gerar-se uma imensa agitação por entre os habituais comentadores políticos (e os políticos do poder), receosos, afirmam, dos efeitos que isso pode vir a implicar sobre a ‘credibilidade externa’ do País! Impossível – apostrofam com o ar mais convicto e sábio perante tal desaforo – essa solução é completamente inviável dado não existir qualquer compatibilidade entre partidos que se afirmam contra a NATO, a UE e o Euro (PCP e Bloco) e as tradicionais forças políticas alinhadas com a denominada ‘democracia ocidental’ – as tais do exclusivo ‘arco da governação’.

Houve alguém que recordou haver no norte da Europa (Finlândia) uma coligação no poder que integra um partido que é contra a NATO, o Euro e até a integração europeia (Verdadeiros Finlandeses). Com uma notável diferença: trata-se de um partido da extrema-direita – ainda assim bem integrado no sistema. Afinal o que torna inadmissível a mera consideração dessa possibilidade é a ousadia de se pretender afrontar o primado do mercado (por enquanto mais a nível ideológico do que político, as condições a isso obrigam), pondo em causa algumas das suas bases essenciais (a defesa emblemática – e, a prazo, inevitável – do controlo público do sistema financeiro), com o risco imediato de a avaliação dos mercados poder vir a penalizar juros e ratings de que se faz actualmente a vida dos cidadãos. E porque é com esta que os ditos partidos de protesto estão mais preocupados, toda a prioridade na busca de consensos é posta na luta contra a austeridade e as desigualdades que ela arrasta – afinal a essência da mensagem transmitida pela larga maioria dos eleitores!

Não parece, pois, constituir entrave à viabilização de um ‘governo PSapoiado pelos partidos à sua esquerda questões de princípio programático, de repente tão enfaticamente destacadas por políticos e comentadores ansiosos, temerosos de um desfecho que não desejam, uns pelos interesses que representam, outros pelos serviços que cobram ou pelas carreiras que ambicionam. Curiosa a reacção do mundo político e do universo de comentadores que ainda sem ser certa – parecendo até pouco provável! – a constituição de um tal governo de esquerda os lançou em estado de ansiedade catatónica. Antecipam, sem hesitação, uma catástrofe nos mercados, agitam, sem embaraço e com total falta de pudor, o espectro da Grécia (como se esse exemplo lhes não devesse pesar nas consciências e não actuasse precisamente no acautelar dos passos a seguir).

Certo é que o PS, com António Costa, tem nas mãos a oportunidade de conseguir um consenso histórico à esquerda, de grande impacto nacional mas igualmente com repercussões a nível europeu. Depois da destruição social a que se assistiu sobretudo nos últimos 4 anos, a esquerda (BE e PCP) já se mostrou disponível para abdicar, no imediato, de algumas das suas mais emblemáticas bandeiras, em nome da recuperação da dignidade e da restituição da vida roubada das pessoas, em nome da defesa do Estado Social. Dessa sua decisão irá depender ou uma renovada afirmação do partido ou a sua progressiva irrelevância: o apoio à coligação da direita, acentuará a sua adesão às políticas de austeridade e ao neoliberalismo, definhando como tantos outros partidos social-democratas da Europa (‘pasokisação’); a opção pela esquerda, ao dividir o risco com os restantes partidos desta área, pode aspirar a reganhar uma liderança (que hoje parece prestes a desvanecer-se) no âmbito de um projecto capaz de aproximar mais a política das pessoas, as esquerdas da realidade actual e da correcta percepção dos seus interesses.


A grande prova advirá, em última análise, das profundas mutações em curso na realidade económica, social e política: os sinais evidentes de desagregação ética e dos valores em que era suposto a Europa ser fundada ameaçam abalar os poderes instituídos. A gigantesca fraude na Volkswagen, por um lado, o desconchavo de posições perante o drama dos refugiados, por outro, indiciam situações de impossível retorno ou recomposição, apontam à urgência da mudança. A sofreguidão de que dão mostras empresas que se supunham suportes basilares do sistema (‘não olhar a meios para atingir os fins’, é o seu lema), pondo em causa a lealdade das relações económicas em que era suposto dever basear-se a concorrência – o nervo do sistema – ou a constante violação das normas de solidariedade que fundaram a UE  – a razão de ser da integração – exigem alteração das regras, dos comportamentos e, até, de actores políticos. Este desafio não pode ser ignorado e deve ser bem interpretado. Por todos os intervenientes.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O meu voto

1. O que determina o meu voto no próximo domingo, 4 de Outubro, é poder contribuir para a obtenção de resultados eleitorais tendo em vista alcançar nomeadamente os seguintes objectivos políticos estratégicos:
  • Desde logo e à cabeça a rejeição inequívoca da actual política de austeridade expressa através de uma maioria clara de votos – e de mandatos parlamentares – á esquerda, com a consequente derrota da coligação de direita no poder;
  • Complementarmente, impedir a obtenção de qualquer maioria absoluta por um só partido, a fim de se prevenirem tentações e desmandos (gato escaldado…);
  • Por último, reforçar a representação parlamentar de Bloco e CDU por forma a pressionar o PS a uma política de esquerda (aguardando-se que a proliferação de siglas não interfira muito nesse propósito).

