quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A privatização da eficiência

Por mero acaso, ao tentar mudar de canal, caio a meio de um aceso debate sobre ‘sector público - sector privado’ – pelo menos este é o tema que, no momento em que nele irrompo, Joana Amaral Dias desenvolve, com a emoção e a convicção que sempre põe na defesa das suas causas. Depressa me apercebo que o mote para a discussão de tal tema foi a proposta do BE sobre a nacionalização do sector energético (GALP, EDP,...), enquanto sector económico estratégico, para os consumidores e o futuro do País. Uma das opositoras, Estela Barbot (desconheço as suas referências) recorre à vulgaridade dos mais estereotipados argumentos, normalizados segundo o molde liberal anterior à crise, na defesa do insubstituível papel das empresas privadas na criação de valor (!), contra a negregada asfixia do cidadão pelo omnipresente e ineficiente Estado!!

Não pretendo aqui enveredar pela via que tomou a discussão, mas direi, entretanto, que concordo plenamente com a proposta do BE – e vou mesmo mais longe na definição do que, sobretudo hoje, após a crise financeira, deveria ser considerado ‘estratégico’ (já o expus noutro local), o que daria para um tema à parte. Mas o que mais neste episódio me motivou foi, antes, um argumento vindo de outra interlocutora no programa, Isabel Stilwell, cronista de várias publicações e de variáveis méritos (tem dias), ao esgrimir, de forma concludente, que o modelo das nacionalizações já havia sido testado entre nós e... ‘a experiência não tinha corrido lá muito bem...Pelo menos para os consumidores, a GALP, EDP, REN... agora funcionam muito melhor, rematou. Conclui-se, pois, que o que nos colocou na modernidade foram as privatizações!

Perante tão (aparentemente) óbvia constatação, restou à Joana, por cima da triunfante vozearia instalada, contrapor que, por idênticas e até reforçadas razões – pois constitui a prática mais recente – se deveria condenar então o modelo liberal, afinal o responsável pela derrocada económica actual. Mas aí, não: sobre o desconforto e o mal-estar sentido pelos milhares de desempregados produzidos pela crise, prevalece o conforto e o bem-estar auferido pelos presentes – atribuído, a contragosto (o desconforto que daí resulta, é evidente), ao modelo que originou a crise!

À parte a pertinência da observação, importa sobretudo avaliar o peso dos argumentos esgrimidos neste episódio (e normalmente invocados sempre que o tema vem à baila) contra a intervenção do Estado na vida económica: acima de todos, o da gestão estatal ineficiente – por oposição à eficiente gestão privada; e, quase como consequência, o dos benefícios dos serviços privados para os consumidores – bem expressos na miríade de produtos que a globalização proporcionou, revolucionando o modo de vida das pessoas.

Ora, o que esta crise melhor demonstrou foi a enorme mistificação montada em torno da ‘eficiência da gestão privada’, exactamente no sector em que ela parecia mais rigorosa (do ponto de vista da competência técnica), intocável (do ponto de vista da seriedade), sofisticada (do ponto de vista da iniciativa e criatividade) – o nevrálgico sistema bancário. A ponto de ter ocorrido – ironia das ironias! – o recurso a gestores públicos (CGD) para se sanear (salvar?) a gestão de uma instituição privada (BCP)!!! Para já não falar do despudor na socialização dos prejuízos! Mal comparado, o presumido exclusivo da eficiência aos privados só tem paralelo na situação, tantas vezes glosada, da falta de produtividade do trabalhador português – mas apenas em Portugal, porque quando emigrado, o mesmo trabalhador transforma-se em altamente produtivo! Hum...

Por outro lado, torna-se indispensável desmistificar também a ideia de que a sensação de abundância actual se deve ao modelo liberal implantado, propiciador dos grandes acontecimentos técnicos que revolucionaram o nosso quotidiano. Sobre os produtos que fazem a nossa actual felicidade, é bom então recordar que a onda tecnológica que os origina remonta (pelo menos) à década de setenta, largos anos antes, pois, da chegada de Teatcher e Reagan ao poder e ao despontar da onda liberal que submergiu o modelo de gestão das empresas (e das sociedades) – este na origem, sim, mas da crise que ameaça pôr em causa os benefícios da onda tecnológica! Porque da política de preços da GALP ou da electricidade 25% mais cara que em Espanha, nem é bom falar!

