A perspectiva das negociações à
esquerda se saldarem por um acordo de governo, permitiu revelar, talvez como
nunca antes havia ainda acontecido, a verdadeira natureza da direita
portuguesa. Da sobranceria inicial perante a mera intenção dos partidos em
negociar, ao crescente nervosismo expresso numa irritação por vezes insultuosa,
até ao clima de chantagem e ameaças (à medida que se foi convencendo que a intenção
era para levar a sério e não apenas uma forma de ‘pressão negocial’), a direita
nacional, vertida nos dois partidos que praticamente a esgotam (CDS/PP e
PPD/PSD), demonstrou à evidência que quem a constitui – e quem conjunturalmente
a lidera e a representa – revela os tiques totalitários com que frequentemente pretende
estigmatizar (e excluir) a esquerda.
Importa esclarecer, entretanto,
que o totalitarismo que impregna a ideologia e a prática da direita nacional
lhe advém por duas vias. A primeira, universal e presente na globalidade das formações
de direita (e em muitas ditas de esquerda, a que o PS até aqui não foi imune), decorre
da ideologia do pensamento único neoliberal, imposto pelo que se designa de globalização
inevitável construída na base da liderança incontestada dos mercados
– expressa nas políticas de austeridade. Ao excluir qualquer alternativa
fora desta concepção (que o acrónimo TINA sintetiza), esta ideologia revela-se
antidemocrática e totalitária, ao nível dos totalitarismos que causticaram o
séc. XX. O excessivo e acéfalo seguidismo evidenciado pelos prosélitos da
versão lusa desta componente universal na formação do totalitarismo, pode
explicar-se pelos resquícios, ainda presentes em alguns estratos, da herança
salazarenta e da nostalgia colonialista (sobretudo nos ‘retornados’ mais
revanchistas) – ambos contribuindo para diferenciar a direita portuguesa das
suas congéneres europeias. Isso explicaria também o facto da extrema-direita em
Portugal manter expressão residual (bem longe das conhecidas na Europa):
coexistindo sem atritos no mesmo espaço partidário da direita tradicional, não vê
vantagens nem necessita de se autonomizar.
Foi a esta promíscua amálgama de
ideologias e interesses (dos negócios aos partidários), que o PS de António
Costa, contra todos os Assis nele infiltrados, decidiu dizer não, porventura
antevendo o risco de poder vir a perder o que resta da sua identidade social diluindo-se
numa prática política que tudo submete ao poder dos mercados. De pronto, a
histeria instalou-se na direita. Na direita dos políticos, dos comentadores,
dos analistas TINA do pensamento único sem lugar a alternativas, dos democratas
com pânico de, afinal, a democracia poder funcionar, todos manifestando uma
incontida ira contra os evitáveis riscos de aventuras políticas ao arrepio da
vontade de Bruxelas/Berlim. Costa é acusado de falta de ética, de golpista, de
traição (o episódio Seguro…). A perspectiva de um governo à esquerda é
caracterizada como ‘fraude eleitoral’, até mesmo como ‘golpe de estado’! Nunca
como agora surgiram tantos especialistas em marxismo, leninismo, marxismo-leninismo,
trotskismo e afins. Duvida-se que 1% sequer dos que esgrimem esses conceitos,
as mais das vezes utilizados apenas para apostrofar adversários ou evidenciar
negros presságios, saiba um mínimo do que eles envolvem. Nos seus raciocínios
estereotipados, pensarão talvez que bastará a simples invocação do nome para incutir
o terror desejado!
Não podem ignorar-se num futuro
governo das esquerdas as dificuldades próprias de partidos com programas muito
diferentes em áreas sensíveis, embora as grandes divergências entre PS e os
partidos à sua esquerda – em torno do Tratado Orçamental (TO), Euro e
renegociação da dívida – aparentem ser mais teóricas que práticas. Em teoria,
o PS afirma-se a favor do Euro e do TO, contra a renegociação da dívida;
Bloco e PCP dizem-se contra as duas primeiras, lutam pela
terceira. Na prática, no entanto, é possível observar:
-
Sobre o TO,
é hoje quase unânime a opinião de que é impossível de cumprir, nomeadamente no
preceito de redução da dívida para 60% do PIB em ‘apenas’ 20 anos, nas
condições económicas actuais (daí o PS falar na necessidade de uma leitura inteligente do Tratado, que mais
não é que a sua derrapagem inevitável).
-
Quanto ao Euro,
as assimetrias da sua construção só agora começam a ser evidenciadas e com
enorme brutalidade, a nível económico e nomeadamente nos efeitos sociais: na
prática todos estão de acordo que não pode continuar como está. Necessita,
pois, de um maior amadurecimento para se confirmar como moeda inviável levando,
portanto, à sua alteração ou mesmo à sua rejeição.
-
Por último, a renegociação da dívida irá colocar-se, mais cedo ou mais tarde
(quanto mais tarde o for, maior a probabilidade de os seus efeitos serem mais
desastrosos para todos, devedores e credores). Sabendo-se ser inevitável, falta
apenas saber quando irá acontecer. Um dos actuais “vice” de Costa (Pedro Nuno
Santos) foi co-autor (com F. Louçã, R. Cabral e Eugénia Pires) de uma proposta (modesta?)
de renegociação da dívida.
Perante a cada vez mais evidente
degradação das condições financeiras – a nível nacional, europeu e até mundial
– a tarefa de António Costa e dos seus prováveis parceiros de esquerda no
suporte de uma solução destinada acima de tudo a apear o poder totalitário da austeridade e em repor um mínimo de
decência na vida colectiva afigura-se tremendamente difícil. Após as eleições,
a esquerda (PS, BE, PCP) viu-se confrontada com um dilema político: assumir os
resultados para, na sequência da campanha, estabelecer um acordo histórico para governar, travando a austeridade, ciente dos
riscos de afrontar uma situação de extrema debilidade financeira, com perspectivas
de agravamento; ou, na avaliação desses riscos, por mero tacticismo evitar o
acordo e aguardar melhor oportunidade para derrubar o governo já empossado, permitindo
à direita continuar no poder mantendo a austeridade permanente – além de não
garantir sucesso, esse tacticismo acabaria por alienar todo o apoio eleitoral. A
decisão, para além de todos os calculismos e pesados os riscos e os
compromissos, só podia ser devolver às pessoas a vida roubada pela austeridade.
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