A dar crédito às sondagens que diariamente procuram entorpecer a opinião dos portugueses, a probabilidade destes três quesitos principais virem a concretizar-se é bastante forte – não obstante a negra contrapartida de todas elas destacarem uma previsível vitória, ainda que sem maioria, da direita no poder. Os resultados de domingo encarregar-se-ão, pois e antes de mais, de confirmar o grau de credibilidade deste tipo de sondagens – ou até que ponto, como tem acontecido noutras paragens, são manipuladas com o propósito de influenciar as intenções de voto dos eleitores.

Facto não despiciendo, neste contexto, o revigoramento do Bloco para além de todas as expectativas, despeitadamente dado já por múltiplos sectores (da direita à esquerda, diga-se) em adiantado estado de decomposição, a caminho da extinção, tornando-se já quase um lugar-comum atribuir tal efeito à acção determinada, competente e serena de Catarina Martins. Sem menosprezo pelo contributo devido a elementos cuja empenhada prestação política mereceu notório reconhecimento público (caso da Mariana Mortágua). Essencial para segurar um eleitorado que não se revê no PS nem no PCP, que de outro modo se absteria.

2. Mas o que realmente se encontra em jogo nestas eleições e espero mesmo que resulte do apuramento eleitoral é a criação de condições mais favoráveis à concretização a breve prazo de um programa político de mudança que inclua, como eixos fundamentais:
  • A revogação do Tratado Orçamental (TO) – em nome da democracia – e muito para além de quaisquer pretensas ‘leituras inteligentes’ que alguns queiram dele extrair;
  • A reestruturação da dívida – em nome da soberania do País e da vida de quantos nele habitam e trabalham;
  • O controlo público do sistema financeiro – em nome da decência, contra a corrupção institucionalizada. 

Já (quase) tudo foi dito e escrito sobre cada um dos temas enunciados. Do inviável TO, à inevitável reestruturação da dívida (data a marcar após as eleições em Portugal e Espanha). Não menos falado, talvez menos exigido (pela consciência da sua impossibilidade imediata face à envolvente política actual?), o controlo público do sistema financeiro assume papel nevrálgico num processo de transformação social. Daí tornar-se indispensável incluí-lo num programa político que vise alterar a insustentável situação que decorre do periódico (e aparentemente imperioso) resgate de Bancos a que a sociedade se vê compelida. E é bom relembrar, pela enésima vez, que a crise actual teve origem precisamente no descalabro financeiro de 2008 e que, de então para cá, a par desses impostos resgates, pouco ou nada foi feito em termos da instauração de novas regras que prevenissem a repetição sistemática deste ignóbil regabofe bancário. Aliás, se nada for entretanto feito (e nada aponta nesse sentido), o pior poderá estar ainda para vir!

O actual ‘escândalo Volkswagen’ ilustra bem, por contraponto, a importância sistémica do sector financeiro. Apesar da gigantesca dimensão do construtor alemão (a nível financeiro, VN ou emprego), imensamente superior à da maioria dos Bancos e ainda sem uma clara avaliação do seu real impacto na economia global, uma coisa parece, para já, adquirida: os danos causados pela comprovada fraude das emissões poluentes (por razões de concorrência, como sempre!) estão longe de provocar as ondas de choque sentidas em 2008, no auge da crise financeira, com a situação de descalabro então registada em algumas Instituições Bancárias (difícil de divisar onde a ‘criatividade’ permitida pela desregulação financeira dá lugar à fraude). Tal como já afirmei antes ‘cresce a percepção, até entre sectores liberais, de que a solução já só reside no controlo público do sector bancário: é que os bancos, pelo papel vital que detêm na sociedade, não devem ser deixados ao capricho de particulares!’.