E por aqui me fico, por ora, nestas reflexões que dariam pano para mangas...

domingo, 16 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - VI

Transição energética, transformação social: o sistema na encruzilhada

A questão energética, é bem conhecido, encontra-se no centro da civilização moderna ocidental e do desenvolvimento tecnológico que a caracteriza, sendo a principal responsável pelos seus actuais elevados níveis de conforto e de consumo. Na verdade, todo o ‘modo de vida ocidental’, construído ao longo dos menos de 200 anos últimos, está baseado e depende da utilização intensa de energia, nomeadamente a partir de recursos fósseis, levando nesse curto espaço temporal, como é sabido, ao dispêndio (a caminho da exaustão) de reservas geradas e acumuladas ao longo de milhões de anos. Por isso mesmo, de entre todas as condições técnicas de funcionamento das sociedades capitalistas, esta questão foi a que desde sempre suscitou maiores preocupações e continua a levantar grandes dúvidas:

preocupações pelas actuais condições de produção e exploração, muito dependentes das fontes de energia fósseis (carvão, petróleo e gás natural, essencialmente), devido aos efeitos tanto na acentuada degradação do ambiente, quanto no rápido esgotamento dos recursos, parecendo ambos concertados em comprometer o futuro;
dúvidas quanto à efectiva capacidade técnica para criar alternativas viáveis, as ambicionadas ‘energias limpas’ ou renováveis, no quadro dos interesses que actualmente dominam o mercado – cabendo aqui colocar-se a questão de se saber qual o efeito de bloqueamento do poderoso ‘lobby’ do petróleo no seu desenvolvimento tecnológico ou no seu aproveitamento industrial.

Pode, assim, concluir-se que a ‘energívora’ civilização ocidental e a sua dependência dos combustíveis fósseis empurra o mundo inexoravelmente para um dilema: o colapso anunciado por esgotamento deste tipo de recursos ou a descoberta de alternativas viáveis. Certo é que, qualquer que seja o seu desfecho, as consequências para o modo de vida actual serão devastadoras. Refira-se, desde logo, que não parece de todo fora de propósito falar-se da possibilidade (cada vez mais provável perante a pressão sobre o consumo conjugada com a dificuldade na reposição dos stocks entretanto esgotados), de o mundo vir a confrontar-se, a breve prazo, com um autêntico ‘colapso energético’, se entretanto não forem descobertas alternativas viáveis (renováveis) à energia fóssil, o que arrastaria o ‘mundo ocidental’ para o caos – muito pior que o já vivido actualmente pelos restantes 2/3 da humanidade!

Mas nem será necessário chegar tão longe para se considerar a possibilidade da eclosão, que se tem como cada vez mais provável, de fortes perturbações sociais – sejam elas provocadas por razões essencialmente económicas (crise financeira global, o desencadear dum crash bolsista em cadeia, ou... uma ‘crise’ energética), ou geradas sob pressão de movimentos sociais de grande impacto (migrações maciças, terrorismo,...) – ainda que não deva ignorar-se a capacidade demonstrada pelo capitalismo para absorver a conflitualidade social (através da socialização dos comportamentos desviantes face às normas matriciais do sistema, com a consequente integração social dos insubmissos e inconformados), permitindo-lhe resistir à ofensiva dos mais diversos movimentos sociais, organizados ou espontâneos (actividade sindical, partidos políticos, contestação social estudantil ou ecológica,...).

Por último, um sistema que coloca acima de tudo a defesa de interesses particulares, perante a perspectiva da quebra potencial da sua principal fonte de rendimentos – a que se gera a partir da exploração do petróleo, com toda a panóplia de actividades que, directa ou indirectamente, gravitam ao seu redor (química, plástico, automóvel e até, ironicamente, as que hoje reportam às emergentes tecnologias ambientais) – legitima a dúvida sobre se o actual estado de desenvolvimento de alternativas energéticas não estará a ser bloqueado por esses interesses. Nem tão pouco lhe condiciona a voracidade rapace a recomendação da ONU no sentido do prudente ‘princípio da precaução’, já assumido e (timidamente) aplicado por alguns poderes públicos. Não obstante ser essa, porventura, a derradeira esperança que resta à Humanidade para inverter uma situação cada dia mais desesperadamente irreversível, a lógica suicida deste sistema impõe que a imolação física embutida no destino dos seus genes constituintes, se processe em louco holocausto colectivo, arrastando nessa vertigem tudo o que a ele se encontrar ligado, beneficiário ou serventuário, capitalista ou proletário, ser pensante ou mero ‘adorno’ da natureza.

