quarta-feira, 26 de novembro de 2014

‘Paraísos fiscais’: a desigualdade contra a democracia e o progresso

A recente investigação jornalística sobre a dimensão e o funcionamento do imenso ‘off-shore’ que constitui a praça financeira do Luxemburgo, mais do que expor ou descobrir alguma novidade ainda não revelada, permitiu uma maior aproximação das pessoas ao opaco mundo dos denominados ‘paraísos fiscais’, pilar básico dessa globalização financeira na origem da actual crise global, levando-as a compreender melhor para o que servem – e, sobretudo, a quem servem! Permitiu explicar de forma concreta basicamente duas coisas:

·         Por um lado, as fortunas colossais que alguns despudoradamente exibem, bem ao lado do esforço exigido à maioria para apenas poder sobreviver, quando não mesmo vegetar na mais abjecta miséria;
·         Por outro, que o valor da enorme fuga aos impostos assim legalmente permitida, tem de ser compensado (ou reposto) pelos impostos exigidos (ou extorquidos?) à enorme massa dos contribuintes – a quem legalmente não é permitido fugir-lhes – dos países de onde elas provêm.

Não foi só o episódio do Luxemburgo a relembrar, ultimamente, a existência desses esconsos paraísos fiscais, cuja finalidade é precisamente ocultar a origem dos recursos financeiros aí sediados e permitir-lhes privilégios tributários. Do já quase longínquo desmoronar do BES, aos recentes ‘vistos gold’ e agora ao novíssimo escândalo ‘Sócrates’, todos eles se encontram, directa ou indirectamente, relacionados com contas ‘off-shores’ – privilegiados instrumentos utilizados para o branqueamento de capitais, fuga ao fisco e corrupção, suportados na logística proporcionada por 72 destinos a nível mundial, disponíveis à distância de um simples clique informático, ainda que acessíveis apenas a um reduzidíssimo escol de pessoas! A absoluta mobilidade de capital que permitem transforma-os na plataforma ideal de todas as chantagens sobre os Estados Nacionais e no principal meio económico utilizado pelas elites para garantirem o seu diferenciado estatuto social.

Nas sociedades actuais, dominadas pelo capital, uma tendência sobressai de forma clara e chocante, o aumento das desigualdades, na base dos rendimentos auferidos (seja qual for a sua proveniência). Choca sobretudo que, num mundo caracterizado pelos imensos recursos técnicos e produtivos, as diferenças de rendimentos entre as pessoas, em lugar de diminuírem estejam a aumentar, com tendência para se aprofundarem cada vez mais. Uma parte da teoria económica vê nisso até a causa da crise endémica que persiste em afectar o mundo desenvolvido (sobretudo a Europa, é certo, mas minando o conjunto em geral). Stiglitz, com ‘O preço da desigualdade’, arrecada o mérito de haver tratado o tema de forma mais sistematizada, abrangente e autónoma. Mas outros o têm incluído nas suas análises sobre assuntos diversos, dando-lhe relevância primordial.

O economista do momento, Thomas Piketty, desenvolve o tema do livro que acaba de aparecer em tradução portuguesa, ‘O Capital do Séc.XXI’, em torno do problema da distribuição dos rendimentos. Através de um laborioso trabalho estatístico comprova como só foi possível inverter a tendência para o aprofundamento das desigualdades, que ocorreu ao longo do séc. XIX, por efeito das duas guerras mundiais na primeira metade do séc.XX. Segundo ele foram as transformações sociais e políticas a que deram origem, nomeadamente o processo de descolonização e a luta por uma efectiva igualdade de género, que mais peso tiveram na distribuição dos rendimentos, no sentido de uma maior igualdade, ao invés do que apontavam as teorias mais optimistas do desenvolvimento capitalista (como a de Kuznets) ao tentarem explicar que as diferenças se esbatiam como resultado natural do próprio crescimento económico.

Não sendo de excluir a deflagração de um conflito generalizado, contudo a probabilidade de isso vir a acontecer nas actuais circunstâncias políticas e geoestratégicas – não obstante os esforços em contrário de alguns (veja-se a agressiva política belicista da NATO) – considera-se mínima. Mas os efeitos devastadores de um tal conflito não deixam, ainda assim, sob formas diferenciadas, de se verificar a todo o momento. Mais espaçados no tempo, menos cruentos nas suas manifestações externas, mas não menos violentos para a vida das pessoas atingidas: pelos milhões de postos de trabalho destruídos, de pessoas obrigadas a recorrer à subsistência no exterior, de jovens a quem se cortaram as expectativas, emparedados entre um quase (ultra)passado Estado Social saído da II Guerra e um futuro cada vez mais incerto e longínquo…

Talvez que a principal glória dos fanáticos do mercado seja mesmo a de terem conseguido introduzir no senso comum algumas falsidades apresentadas como verdades absolutas. Hoje é comum ouvir-se falar nos efeitos positivos da globalização, pois esta, dizem, tirou milhões da pobreza, sem curar de saber e se apurar o grau de destruição, a nível do emprego e no Estado Social, provocado pela completa mobilidade do capital. Para contrariar a chantagem que este exerce através da ameaça de deslocalização em nome de melhores condições de remuneração, há que instituir um princípio semelhante ao do ‘poluidor-pagador’, já universalmente aceite e assumido, que obrigue o capital que destrói empresas e empregos e força o esmagamento das compensações sociais do Estado, a pagar pelos efeitos da destruição resultante desse movimento. O que passa, antes de mais, pelo controle desses tais ditos paraísos fiscais, cuja viabilidade depende ‘apenas’ da percepção, por parte dos decisores políticos mundiais, do risco sistémico que correm (recordo, mais uma vez, que uma tal medida chegou a constar de um plano de reformas aprovado pelos ministros das finanças da UE, em 10 de Novembro de 2008, no auge da onda de pânico gerada na sequência da crise do ‘sub-prime’!).