3. Por fim e perante a devastação a que a actual política de austeridade sujeitou o País parece quase masoquismo o resultado para que tendem as sondagens: uma vitória da coligação da direita – os responsáveis pela ruína de tantas vidas e destruição imensa de recursos, sem visíveis contrapartidas – ainda que sem maioria! Não sendo de admitir que, depois de tamanha predação, subsista um tão elevado número de beneficiados (ou até só ilesos) pela política de austeridade, custa imaginar quão profunda terá sido a acção psicológica baseada no medo e suportada na manipulação de dados (sabê-lo-emos depois das eleições?) a que foram sujeitos quem lhes sofreu tais efeitos, a ponto de agora absolverem os seus carrascos. Uma nesga de coragem contra o medo ou uma réstia de bom senso ainda é, contudo, possível!

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Gestão das emoções na estratégia eleitoral do medo

A estratégia eleitoral da coligação da direita no poder assenta em dois pilares interligados: medo e imagem. Agitação do medo à mudança, apelando à continuidade da política que promoveu; exibição de uma imagem redentora, valorizando feitos próprios à custa de méritos alheios (envolvente externa), propagando números talhados à medida para opor à realidade vivida, através da manipulação descarada ou da simples maquilhagem das estatísticas. Para isso tem contado com a sempre prestimosa e subserviente colaboração mediática encarregue de difundir/ampliar a mensagem principal da sua política de que ‘não há alternativa’. Qualquer destes temas tem sido abundantemente referido e analisado, ainda que não suficientemente valorizados na sua interligação, pois eles são, na prática, a face e a coroa do mesmo propósito: a renovação da imagem, através de hábil gestão das emoções, de uma direita ideologicamente moralista e punitiva, empenhada em se perpetuar no poder.

Perante o desastre a que conduziu a política da austeridade, com a destruição de vidas e recursos, agita-se o medo como forma de tolher as pessoas de qualquer pretensão de virem a equacionar a mudança da situação, pondo em causa a continuidade dessa política. O lema da direita parece, pois, esgotar-se na ‘estabilidade’ do ‘não há alternativa’ á política actual, considerando qualquer outra pior ou mesmo inexistente. Sabe-se qual o papel da evolução política grega no reforço dessa posição, tornando qualquer veleidade de se sair do ordoliberalismo alemão, plasmado no Tratado Orçamental (TO), uma miragem ainda mais longínqua. A lógica da defesa da estabilidade, nestas circunstâncias, levou mesmo Passos Coelho a declarar, em entrevista à CMTV, caso não lhe fosse concedida uma maioria estável para governar, preferir que ela fosse dada ao seu alternante Costa. Contudo, ao fazê-lo com um destinatário concreto demonstrou que a sua aposta afinal não é na estabilidade proporcionada por uma maioria qualquer, mas na continuidade desta política. Ao amarrar Costa à austeridade e aos compromissos do TO, Passos afirma que o PS não constitui alternativa à sua política, mas apenas uma variante.

Ao mesmo tempo e num frenesim mediático sem paralelo (que leva Passos Coelho várias vezes ao dia às TV bem como, numa escala programada, os seus ministros conforme a área a propagandear), assiste-se à promoção dos méritos da política do Governo, apresentada como a única alternativa viável. Baseados num intenso recurso a números moldados sempre sob a perspectiva mais favorável à orientação governamental (não hesitando nesse propósito em truncar e falsear a informação estatística), procuram neles esconder, ignorar ou até apagar (pelo menos da vista dos eleitores) os dramas das pessoas atingidas pela política da austeridade. Com cinismo e um ar pesaroso dirão que a isso foram obrigados em nome dos superiores interesses do País. Esta outra face do medo preocupa-se, pois, em apagar a imagem negra dos que protagonizaram, nos últimos quatro anos, uma política de destruição e rapina dos magros recursos da população sob pretexto desta ter ‘vivido acima das suas posses’.

Certo é que até há pouco tida como impossível, face á desgastada imagem junto da opinião pública, a recuperação eleitoral da coligação da direita parece agora capaz de acontecer. À parte o demérito das oposições – em especial do PS, enquanto maior partido da esquerda, incapaz de apresentar uma alternativa política consistente à imposta austeridade, seja pela indefinição quanto à reestruturação da dívida, seja pela completa submissão ao TO – a gestão das emoções baseadas no ‘medo de perder até o pouco que resta’ está a resultar. O maior impulso, já se referiu, veio do episódio da humilhação a que se sujeitou a Grécia, vergada ao poder espúrio da finança global – após afirmar um orgulhoso ‘OXI’ de quem já não tem nada a perder mesmo percebendo que o desfecho previsível seria a submissão ao ‘diktat’ germânico. Sabe-se, contudo, que o designado ‘exemplo grego’ tem um prazo limitado de validade com a garantia de até Novembro, altura das eleições em Espanha e já depois das portuguesas, a reestruturação da dívida grega não avançar. Depois essa reestruturação será apenas uma questão de calendário.