Aceitaremos ligar o nosso destino ao genes suicidário de tal sistema? Como impedi-lo, então?

sábado, 15 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - V

É possível ainda ‘salvar’ o planeta ?

Perante o quadro traçado e a aparente inutilidade dos esforços para o alterar, o desfecho mais racional ditaria a adopção de uma atitude de resignação, de baixar os braços ou desistir, restando então aguardar pela eclosão da catástrofe. Em especial a constatação da ineficácia das medidas tomadas a nível local, num mundo globalizado, conduz à aceitação, como inevitável, do que parece ser, precisamente, uma estratégia de resignação ou capitulação: considera-se apenas possível responder aos graves problemas ambientais com comportamentos e medidas de política visando, por um lado, a mitigação dos seus efeitos mais gravosos com vista, nomeadamente, à redução das emissões de gases com efeito de estufa (através de uma maior eficiência energética, de normas ambientais mais apertadas, de um controle mais severo no seu cumprimento), por outro, alertando para a necessidade de se procurarem desde já as vias para uma adaptação aos novos parâmetros climáticos, para uma absorção devidamente programada dos seus impactos.

Em face da dimensão atingida pelo problema e das previsões científicas que apontam para cenários altamente subversores do modo de vida actual, não pode questionar-se a necessidade da sua adopção generalizada, tanto a nível individual como institucional. Contudo, reduzir a estratégia de luta contra as agressões climáticas à ‘mitigação’ e ‘adaptação’ significa, só por si, abdicar de inverter uma situação em degradação acentuada, assumir a incapacidade para responsabilizar os seus fautores, premiar, em última instância, o acto predador que este sistema tem levado a efeito sobre o planeta, pondo em causa o seu futuro.

Apesar das certezas que, a este nível, podem já considerar-se adquiridas, importa reconhecer que subsistem ainda demasiadas incógnitas e com frequência se revelam imprevistos decorrentes de factores imponderáveis. Subsiste, sobretudo, uma nesga de esperança numa hipotética inversão da tendência no sentido da catástrofe, se for possível alterar, em tempo útil (ou seja, a breve prazo), as condições que determinam e influenciam o meio ambiente, sejam as materiais (alteração das fontes energéticas) ou as políticas (alteração da orientação económica do planeta), que de modo algum deve ser desprezada.

Entretanto, não obstante os efeitos positivos do ainda débil mas gradual despertar de um crescente número de pessoas para os problemas ambientais e a causa ecológica, contudo, a sua capacidade para reverter esta situação é extremamente débil e limitado, pois esbarrará sempre num sistema cuja lógica implica um consumo descontrolado dos recursos do planeta em nome da valorização incessante da mercadoria e das sagradas regras do mercado. Torna-se, pois, óbvio – mas importa aqui acentuá-lo com o maior ênfase – que a solução para os problemas ecológicos não passa apenas, nem sequer principalmente, pela alteração dos comportamentos individuais em matéria ambiental, mas implica sobretudo a assunção colectiva (ou pública) dessas responsabilidades.

Aliás, na fase actual, perante a apertada interdependência e a densa rede de ligações que se observa a nível planetário, deve assumir-se que a consciência das pessoas sobre os problemas ambientais só conseguirá ser despertada e, consequentemente, o seu comportamento cívico mobilizado para a necessidade de pôr cobro à desenfreada predação dos recursos e degradação das condições ambientais de vida, perante situações dramáticas ou outras que impliquem alterações radicais no seu modo de vida.

Nesse sentido, não sendo previsível que a ocorrência de catástrofes naturais de grande dimensão (ou a acentuação da sua frequência), possa contribuir, só por si e em tempo útil, para tornar consciente e impor a necessidade de mudanças radicais, a médio prazo apenas seria expectável tal efeito perante a hipótese (mirífica?) de geração de energia ilimitada a partir de uma fonte de recursos limpa e praticamente inesgotável (energia mecânica com origem magnética?) ou num método que a consiga sem consumo de energia (o motor do mítico movimento perpétuo?) – o que alteraria radicalmente as condições actuais de produção, as próprias relações sociais e todo o actual modo de vida das sociedades. Mas será realista esperar tal milagre?

