quarta-feira, 29 de julho de 2015

Medo e humilhação

No emaranhado de ideias e sentimentos que se vai tecendo em torno da Grécia, sobretudo depois da ‘noite da humilhação’ em que a democracia grega foi obrigada a vergar-se perante o alemão Schäuble & Cª., sobram muitas dúvidas e incógnitas, mas emergem também algumas certezas. A mais ouvida e repetida terá sido mesmo – a par da humilhação infligida, já não há volta a dar – a de que o Euro acabou com a rendição grega. Para alguns mais ousados terá sido mesmo a União Europeia que acabou, pois deixa de fazer sentido falar-se mais de uma Europa solidária, como era o propósito que presidiu à sua criação.

Já muito se disse e se escreveu sobre a estratégia do medo – de que a humilhação é peça fundamental – como forma de dominação política. O que se passou com a Grécia é, deste ponto de vista, exemplar e ilustra bem tudo o que aqui está em jogo: uma democracia ‘proibida’ de apresentar alternativas à via única da austeridade; a austeridade utilizada como forma de impor um modelo económico determinado, o modelo neoliberal; o modelo neoliberal da economia apresentado como a única realidade plausível (TINA) e capaz de salvaguardar os interesses nacionais; o interesse nacional sobrepondo-se à solidariedade comunitária; a imposição, na cena internacional, da regra do mais forte sobre os mais fracos; e mais uma vez, a confirmação da supremacia germânica sobre todos os restantes (agora sob disfarce económico)…

Tudo isto e o mais que conduziu à ‘noite da humilhação’, longe do acaso ou de corresponder a esconsas e cabalísticas conjuras, é tão só o resultado lógico da aplicação dos princípios e regras (ou ausência delas) que enformam o sistema capitalista na sua fase actual neoliberal, surge apenas como a extensão natural de um modelo social que faz da competição a sua marca de água e principal critério de ponderação. A não ser travada, a tendência que se nota para uma competição cada vez mais exacerbada potencia o conflito social, político…, e irá seguramente desembocar, tudo o indica, na selva social (como já antes o tinha afirmado). Essa é a lógica inexorável de um sistema que sobrepõe a concorrência – o mercado – à democracia. Ademais, ao privilegiar-se a competição sobre a cooperação num espaço que se pretende de integração económica, legalizando e até incentivando, por exemplo, práticas abusivas no comércio intracomunitário – com a desregulação cada vez mais descarada de diversas formas de dumping (social, fiscal, até comercial, através das famigeradas barreiras técnicas) – quebram-se limites que de algum modo tolhiam os egoísmos nacionais e, por isso mesmo, podiam ainda sustentar alguns laivos da solidariedade implícita na pretensão de uma integração comunitária da Europa.

Neste contexto, o impiedoso Schäuble, apesar da ‘sua’ esmagadora vitória alcançada sobre os gregos, não passa de um efémero títere exercendo um poder delegado pelos mercados, mas destinado à imolação na primeira contrariedade. Já a massacrada realidade grega, não obstante o aparente fracasso ditado pela submissão total a esse poder, representa a expressão de uma alternativa possível (em construção) à conjuntura histórica dominada pelo austeritário TINA que não admite alternativas. Se, por um lado, ficou evidente a debilidade da democracia em enfrentar esses poderes fáticos da sociedade, foi possível, para já, demonstrar a capacidade em se assumirem livremente opções democráticas – e isso contra todas as pressões, chantagens e… medos!

Não resisto a reproduzir aqui o ‘comentário’ de um Anónimo a um texto de Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas a propósito da importância (ou não) de Schäuble no desencadear dos acontecimentos que conduziram à rendição grega ao ‘dictat’ europeu: “Tudo isto me faz lembrar a caótica confusão de um rebanho numa cerca uma vez nela introduzida uma alcateia. Os lobos hão-de comer as ovelhinhas e, quando já as não houver e, apesar do sangrento banquete, ainda existir apetite para mais carnificina, hão-de devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles. Ser o lupino macho alfa um "Schäuble", um "Gunther" ou um "Hans" é indiferente para a adivinhada sorte das ovelhas. Aliás, há agora um lobinho que, querendo agigantar-se, pretende ditar o número de efectivos da alcateia e que dá pelo pouco germânico nome de "Hollande".