Dito isto, perante a evidência de que tal irá a acontecer a prazo curto (por pressão do FMI e… da realidade, logo após este período eleitoral), estranha-se que, até agora, este aspecto esteja a ser ignorado na campanha. Apesar da ambígua posição do PS sobre a reestruturação, seria de esperar que tanto o Bloco como o PC o fizessem, no sentido de desmontar aquilo que parece, por enquanto (e seguramente até às eleições), um argumento definitivo contra as pretensões de se apresentar uma alternativa à austeridade. Não obstante dever reconhecer-se que o tratamento do Bloco ao tema ‘Syriza’ (dadas as afinidades conhecidas) tem sido frontal, sóbrio e preciso, não parece descabido, em termos de estratégia eleitoral, sempre que o tema seja suscitado, ir um pouco mais além na argumentação e falar da inevitável próxima reestruturação da dívida grega (para já; outras virão a seguir, entre elas a portuguesa), só não tendo acontecido até agora por razões eleitorais. O risco de que tal possa vir mais tarde a ser cobrado é, neste caso, praticamente nulo.

P.S. Há um aspecto, na actual campanha, que gera alguma perplexidade: o facto de o Livre/Tempo de Avançar ser o único partido designado por ‘candidatura cidadã’! Será que as dos outros não são também ‘cidadãs’? 

domingo, 23 de agosto de 2015

Sobre as leis do mercado: da ilusão da regulação aos artifícios da transparência

Com a globalização, o mercado impôs-se como a forma de organização social dominante em praticamente todos os países do mundo. Mesmo algumas ‘bolsas’ geográficas que se pretendem fora dele não deixam de evidenciar um maior ou menor grau de integração nas redes que o constituem, do comércio à finança, da tecnologia ao conhecimento e à ciência, contri- buindo para homogeneizar numa amálgama cultural, social e até política de contornos ainda não muito definidos, o mundo que virá a seguir. A ideologia neoliberal tenta explicar a forma aparentemente tão universal como este processo se impôs e desenvolveu com a própria natureza do mercado: tratar-se-ia de um modelo de organização natural – regulação automática – regido por leis em tudo idênticas às da natureza, sendo indispensável, por isso mesmo, condicioná-lo o menos possível na sua acção espontânea por forma a obter dele a máxima eficácia.

A História e a vida, no entanto, apressam-se a desmentir esta versão tão harmoniosa e idílica das coisas. Entregue apenas a si próprio e sem quaisquer limitações, o mercado tende a funcionar na base da regra do mais forte e a reproduzir, no limite, o ambiente da selva. A única forma de o tornar ‘civilizado’ e menos autodestrutivo é mesmo impor-lhe regras, estabelecer limites à lógica da sua acção natural – ou automática. Daí, hoje, todos aceitarem, pelo menos de um ponto de vista teórico, a necessidade de se estabelecerem regras de funcionamento social que permitam operacionalizar aquilo que de outro modo descambaria na… selvajaria: o controlo dos automatismos do mercado através de uma regulação externa.

A regulação externa do mercado, contudo, não pode deixar de ser vista e sentida como um entorse na lógica da acção espontânea do mercado, pelo que sempre que as coisas correm mal é à regulação que são assacadas as responsabilidades pelo insucesso. Curiosa e bem elucidativa, aliás, a perspectiva que, para a História real e vivida do capitalismo resulta do conflito oposto entre regulação e espontaneidade, entre mercado regulado e mercado livre. Acusado de interferir demasiado na sociedade, seja directa ou indirectamente pela via da regulação, é ao Estado que os mais lídimos defensores do mercado livre e da iniciativa privada recorrem perante os riscos de descalabro económico das suas políticas (como ainda agora aconteceu com esta persistente crise actual), confirmando a espúria e inconfessada – mas bem genuína – máxima liberal de que lhe cumpre garantir ‘lucros privados, públicos prejuízos’!

Não deixa de ser estranha a posição do suposto ‘regulador automático’ para poder funcionar de forma credível e transmitir confiança, necessitar da supervisão de um dispositivo de reguladores, o que, por outro lado, constitui ainda motivo de inúmeros equívocos e garante o desencadear de todas as diatribes e conflitos contra a intervenção do Estado (enquanto responsável pela ‘regulação dos reguladores’) na vida económica e social, normalmente sob pretexto de excesso de regulamentação burocrática e consequente perda de eficácia das acções que desencadeia. A prática da regulação externa – de pendor mais ‘regulador’ na expressão keynesiana e acentuadamente ‘desregulador’ na versão neoliberal (antes e após 2008) – evidenciou a total ineficácia dos reguladores em conter o mercado e os seus agentes dentro das normas estabelecidas, não obstante reconhecer-se a muito permeável malha legal concedida pelos poderes políticos.