Realista é, sem dúvida, considerar que o mundo se encontra confrontado com uma séria questão energética – ainda que a escassez de recursos se não reduza às fontes de energia (ela é até mais grave no que respeita à água, aos bens agro-alimentares ou mesmo ao ambiente!).
(...)

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - IV

As técnicas do Mercado ‘ao serviço’ do ambiente?!!!

O risco de a dimensão destes problemas assumir proporções irreversíveis, não obstante todo o esforço teórico desenvolvido pelos indefectíveis defensores do mercado na desvalorização do que já não pode mais ser ocultado, deixou de pertencer então à categoria de um invocado dramatismo sem fundamento, para se tornar numa realidade incontornável, impossível de ignorar pelos responsáveis políticos, porque cada vez mais presente no quotidiano das pessoas comuns. Começa, pois, a ganhar forma crescente, na consciência democrática da população mundial, nomeadamente a dos países ditos desenvolvidos, a necessidade de se estabelecerem controles rígidos sobre as práticas que originam as diferentes espécies de poluição, da terrestre à atmosférica, da marítima à dos cursos de água e restantes aquíferos.

Ora, não deixa de ser sintomático e ao mesmo tempo preocupante verificar que, numa sociedade em que toda a organização social é comandada pelo poder incontestado do mercado, as soluções engendradas pelo sistema para impedir a completa anarquia existente em termos de agressões ambientais passam pelo inevitável recurso aos mesmos princípios que as originam, ou seja, os princípios mercantis:
– O princípio do ‘poluidor-pagador’ (por adaptação do utilizador-pagador), pretendendo-se que os danos causados ao ambiente sejam reparados (monetariamente, entenda-se), pelos seus directos fautores: mesmo que apenas situados no estrito âmbito deste princípio, sem o questionar, a experiência comprova que o custo a pagar pelas infracções cometidas no domínio do ambiente é amplamente compensador, confirmando que, afinal, pelo menos aqui e até agora, ‘o crime compensa’. Muito largamente, aliás...
– O mecanismo de um inconsequente ‘mercado de emissões’ internacional, criado pelo Protocolo de Quioto, por realismo político assente num equívoco e regido por normas contraproducentes (que, além do mais, ninguém cumpre): o equívoco de partir do pressuposto de uma alternativa única de modelo de desenvolvimento, ao adoptar como padrão universal e exclusivo o mercado capitalista (altamente dependente dos recursos energéticos fósseis), levando a que todos os países se sintam, legitimamente, com igual direito ao seu acesso; a norma contraproducente de pretender reduzir a produção de CO2 por conta da fixação arbitrária dos denominados ‘direitos de emissão’, estabelecidos para cada país em função dos actuais níveis de emissão, transaccionáveis como qualquer outra mercadoria, facilmente manipuláveis, em seu proveito, pelos países altamente poluidores.

O sistema assente no mercado capitalista revela assim total incapacidade para enfrentar, de forma coerente e eficaz, a ameaça crescente constituída pelas agressões ambientais (cujos resultados se expressam nas alterações climáticas), dado que se encontra demasiado dependente e comprometido com todo o processo em que elas se produzem.

Pragmaticamente, no final, o que pesa é a ausência de qualquer alternativa global tendente à urgente inversão desta situação, a nível de hipóteses teóricas e no plano da luta política, sendo que todas as energias e esforços desenvolvidos são canalizados para acções pontuais localizadas, cujos efeitos mais perduráveis se fazem sentir na lenta mentalização das pessoas envolvidas ou atingidas, no sentido da mudança de atitude e alteração de hábitos passíveis de incorporar uma nova relação com o meio ambiente. Este processo, contudo, é, por natureza, de efeitos muito lentos e limitados, pouco consentâneo com a dimensão e a urgência atingidas pelo problema. Por isso mesmo, cada vez é mais real o risco de aqui ocorrer o pior dos cenários se, à semelhança do que aconteceu ao sapo da história, o homem se for conformando com o aumento gradual do calor na Terra – até a vida, conforme a entendemos e a fruímos hoje, se tornar completamente insuportável!

