Ainda mal refeitos da
estupefacção que os atingiu assim que se soube das ‘conversas interessantes’
que o PS estabeleceu com o PCP e Bloco, a incredulidade começa a dar lugar à
ira mal contida contra tamanho desaforo, à mistura com ameaças veladas e
chantagens descaradas (na base de sentenças categóricas sobre os compromissos
externos, sempre agitando os fantasmas da Grécia). A desonestidade com que se
interpreta a intenção dos eleitores pretendendo que esta foi no sentido da ‘maioria europeia dos 70%’ (!) só tem
paralelo com a igual desonestidade com que se pretendeu influenciar/manipular a
sua opinião antes das eleições através do medo. Mas para além da
profusão de opiniões que se vão ouvindo, sem surpresa na sua esmagadora maioria
garantindo a interpretação autêntica dos resultados a partir de uma intuída
genuína intenção dos eleitores, o que mais importa averiguar são os dados
objectivos. E esses apontam, sem sofismas ou enviesamentos opinativos:
1. A
partir dos números apurados nas eleições:
- A maioria de que a coligação de direita dispõe para governar não lhe permite, por si só (como pretendia), um exercício estável. A única forma de o conseguir seria através de um acordo com o PS (excluindo desde logo os restantes dois maiores partidos parlamentares, por razões óbvias).
- Neste Parlamento é possível a constituição de uma outra maioria, integrando o PS, o BE e o PCP – uma coligação de esquerda – estável e tão legítima como qualquer outra, não obstante ser a primeira vez que tal hipótese é posta na democracia portuguesa e as resistências, culturais e outras, que arrasta.
2. Com
base nas declarações e promessas da
campanha:
- Parece deliberadamente esquecida (e daí pouco referida) a afirmação de António Costa de jamais se aliar à Coligação de direita ou viabilizar-lhe um OE, talvez a declaração chave deste processo: todos os eleitores souberam, com antecedência, do projecto pós-eleitoral do PS, o que anula qualquer interpretação que aposte num outro propósito (utilizando linguagem cara à direita, os eleitores já ‘descontaram’, nas urnas, os votos socialistas que não aceitavam uma previsível aliança à esquerda, transferindo-os para a coligação, o que explicaria a sua ‘grande’ votação após anos de austeridade).
- Faz-se por ignorar o conteúdo das três propostas apresentadas por Catarina Martins no frente-a-frente com António Costa para viabilizar um Governo de esquerda liderado pelo PS (a ponto de se colocar o início deste processo de aproximação entre as esquerdas apenas quando Jerónimo de Sousa, já depois das eleições, se declarou disponível para viabilizar um tal Governo).
- Mas também o PCP, ainda antes das eleições, havia manifestado disponibilidade para viabilizar um governo de esquerda, pela prioridade atribuída à luta contra as actuais políticas de austeridade.
A partir daqui e com base na
evolução de uma situação ainda longe de esclarecida, muito menos decidida,
parecem legítimas algumas considerações, como as seguintes:
-
Foi a enorme pressão que resulta da grande votação
no Bloco (e da consolidação da do PCP) que obrigou
o PS a negociar à esquerda, pois de outro modo dificilmente o faria: a
confirmar-se o que é público, um governo
das esquerdas já só não existirá se o PS o não quiser! Daí as referências –
e os apelos – à ‘tradição das negociatas’ por parte de uma direita despeitada.
-
Até que ponto a aparente sonsice das (não)
respostas da coligação às questões postas pelo PS sobre a real situação do País
não esconde dados negativos relevantes, daí resultando uma (arriscada) estratégia de recuo temporário, deixando o ‘problema’ nas
mãos da esquerda (foi assim que Cavaco chegou ao poder: AD–>Bloco
Central–>Cavaco), esperando voltarem reforçados lá mais para diante.
-
Em qualquer circunstância, seja em desespero
seja por estratégia, a direita venderá cara a sua expulsão do
poder: ameaças de desestabilização com recurso à UE, tentativa de (as)segurarem
todos os lugares públicos possíveis (dentro ou fora da Administração) antes de
serem ‘corridos’ (por ex., na Segurança Social)…
Aqui chegados, constituiria grave
erro histórico (com a devida penalização dos responsáveis) desperdiçar a
oportunidade de se constituir uma plataforma
de esquerda subscrita pelas três principais forças que dela se reclamam,
defraudando a enorme expectativa das pessoas por quem se diz que correm estas
negociações – sem prejuízo de se reconhecerem enormes dificuldades na
conciliação das posições de princípio dessas três esquerdas (descontada a
caricatura com que a direita pretende desvalorizar o facto, por o Bloco ser
contra a NATO ou o PCP pretender sair do Euro!). Uma plataforma de esquerda disposta a afirmar, em primeiro lugar, o primado da democracia sobre o poder dos mercados (sem ilusões, mas também sem ambiguidades).
Se prevalecesse o mero cálculo
político, o avolumar de sinais que apontam para uma nova e mais violenta crise
financeira ditaria especiais precauções na elaboração de um acordo de governo
por parte dos diversos parceiros nas negociações – a capacidade da direita no controlo
absoluto dos mecanismos do poder exime-a destes tão triviais cuidados! Mas
seguramente tanto o PS como os partidos à sua esquerda não deixarão de
acautelar todas as eventualidades previsíveis nos termos de um eventual acordo
que venham a firmar. Tanto mais que parece cada vez mais forte a probabilidade
de a crise vir a atingir, mais ou menos violentamente, os países do centro, com
inevitáveis reflexos nas periferias até por via de eventuais (mas admissíveis) alterações
na política europeia.
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