Feita a prova de a regulação automática do mercado não funcionar (a menos que o objectivo seja mesmo a selva social), descredibilizada a eficácia da regulação externa do mercado (perante os dolorosos resultados a que conduziram as suas diversificadas práticas), fala-se agora de forma cada vez mais insistente em transparência, expressão deliberadamente opaca (malgrado o paradoxo) que se presta a múltiplos intentos, porque sem conteúdo objectivo. À parte a admissão nela implícita do fracasso a que as duas clássicas versões ‘reguladoras’ (a automática e a externa) conduziram, trata-se, em última análise, de mais uma tentativa de se apresentar o mercado, enquanto modelo de organização social, isento de responsabilidades dos dramas vividos pelas pessoas que lhe sofrem os seus efeitos, atribuindo-as por inteiro aos legisladores ou aos políticos encarregues de formular as regras do mercado e de as aplicar.

Perante uma imposta integração na ordem global a que presentemente todos se submetem, seja pela força (Iraque, Síria, Líbia…), seja pela humilhação (Grécia…), pouco importa se tal artifício ideológico visa legitimar a forma criminosa como essa integração se tem concretizado – brutal transferência de recursos e aumento das desigualdades, em prol, diga-se, de um exclusivismo cada vez mais selectivo – desviando as atenções do essencial (a organização do mercado) para o contingente (os agentes que conjunturalmente o gerem); ou se, estilhaçados os ‘muros’ geopolíticos da ‘diplomacia de blocos’, resta agora quebrar as frágeis amarras que a objectividade legal da regulação ainda constitui, transferindo o controlo para a mais dúctil subjectividade política da transparência. O resultado último pretendido será sempre ganhar tempo para um novo fôlego do sistema, garantir a ‘pureza’ das leis do mercado e, com elas, consolidar o poder dos que efectivamente o controlam e manipulam em seu proveito exclusivo: à cabeça, os supremos interesses do capital financeiro.

domingo, 2 de agosto de 2015

A fortuna de uns poucos é a miséria de milhões

De tão repetida a frase parece ecoar apenas como slogan já muito desvalorizado, mas o certo é que conserva todo o sentido. Agora, pelos vistos, mais que nunca. Com a crise construída bem à medida dos interesses de uns poucos, acentuaram-se de forma gritante as diferenças entre estes e os milhões da frase. Como na Banca, sector sempre paradigmático dessas diferenças. Um jornal especializado da área económica acaba de se referir às remunerações dos gestores bancários e os valores expostos, ainda que dentro do já habitual, não deixam de chocar, sobretudo pelo confronto com os auferidos pelo comum das pessoas em tempo de crise. Destaca os de dois deles, Santander e Montepio, como os mais bem remunerados, mesmo que o segundo viva numa crise que o pode precipitar no abismo em que outros já caíram (BPN, BPP, BES…). Ainda assim as remunerações auferidas pelos respectivos gestores não diferem substancialmente (excluídos os prémios de gestão).

Mas o que verdadeiramente aqui importa destacar, em abono do sugerido no título deste comentário, é o modo como os valores que justificam essas remunerações se constituem, por forma a chegarem ao bolso de uns poucos, deixando milhões na penúria. E a fórmula é simples, insere-se numa tendência universal comum a todos os sectores económicos (não é, pois, específica da Banca) e tem na base um propósito aparentemente virtuoso e pomposamente proclamado como vital à sobrevivência de cada empresa considerada individualmente, a melhoria da sua produtividade. Só que, invariavelmente, essa melhoria é conseguida à custa da redução do emprego e do despedimento de dezenas, centenas, por vezes milhares (dependendo da dimensão da empresa) de trabalhadores, o que, não obstante a ‘almofada’ dos esquemas de apoio (cortesia do vituperado Estado Social) proporcionados pelos países ricos, reduz drasticamente o nível de vida de quantos se vêm postos nessa situação.

Pouco importa se por trás dessa redução do emprego se encontra a modernização tecnológica da empresa (o que nem sempre acontece, valha a verdade), pois trata-se de um outro debate tantas e tantas vezes já aqui trazido (v.g., aqui, aqui ou aqui). Mas o que está agora em causa é a fórmula de distribuição dos proveitos alcançados com a redução de custos que tal política implica. O fundamento para tão elevadas remunerações dos gestores de topo, como os financeiros, é atribuído ao peso que estes supostamente têm na obtenção de crescentes níveis de rentabilidade (na base da repetitiva lengalenga: para além do ‘valor criado para o accionista’, como gostam de enfatizar, o pretexto é a produtividade assim obtida e, deste modo, o reforço da competitividade para salvaguarda da sobrevivência da empresa), onde a redução de custos é uma variável essencial. Contudo, essa justificação é falsa – a fixação desses elevados níveis de remuneração assenta mais no controlo do poder político pelo financismo neoliberal do que num hipotético aumento da produtividade – ou, no mínimo, totalmente desproporcionada – não há ‘peso’ que justifique tamanha amplitude remuneratória. Depois e não menos relevante, a maior parcela na redução de custos é obtida pela diminuição de pessoas e consequente destruição de postos de trabalho (a expectativa da teoria, adiante-se, é virem a prosperar noutro sector qualquer ou, na ausência de oportunidades de emprego, surgirem da ousadia individual no lançamento de actividades por conta própria através do, como agora se diz, empreendedorismo).