Resta-nos, porventura, a egoísta esperança de tal só vir a afectar, na sua forma mais dramática, as gerações futuras. Mas então importa questionar a nossa responsabilidade social, tanto em termos do contributo para a degradação das condições que aí conduziram, quanto sobretudo a nível da consciência ética do problema. Nestas circunstâncias, não será difícil de antecipar a condenação que o pesado juízo histórico abaterá sobre a nossa revelada incapacidade para o enfrentar e resolver – quando isso ainda se demonstrava ser viável.
(...)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - III

Os limites da acção dos movimentos ecológicos

Não deixa de ser perigosamente ilusória, de facto, a luta que os movimentos ecologistas, apostados em denunciar e alterar este estado de coisas, desenvolvem um pouco por toda a parte, mas sem se atreverem a pôr em causa o que lhe dá origem e a determina – a lógica da mercadoria – que impõe uma sempre crescente valorização do capital (que se pretende traduzir por desenvolvimento) sem olhar aos meios utilizados, o que de modo algum se compadece com preocupações ambientais, como a razão explica e a experiência comprova. ‘Perigosamente ilusória’, porque ao desviar a atenção da verdadeira origem do problema, aliena a possibilidade de o resolver de forma consistente, para além da acção de resultado casuístico, criando ainda expectativas impossíveis de realizar.

Ao mesmo tempo, resulta de fraca ou nula eficácia, o esforço posto na defesa de um desenvolvimento sustentável (por estes movimentos e por todos quantos o propõem como alternativa), quando tal é feito sem que se tenham em conta e se questionem as condições de funcionamento do próprio sistema – sujeitas ao domínio absoluto do mercado capitalista – que aceitam como um dado natural ou uma inevitabilidade abstracta e a-histórica, ainda que a merecer reparos e ajustamentos de forma a despojá-lo dos aspectos mais odiosos e a torná-lo menos agressivo para o ambiente. Ajustamentos que todos sabem não terem hipótese de virem a ser considerados (ou de resultarem), pois isso equivaleria a dizer que o sistema aceitava alterar a sua natureza - como se o lobo pudesse deixar de ser carnívoro para se converter em herbívoro!

Nestas circunstâncias e perante a impossibilidade lógica de se alterarem as condições de funcionamento do próprio sistema (sem o desvirtuar), a acção em prol da construção de alternativas a uma situação cada vez mais unanimemente considerada insustentável, corre o risco de se transformar apenas numa luta contra moinhos de vento (como o recurso a tecnologias para substituir os mecanismos naturais de regulação climática na base de soluções tão engenhosas quanto aparatosas: o conhecido autor do conceito de Gaia, James Lovelock, por exemplo, sugere a criação de sombrinhas espaciais que protejam a Terra dos raios solares, contribuindo, assim, para a arrefecer e atenuar os efeitos esperados da diminuição dos glaciares polares no aumento da temperatura do planeta!)

Melhor que quaisquer outras considerações sobre a validade destas propostas, importa atentar no alerta lançado na síntese elaborada pelo próprio Lovelock (o que não significa total aderência às teses defendidas por este autor, mas apenas o inquietante alerta de um reconhecido especialista): “O desenvolvimento sustentável, suportado pelo uso da energia renovável, é a abordagem da moda sobre viver com a Terra, e é a plataforma dos políticos de pensamento verde. Em oposição a esta perspectiva, particularmente nos Estados Unidos, estão os muitos que ainda vêem o aquecimento global como ficção e favorecem os velhos hábitos". Estes últimos, explica, actuam ancorados mais na fé – ‘Deus tomará conta da Terra’, nas palavras de Madre Teresa de Calcutá – ou mesmo nos ‘velhos hábitos’ (que determinaram a situação actual), do que na ciência..

E prossegue, mais adiante: "Muitos consideram esta nobre política (do desenvolvimento sustentável) moralmente superior ao laissez faire dos velhos hábitos. Infelizmente para nós, estas abordagens totalmente diferentes, uma a expressão da decência internacional, a outra das forças de mercado insensíveis, têm o mesmo resultado: a probabilidade da alteração global desastrosa. O erro que partilham é a crença de que mais desenvolvimento é possível e que a Terra continuará, mais ou menos como agora, durante pelo menos a primeira metade deste século. Há duzentos anos, quando a alteração era lenta e inexistente, podíamos ter tido tempo para estabelecer o desenvolvimento sustentável, ou até ter continuado durante algum tempo com os velhos hábitos, mas agora é tarde demais; o estrago já foi feito”. E a conclusão não pode ser mais pessimista, ao apontar que, não obstante as diferenças, estas duas vias convergem para a existência, em breve, de um planeta onde poucos terão possibilidade de sobreviver...