Com cara de cachorro apanhado no meio da borrasca ficou o Messias de Massamá, o nosso querido Primeiro: julgava-se, dada a sua canina solicitude para com os poderosos da alcateia, um membro dos componentes do feliz grupo dos predadores de topo, mas mandaram-no ir brincar com os do seu escalão: os cachorrinhos de Espanha e da Grécia. A ele, coitado, que não se cansava de protestar que não era grego. Não se faz. E nem um carinho da mamã loba Merkel ele recebeu... Chocante.” 
A alegoria não é, de modo algum, tranquilizadora, mas é bem certeira na denúncia de uma situação que ameaça a própria sobrevivência da espécie. Pela via da competição desenfreada, da predação ilimitada dos recursos, da destruição imensa de vidas, de os lobos acabarem a ‘devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles’. Ao medo e à humilhação, porém, é possível hoje sobrepor a dignidade e a coragem democráticas que os gregos provaram nas urnas. Destas e em termos práticos sobra ainda a demonstração factual de um Euro incompatível com a democracia, o que torna mais sólida a exigência de rupturas sociais, no âmbito de uma estratégia política que aposte, no imediato, na recuperação da soberania nacional e no termo desta austeridade.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Perplexidade e… expectativas! Certezas? Poucas, por enquanto

A palavra que melhor exprime a reacção ao (imprevisto? frustrante? inevitável?) resultado das negociações em torno da crise grega é perplexidade. Depois de cinco longos e desgastantes meses a negociar e de uma retumbante resposta do povo grego ao referendo convocado precisamente para, assim era entendido, ultrapassar o impasse a que se chegara, afirmando um orgulhoso OXI/NÃO, o resultado menos esperado – ainda que possível e até mais que provável – era a quase rendição total ao ‘diktat’ germânico e dos seus acólitos. Bem entendido, ‘menos esperado’ pelos que alimentavam ilusões na força da democracia expressa no referendo, por todos quantos persistiam na resistência à submissão e na mudança do rumo político. Ao invés, esperado e ansiosamente desejado pelos que apostavam na derrota – e na humilhação! – do intrometido e muito odiado desafiador da normalidade neoliberal e dos riscos de contágio de qualquer alternativa ao poder instituído.

É ainda cedo para uma avaliação global dos acordos firmados, pois muito pouco se sabe de concreto do que foi ajustado. Certo, para já, é que Tsipras evitou o ‘Grexit’! – contrariando assim o objectivo explícito de Schauble & Cª. que apostavam tudo na ‘purificação’ da Zona Euro com a saída da Grécia. À custa de quê? Desde logo sujeitando-se à enorme humilhação de aceitar aquilo que os gregos em referendo haviam corajosamente recusado há uma semana apenas: aparentemente quase todas as linhas vermelhas que o Governo grego afirmara não poder ultrapassar foram ignoradas com a cedência às irrealistas (e irrealizáveis, o tempo irá confirmá-lo) imposições dos credores a que foi obrigado sob estado de absoluta necessidade.

É certo, ainda, que o novo resgate inclui, em contrapartidas, uma quota significativa dos fundos disponibilizados destinada ao relançamento da economia (nunca antes admitido neste tipo de programas), mas ainda sem definição precisa das modalidades que as vão concretizar. E uma vaga promessa de reestruturação da dívida lá mais para diante… Certo, também, é que terá sido salvo, no limite, um sistema financeiro à beira do colapso e, aparentemente, sem hipótese de recurso a um ‘plano B’ que lhe permitisse uma transição indolor para um novo regime. E talvez se encontre aqui a chave de toda esta negociação (ou chantagem negocial?), pois os efeitos do colapso financeiro, a verificar-se, seriam arrasadores em todas as áreas da sociedade grega.