O que enche os bolsos de alguns é, pois, o facto de milhões se verem de repente sem actividade (as mais das vezes em idades de impossível regresso ao ‘mercado do trabalho’), obrigados, as mais das vezes a recorrer a expedientes e habilidades várias, amiúde no âmbito das muitas economias paralelas, quase sempre nos limites da dignidade humana. Enquanto isso, florescem as fortunas de alguns forjadas sobre as ruínas de vidas destruídas e da dignidade espezinhada. Continua a assistir-se ao obsceno desfile periódico dos milhões de lucros gerados nesta ou naquela empresa, auferidos por esta ou aquela personalidade, que os sempre serviçais ‘media’ se apressam a destacar e em quem veneram o reconhecido charme e prestam a vénia devida pelo sucesso, sabendo de antemão, mas raro o explicitando, que tais milhões têm em regra como destino a optimização fiscal no recato e na segurança dos paraísos financeiros só acessíveis aos que conseguem entrar no exclusivo círculo de beneficiários de um sistema cada vez mais desigual.


Esta tendência do sistema para a concentração da riqueza nas mãos de uns poucos pode ser contrariada durante curtos lapsos de tempo, mas ela volta sempre a impor-se historicamente. É bom recordar que, ao longo dos 30 gloriosos anos do pós-guerra, dominados por políticas económicas de pendor keynesiano, o leque salarial na maior parte dos países desenvolvidos não ia além de seis/sete vezes a remuneração média. O actual domínio neoliberal expandiu-o, de forma deliberada, observando-se mesmo (Vicenç Navarro) que “os cem dirigentes empresariais mais bem pagos naqueles países passaram de receber 20 vezes o rendimento médio do trabalhador nos anos oitenta, para 60 vezes em 1998 e 160 vezes em 2012”! Não por acaso, certamente, alguns dos mais assanhados defensores da teoria neoliberal apodam Keynes de estatista e até perigoso marxista, por defender, na sua teoria macroeconómica, um equilíbrio baseado na redução das desigualdades. Este é, aliás – não por acaso – o debate que domina a actualidade política, económica, social e até académica (O Capital no Séc. XXI, de T. Piketty). Mais uma vez Marx, hoje e sempre, no centro dos debates de natureza económica, social e política!

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Medo e humilhação

No emaranhado de ideias e sentimentos que se vai tecendo em torno da Grécia, sobretudo depois da ‘noite da humilhação’ em que a democracia grega foi obrigada a vergar-se perante o alemão Schäuble & Cª., sobram muitas dúvidas e incógnitas, mas emergem também algumas certezas. A mais ouvida e repetida terá sido mesmo – a par da humilhação infligida, já não há volta a dar – a de que o Euro acabou com a rendição grega. Para alguns mais ousados terá sido mesmo a União Europeia que acabou, pois deixa de fazer sentido falar-se mais de uma Europa solidária, como era o propósito que presidiu à sua criação.

Já muito se disse e se escreveu sobre a estratégia do medo – de que a humilhação é peça fundamental – como forma de dominação política. O que se passou com a Grécia é, deste ponto de vista, exemplar e ilustra bem tudo o que aqui está em jogo: uma democracia ‘proibida’ de apresentar alternativas à via única da austeridade; a austeridade utilizada como forma de impor um modelo económico determinado, o modelo neoliberal; o modelo neoliberal da economia apresentado como a única realidade plausível (TINA) e capaz de salvaguardar os interesses nacionais; o interesse nacional sobrepondo-se à solidariedade comunitária; a imposição, na cena internacional, da regra do mais forte sobre os mais fracos; e mais uma vez, a confirmação da supremacia germânica sobre todos os restantes (agora sob disfarce económico)…