Contra os que depositam confiança inabalável nas soluções da técnica para ultrapassarem este aperto da Humanidade, resta o conforto do aviso de Darwin: ‘Não é a mais forte das espécies que sobrevive... Nem a mais inteligente... Mas a que for mais adaptável à mudança’.
(...)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - II

O paradoxo mercantil: a lógica do crescimento ilimitado num mundo de recursos limitados

Até à entrada na modernidade e ao consequente domínio do mercado, as agressões praticadas pelo homem contra a natureza produziam efeitos nefastos mas localizados, a sua influência, por norma, não extravasava os limites das regiões onde tais actos eram praticados (por exemplo, no período romano, a desflorestação das margens do Mediterrâneo, sobretudo para a construção de frotas de guerra, com consequências que ainda hoje perduram). Com o capitalismo, pelo contrário, tudo se alterou. O processo de industrialização das sociedades, acelerado de forma descomunal no pós-guerra, levou a degradação ambiental e a depredação dos recursos ao paroxismo e a níveis já considerados irreversíveis nalgumas situações. Aquilo que demorou uma infinidade a construir (entre 3 a 4 mil milhões de anos!), está em vias de ser delapidado no tempo planetário de um fósforo (em pouco mais de 2 a 3 centenas de anos!), desde a combustão da energia fóssil, ao ar que respiramos, dependente da lenta constituição de uma atmosfera habitável, fisiologicamente adaptável ao homem.

As actuais alterações climáticas, em boa medida responsáveis ora pela escassez de água e secas prolongadas, ora por tempestades e cheias diluvianas que tudo arrasam, têm origem, é hoje ponto assente, no aquecimento global do planeta em resultado da acção do homem (emissão de gases com efeito de estufa, CO2 e metano, sobretudo), muito embora se saiba ser possível actualmente evitá-las, através do recurso a soluções técnicas já disponíveis mas pouco utilizadas dado os custos que representam para as empresas com o consequente efeito na redução dos seus lucros! Pelo que, da destruição de áreas e espécies isoladas passou-se para a destruição com carácter sistemático, da devastação localizada e ‘controlada’ para a devastação planetária: a afirmação de que o futuro da Humanidade se encontra em sério risco surge agora cada vez menos como dramatização e mais como tradução da realidade. O crescimento ilimitado do mercado, imposto pela lógica do valor, choca-se com um mundo de recursos limitados: o mercado tende inevitavelmente para a sua própria autodestruição!

Esta realidade impõe-se já com tal evidência que até sectores da corrente liberal acabaram por a aceitar. Na verdade, os mais conscientes destes, mesmo não abdicando da fé nas virtudes do mercado, percebem que, a manter-se a actual tendência predadora na utilização de recursos finitos, a Humanidade caminha para a sua extinção, a vida na Terra pode encontrar-se ameaçada. A ideologia do crescimento contínuo, base inquestionável da actual Globalização Competitiva, conduzirá, afirmam (A. Neto da Silva, em O triplo conflito), “ao esgotamento do Planeta, não apenas dos recursos minerais mas também dos elementos fundamentais que permitem a existência da nossa vida”. A alternativa à catástrofe anunciada passa por “a ideologia hoje dominante, de uma globalização baseada apenas na (prossecução da máxima) eficiência e na (máxima) competitividade económica, (...) ser substituída por uma ideologia do crescimento possível, assente na maior eficiência ambiental, social e económica, por esta ordem de prioridades”. Essa alternativa passaria, então, pela implementação urgente e global de políticas enquadradas no designado ‘Desenvolvimento Sustentável’ e na conciliação indispensável dos três pilares em que assenta: o desenvolvimento económico, a protecção do ambiente e a coesão social. Mas sendo um objectivo global, isso significa que só resultará e será eficaz se puder contar com o concurso, em acção concertada, de todos os países do mundo, o que, para ser exequível, exigiria a constituição de um (mirífico?) Governo Mundial, capaz de federar/subordinar os interesses locais ou, no caso, nacionais.