Realisticamente, pois, este ‘3º resgate grego’ encontra-se, por enquanto, envolto num mundo de expectativas. Para além das que decorrem da falta de conhecimento exacto do que consta dos documentos acordados e dos seus posteriores desenvolvimentos concretos (a esclarecer, porventura, nos próximos dias), importa sobretudo referir as que se prendem com as leis de chumbo da realidade. Tanto as que actuam por via da acção consciente e controlada dos homens (através de uma estratégia planeada), quanto as que se impõem pela própria natureza das coisas (em última análise, é a História que se encarrega de as validar).

Pode admitir-se – os antecedentes destes seis meses de luta desgastante por parte da liderança do Syriza reforçam essa tese – que se tratou de um recuo táctico, perante uma situação que se apresentava insuportável, com o Governo grego emparedado entre a inflexível imposição dos credores e a desesperante condição do sistema financeiro da Grécia, prestes a colapsar e que urgia evitar sob pena de danos irreparáveis para toda a sociedade. Tratar-se-ia, deste ponto de vista, de dar um passo atrás, sem que isso represente abdicar da estratégia estabelecida pelo Syriza, na expectativa de, recuperada a ‘normalidade’ financeira, voltar aos objectivos essenciais da luta social e política que o identifica. Os próximos meses ditarão se foi assim ou se, como se tem ouvido com mais frequência, tudo não passou de uma traição à vontade do povo expressa no referendo.

Entretanto, mesmo que nada fora do previsto aconteça (queda do Governo, eleições antecipadas, até uma acção dos militares…), a evolução da realidade pura e dura, a nível europeu e mundial, encarregar-se-á, a breve prazo, de pôr à prova a viabilidade das medidas agora acordadas, pelo que o balanço global da longa noite negocial está longe de poder ser feito, parecendo prematuros os estados de alma aí revelados indo do esmagador triunfalismo à mais profunda depressão. Restam, pois, as expectativas empenhadas. No espaço europeu, em especial, será interessante acompanhar dois domínios que têm vindo a concitar estranha unanimidade (estranha porque junta todos os quadrantes ideológicos no diagnóstico, sem que daí resulte o efeito prático ditado pela lógica): por um lado, considera-se inevitável a urgente reestruturação das designadas dívidas soberanas dado os níveis atingidos, tidos como impagáveis (da Grécia e das demais); por outro, face ao que se caracteriza como Euro disfuncional, reputa-se imprescindível proceder à reconfiguração da política comunitária nas áreas monetária, orçamental e fiscal, de modo a ajustá-la à divergência económica dos países que a integram (sob pena de desintegração).

Mas o grande mérito do processo grego (todo ele um instrutivo manual político, em permanente actualização) foi demonstrar como este Euro torna inútil o recurso aos mecanismos democráticos como forma de decisão social. Uma outra certeza se consolida então: ao excluir a divergência (económica, política…), o Euro é incompatível com a democracia! É incompatível até com a ideia e a prática de uma União Europeia, solidária e… democrática. O contexto neoliberal de domínio do mercado nunca o permitirá.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Da irrelevância da social-democracia actual…

Foi manifesto o desconforto da maioria dos líderes mundiais, em especial os europeus, perante os resultados do referendo na Grécia. O inesperado e avassalador ‘NÃO’ dos gregos à austeridade determinou de imediato a subida de nível na escalada do confronto que as Instituições e os Governos Europeus haviam assumido logo que o Syriza ganhou, em Janeiro passado, as eleições na Grécia. A afronta e sobretudo o risco de contágio da rebeldia grega perante o que até então era a normalidade ditada pelas regras da ortodoxia neoliberal, imposta pelo directório franco-germânico (na prático, só germânico), ditou uma estratégia de desgaste da nova liderança grega ao longo deste quase meio ano do seu exercício que esperavam tivesse resultados no referendo entretanto convocado, sublinhe-se, à sua revelia – pois os riscos da democracia, de acordo com o principal guru da Escola, M. Friedman, natsão de evitar! Que culminou agora, contra as suas expectativas, com a suprema afronta do rotundo NÃO à austeridade por parte do ingrato eleitorado grego!