Tudo isto e o mais que conduziu à ‘noite da humilhação’, longe do acaso ou de corresponder a esconsas e cabalísticas conjuras, é tão só o resultado lógico da aplicação dos princípios e regras (ou ausência delas) que enformam o sistema capitalista na sua fase actual neoliberal, surge apenas como a extensão natural de um modelo social que faz da competição a sua marca de água e principal critério de ponderação. A não ser travada, a tendência que se nota para uma competição cada vez mais exacerbada potencia o conflito social, político…, e irá seguramente desembocar, tudo o indica, na selva social (como já antes o tinha afirmado). Essa é a lógica inexorável de um sistema que sobrepõe a concorrência – o mercado – à democracia. Ademais, ao privilegiar-se a competição sobre a cooperação num espaço que se pretende de integração económica, legalizando e até incentivando, por exemplo, práticas abusivas no comércio intracomunitário – com a desregulação cada vez mais descarada de diversas formas de dumping (social, fiscal, até comercial, através das famigeradas barreiras técnicas) – quebram-se limites que de algum modo tolhiam os egoísmos nacionais e, por isso mesmo, podiam ainda sustentar alguns laivos da solidariedade implícita na pretensão de uma integração comunitária da Europa.

Neste contexto, o impiedoso Schäuble, apesar da ‘sua’ esmagadora vitória alcançada sobre os gregos, não passa de um efémero títere exercendo um poder delegado pelos mercados, mas destinado à imolação na primeira contrariedade. Já a massacrada realidade grega, não obstante o aparente fracasso ditado pela submissão total a esse poder, representa a expressão de uma alternativa possível (em construção) à conjuntura histórica dominada pelo austeritário TINA que não admite alternativas. Se, por um lado, ficou evidente a debilidade da democracia em enfrentar esses poderes fáticos da sociedade, foi possível, para já, demonstrar a capacidade em se assumirem livremente opções democráticas – e isso contra todas as pressões, chantagens e… medos!

Não resisto a reproduzir aqui o ‘comentário’ de um Anónimo a um texto de Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas a propósito da importância (ou não) de Schäuble no desencadear dos acontecimentos que conduziram à rendição grega ao ‘dictat’ europeu: “Tudo isto me faz lembrar a caótica confusão de um rebanho numa cerca uma vez nela introduzida uma alcateia. Os lobos hão-de comer as ovelhinhas e, quando já as não houver e, apesar do sangrento banquete, ainda existir apetite para mais carnificina, hão-de devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles. Ser o lupino macho alfa um "Schäuble", um "Gunther" ou um "Hans" é indiferente para a adivinhada sorte das ovelhas. Aliás, há agora um lobinho que, querendo agigantar-se, pretende ditar o número de efectivos da alcateia e que dá pelo pouco germânico nome de "Hollande".

Com cara de cachorro apanhado no meio da borrasca ficou o Messias de Massamá, o nosso querido Primeiro: julgava-se, dada a sua canina solicitude para com os poderosos da alcateia, um membro dos componentes do feliz grupo dos predadores de topo, mas mandaram-no ir brincar com os do seu escalão: os cachorrinhos de Espanha e da Grécia. A ele, coitado, que não se cansava de protestar que não era grego. Não se faz. E nem um carinho da mamã loba Merkel ele recebeu... Chocante.” 
A alegoria não é, de modo algum, tranquilizadora, mas é bem certeira na denúncia de uma situação que ameaça a própria sobrevivência da espécie. Pela via da competição desenfreada, da predação ilimitada dos recursos, da destruição imensa de vidas, de os lobos acabarem a ‘devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles’. Ao medo e à humilhação, porém, é possível hoje sobrepor a dignidade e a coragem democráticas que os gregos provaram nas urnas. Destas e em termos práticos sobra ainda a demonstração factual de um Euro incompatível com a democracia, o que torna mais sólida a exigência de rupturas sociais, no âmbito de uma estratégia política que aposte, no imediato, na recuperação da soberania nacional e no termo desta austeridade.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Perplexidade e… expectativas! Certezas? Poucas, por enquanto

A palavra que melhor exprime a reacção ao (imprevisto? frustrante? inevitável?) resultado das negociações em torno da crise grega é perplexidade. Depois de cinco longos e desgastantes meses a negociar e de uma retumbante resposta do povo grego ao referendo convocado precisamente para, assim era entendido, ultrapassar o impasse a que se chegara, afirmando um orgulhoso OXI/NÃO, o resultado menos esperado – ainda que possível e até mais que provável – era a quase rendição total ao ‘diktat’ germânico e dos seus acólitos. Bem entendido, ‘menos esperado’ pelos que alimentavam ilusões na força da democracia expressa no referendo, por todos quantos persistiam na resistência à submissão e na mudança do rumo político. Ao invés, esperado e ansiosamente desejado pelos que apostavam na derrota – e na humilhação! – do intrometido e muito odiado desafiador da normalidade neoliberal e dos riscos de contágio de qualquer alternativa ao poder instituído.