Sublinhe-se, desde já, que a acção desenvolvida tanto pelos movimentos ecológicos como pelos defensores do desenvolvimento sustentável, no sentido, sobretudo, duma indispensável e urgente sociedade de baixo carbono – contra a lógica do crescimento ilimitado? – se é certo haverem contribuído decisivamente para a consciencialização desta situação na opinião pública, cada vez mais desperta e melhor informada sobre as suas gravosas consequências na vida das populações, arrisca-se, no entanto, a criar perigosas ilusões ou a redundar num exercício de efeitos práticos pouco eficazes ou mesmo frustrantes, as mais das vezes de âmbito meramente local, ainda que, a esse nível, importantes.
(...)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

É possível o ‘desenvolvimento sustentável’ nas sociedades dominadas pelo mercado? - I

A lógica do Mercado contra o Desenvolvimento Sustentável

(Reproduzo aqui, adaptado, parte de um texto das minhas reflexões pessoais sobre o Mercado, escrito há cerca de 3 anos. Vem ele a propósito da ‘ideologia do crescimento contínuo’, aflorada em comentário anterior (sobre o ‘Desafio Global’, de N. Stern). Por isso me pareceu oportuno expor agora, à margem dos temas da actualidade (crise, eleições,...), o enquadramento que faço de assunto tão estratégico para o futuro das sociedades).

À percepção, cada vez mais generalizada, de que as sociedades modernas, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, atingiram uma situação insustentável (face sobretudo às precárias condições de vida da maioria da população mundial e à degradação contínua do meio ambiente), os sectores mais conscientes e informados, do meio académico à política e aos movimentos ecológicos, contrapõem a necessidade e a urgência na implementação de um desenvolvimento sustentável. Referido pela primeira vez em 1971 e adoptado pelas Nações Unidas no ano seguinte, foi sob a égide desta que foram sendo clarificados os três pilares essenciais com que se costuma defini-lo: o desenvolvimento económico, a protecção do ambiente e a coesão social.

O que se pretende traduzir com este conceito é que só haverá efectivo desenvolvimento se este for construído em bases que permitam mantê-lo e alargá-lo para o futuro, sem delapidar nem comprometer, portanto, os recursos, próprios e alheios, através da sua exploração exaustiva, nalguns casos até ao esgotamento, como tem vindo a verificar-se. Na verdade, após a revolução industrial e num curtíssimo espaço de tempo (à escala cósmica, entenda-se), descobre-se que o homem passou de espécie constantemente ameaçada por uma Natureza hostil, a principal agente da destruição que ameaça o planeta e os seus frágeis equilíbrios ecológicos. A reposição destes equilíbrios ameaçados exigiria então, não o abandono do crescimento económico, símbolo de bem estar e conforto crescente, mas a aplicação do que se designa por ‘desenvolvimento sustentado’.

A análise deste tema e a consciência dos problemas que o gera, levanta desde logo uma questão prévia algo intrigante: apesar da insistência de há largos anos por parte de inúmeros movimentos e académicos respeitáveis nesta terapia e existindo actualmente um consenso tão alargado sobre a sua necessidade, o que impede a afirmação peremptória de tal modelo de desenvolvimento e a sua implantação generalizada em todo o mundo? E a resposta a esta questão encontra-se, mais uma vez, no condicionamento imposto pelo mercado e na lógica que o sustenta:

– Por um lado, a concorrência impõe às empresas o recurso a políticas de redução de custos, o que, na maioria das situações, se traduz, não na sua racionalização (revestindo a forma de alterações técnicas, por exemplo), mas apenas na sua remoção para outro sítio: esta externalização dos custos das empresas tanto toma a forma de desemprego, nos recursos humanos, como de poluição das águas ou do ar, ou de qualquer outra agressão sobre o meio ambiente, no que respeita aos recursos físicos;
– Por outro, a expansão contínua da produção desencadeia uma dinâmica específica com tradução quer a nível material, pela pressão desmedida sobre os recursos a nível planetário, quer sobretudo no modo de vida das populações, incentivadas por campanhas agressivas a um consumismo sem limites (uso do automóvel particular, urbanização descontrolada,...) e ao desperdício irracional (rápida obsolescência dos produtos,...).

Convirá, pois, antes de mais realçar a excessiva (ou mesmo exclusiva) tónica posta na componente ‘sustentável’, quando, na verdade, impor-se-ia questionar, acima de tudo, a natureza ‘deste desenvolvimento’ e as lógicas que o sustentam. Afinal são estas que explicam, em última análise, a razão da impossibilidade de tal desenvolvimento poder vir a ser alguma vez sustentável!
(...)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Leituras de Verão – 3

A crise, e agora?