Sintomático foi ver que as primeiras e mais agressivas reacções aos resultados surgiram da ala social-democrata alinhada com a ortodoxia neoliberal em nome das instituições a que presidem: o social-democrata alemão Schulz (presidente do Parlamento Europeu), o trabalhista holandês Dijsselbloem (presidente do Eurogrupo) e o líder social-democrata alemão Sigmar Gabriel (vice-chanceler de Merkel), foram pressurosos e os mais assanhados nas críticas à decisão soberana dos gregos. ‘Lamentável’ terá sido até o epíteto menos ofensivo para caracterizar o estado de alma da liderança europeia, pronunciado pelo moço de recados de Merkel/Schauble, o impronunciável Dijsselbloem. Mesmo os socialistas franceses, que ganharam as eleições prometendo acabar com a austeridade que já então sufocava a Europa (e a democracia) e acabaram a fazer o seu contrário, não obstante o evidente incómodo perante tais resultados, rapidamente passaram a alinhar pelos mandantes de Berlim. Como seguramente fará o PS português se (ou quando) ganhar as eleições.

Não foi certamente por acaso que todas estas reacções partiram, em primeira mão, dos principais líderes da social-democracia europeia. Afinal eles lutam pela sobrevivência política - acossados, imagine-se, pela esquerda radical! Para os que ainda alimentavam dúvidas ou ilusões, começa agora a perceber-se bem que a social-democracia não representa um projecto autónomo do modelo neoliberal e que se tornou irrelevante como falsa alternativa na política actual. Pior ainda, percebe-se finalmente que apenas tem servido de suporte à ascensão de um modelo de sociedade cujo desenvolvimento lógico, assente nas regras do livre mercado (pela via da gradual desregulação de que falam gulosamente os seus epígonos), conduz à inevitável imposição da lei da selva nas relações sociais. Mascarada ou não pelos formalismos de uma democracia sem conteúdo, porque sem direitos políticos reais – estes são, na prática, um exclusivo dos detentores do poder económico, num regresso às arrecuas ao ‘voto censitário’ dos primórdios do liberalismo (político e económico).

… à última oportunidade da democracia

E eis-nos, então, chegados à prova real proporcionada pelas negociações em curso em torno desta arrastada (propositadamente) crise grega pós-referendo: para uns (instituições europeias, em nome dos credores) esta é a última oportunidade que a Grécia tem de, submetendo-se às regras da austeridade, se manter integrada na UE da normalidade liberal; para alguns, poucos e cada vez menos, a resistência grega, legitimada pelos assombrosos resultados do referendo, pode traduzir-se ainda na última oportunidade dada à democracia. Muito para além de todas as cogitações de ordem económica (à cabeça, a salvação do Euro), geoestratégicas (NATO vs. Rússia; porta de entrada na Europa de fluxos imigratórios ilegais) ou até idiossincrasias culturais, que insistentemente perpassam nos ‘media’, importa sobretudo apurar qual o valor actual da democracia.

Ver-se-á até onde resiste a falácia dos argumentos utilizados para desvalorizar o resultado do referendo grego do passado domingo – como o dos restantes países do Euro serem tão democráticos quanto a Grécia (mas os gregos não querem interferir na vida interna desses países…); ou o de quando se entra num Club se aceitarem as suas regras (hoje é unânime que, no ‘Club do Euro’, a moeda única é disfuncional e o Tratado Orçamental impraticável…). No caso provável da posição grega não vingar – o que acontecerá se tiver de aceitar mais austeridade ou for obrigada a sair do Euro – ficará feita a demonstração da inutilidade da consulta popular através do voto. E perante o fecho das vias democráticas na defesa dos interesses das pessoas, restar-lhes-á ou a submissão aos designados poderes fáticos da sociedade – os famigerados mercadosou a alternativa do recurso à via revolucionária. Qual destes cenários a Europa institucional e normalizada estará a ponderar?

domingo, 5 de julho de 2015

"A democracia funciona", diz Varoufakis. Irá funcionar mesmo?

O voto de um europeu directamente implicado nos resultados do referendo grego de hoje, contra a austeridade, pela dignidade