É ainda cedo para uma avaliação global dos acordos firmados, pois muito pouco se sabe de concreto do que foi ajustado. Certo, para já, é que Tsipras evitou o ‘Grexit’! – contrariando assim o objectivo explícito de Schauble & Cª. que apostavam tudo na ‘purificação’ da Zona Euro com a saída da Grécia. À custa de quê? Desde logo sujeitando-se à enorme humilhação de aceitar aquilo que os gregos em referendo haviam corajosamente recusado há uma semana apenas: aparentemente quase todas as linhas vermelhas que o Governo grego afirmara não poder ultrapassar foram ignoradas com a cedência às irrealistas (e irrealizáveis, o tempo irá confirmá-lo) imposições dos credores a que foi obrigado sob estado de absoluta necessidade.

É certo, ainda, que o novo resgate inclui, em contrapartidas, uma quota significativa dos fundos disponibilizados destinada ao relançamento da economia (nunca antes admitido neste tipo de programas), mas ainda sem definição precisa das modalidades que as vão concretizar. E uma vaga promessa de reestruturação da dívida lá mais para diante… Certo, também, é que terá sido salvo, no limite, um sistema financeiro à beira do colapso e, aparentemente, sem hipótese de recurso a um ‘plano B’ que lhe permitisse uma transição indolor para um novo regime. E talvez se encontre aqui a chave de toda esta negociação (ou chantagem negocial?), pois os efeitos do colapso financeiro, a verificar-se, seriam arrasadores em todas as áreas da sociedade grega.

Realisticamente, pois, este ‘3º resgate grego’ encontra-se, por enquanto, envolto num mundo de expectativas. Para além das que decorrem da falta de conhecimento exacto do que consta dos documentos acordados e dos seus posteriores desenvolvimentos concretos (a esclarecer, porventura, nos próximos dias), importa sobretudo referir as que se prendem com as leis de chumbo da realidade. Tanto as que actuam por via da acção consciente e controlada dos homens (através de uma estratégia planeada), quanto as que se impõem pela própria natureza das coisas (em última análise, é a História que se encarrega de as validar).

Pode admitir-se – os antecedentes destes seis meses de luta desgastante por parte da liderança do Syriza reforçam essa tese – que se tratou de um recuo táctico, perante uma situação que se apresentava insuportável, com o Governo grego emparedado entre a inflexível imposição dos credores e a desesperante condição do sistema financeiro da Grécia, prestes a colapsar e que urgia evitar sob pena de danos irreparáveis para toda a sociedade. Tratar-se-ia, deste ponto de vista, de dar um passo atrás, sem que isso represente abdicar da estratégia estabelecida pelo Syriza, na expectativa de, recuperada a ‘normalidade’ financeira, voltar aos objectivos essenciais da luta social e política que o identifica. Os próximos meses ditarão se foi assim ou se, como se tem ouvido com mais frequência, tudo não passou de uma traição à vontade do povo expressa no referendo.

Entretanto, mesmo que nada fora do previsto aconteça (queda do Governo, eleições antecipadas, até uma acção dos militares…), a evolução da realidade pura e dura, a nível europeu e mundial, encarregar-se-á, a breve prazo, de pôr à prova a viabilidade das medidas agora acordadas, pelo que o balanço global da longa noite negocial está longe de poder ser feito, parecendo prematuros os estados de alma aí revelados indo do esmagador triunfalismo à mais profunda depressão. Restam, pois, as expectativas empenhadas. No espaço europeu, em especial, será interessante acompanhar dois domínios que têm vindo a concitar estranha unanimidade (estranha porque junta todos os quadrantes ideológicos no diagnóstico, sem que daí resulte o efeito prático ditado pela lógica): por um lado, considera-se inevitável a urgente reestruturação das designadas dívidas soberanas dado os níveis atingidos, tidos como impagáveis (da Grécia e das demais); por outro, face ao que se caracteriza como Euro disfuncional, reputa-se imprescindível proceder à reconfiguração da política comunitária nas áreas monetária, orçamental e fiscal, de modo a ajustá-la à divergência económica dos países que a integram (sob pena de desintegração).

Mas o grande mérito do processo grego (todo ele um instrutivo manual político, em permanente actualização) foi demonstrar como este Euro torna inútil o recurso aos mecanismos democráticos como forma de decisão social. Uma outra certeza se consolida então: ao excluir a divergência (económica, política…), o Euro é incompatível com a democracia! É incompatível até com a ideia e a prática de uma União Europeia, solidária e… democrática. O contexto neoliberal de domínio do mercado nunca o permitirá.