De um dos mais influentes intelectuais franceses da actualidade, conselheiro de Presidentes (primeiro de Miterrand e agora de Sarkozy) e presumido liberal de esquerda – o que à partida pretende traduzir-se na defesa prioritária da liberdade (quem a não defende, hoje?), através da conjugação da democracia com o mercado, ainda que regulado – respigo, no seu último livro (em título), algumas sintomáticas considerações sobre a crise:

A situação actual assemelha-se, guardadas as devidas proporções, à queda do Império Romano, que durou mais de três séculos, terminando numa desordem milenária”. (...)
Esta crise é também a ocasião de compreender como um pequeno grupo de pessoas, sem produzir riqueza, subtrai dentro da legalidade, sem qualquer controlo, uma parte essencial do valor produzido. E também como este grupo, depois de ter rapinado tudo o que pôde, faz pagar as suas formidáveis remunerações e bónus pelos contribuintes, os assalariados, os consumidores, os empresários e os aforradores, forçando os Estados a arranjar em poucos dias, para preencher os buracos deixados nos seus cofres, somas mil vezes superiores àquelas que todos os dias obstinadamente recusam aos mais desfavorecidos dos países desenvolvidos e aos famintos do resto do mundo.
É verdade que este confisco é feito de modo legal, honesto e não violento. O que, aliás, constituirá aos olhos de alguns o maior motivo de revolta: se é legal, então o sistema que o permite não tem razão de ser.


Surpreendente é que, depois de produzido este tão desapiedado quanto fiel diagnóstico e extraídas tais conclusões, o autor desista de levar até às últimas consequências a lógica do seu raciocínio sobre as forças do mercado que colocaram o mundo à beira do colapso – admitindo, ao menos, pôr em causa o mecanismo que tal engendrou – e persista, incólume, na via que determinou essa situação (com mais regulação e umas pitadas de solidariedade), precisando até, para que não restem dúvidas:

Século após século, a Europa do Norte, depois toda a Europa e depois o mundo inteiro preferiu a liberdade individual a todos os outros valores (justiça, solidariedade, imortalidade). E com esta finalidade põe em prática dois mecanismos que em princípio permitem organizar esta liberdade no contexto de escassez que define a condição humana: o mercado e a democracia.” Para, mais adiante, logo advertir:
Esta dupla formada por mercado e democracia não é, por natureza, harmoniosa. Em primeiro lugar, fundada sobre a implantação da liberdade individual, fazendo confiança no mercado para a eficácia e na democracia para a justiça. Ele desqualifica todos os outros valores, em particular a solidariedade.(...) Ninguém terá mais justificação de respeitar um compromisso que limite a sua liberdade. Nem de ser leal em relação a quem quer que seja sem ser a si próprio. Nem, em particular, de ser leal em relação às gerações seguintes: os nossos bisnetos não têm direito de voto!

Preso ao hiperpragmatismo fatalista que impôe a ausência de alternativas ao mercado e de saídas para a crise fora deste contexto, Attali ‘perde-se’ na teoria prospectiva dos ‘hiper-conceitos’ (desenvolvida noutra sua publicação, Breve História do Futuro): da ameaça do hiperimpério – o domínio global do mercado sobrepondo-se às leis democráticas, onde tudo será privatizado, gerando fortunas e miséria extremas; ao risco deste evoluir para o hiperconflito – uma sucessão de conflitos entre Estados, significando um perigoso retorno à barbárie; à hipótese redentora da hiperdemocracia – se houver capacidade para erguer um estado mundial democrático, com autoridade para controlar o mercado e a globalização (e, pelo caminho, dinamizar as novas tecnologias).

À parte o eventual mérito na consideração destes cenários futuristas, importa aqui sublinhar a inconsequência da crítica ao que se designa por ‘falhas do mercado’ (apontadas como a origem da crise) e que radica na incompreensão do que é a natureza do mercado e das forças que o comandam e o levam a comportar-se deste modo: é a lei do valor e não eventuais perversões do sistema (ou dos seus intérpretes), que determina, por imperativos da sua própria sobrevivência, a necessidade (sistémica) de uma expansão ilimitada (valendo-se, para isso, da ‘ideologia do crescimento contínuo’), afinal a origem e a causa principal das crises – e desta, em particular, com todos os equívocos, dramas e aspectos rocambolescos que a envolveram, o que certamente também ajuda a criar a nebulosa sobre as suas verdadeiras raízes.

Assim se põe em causa a devida lealdade (e solidariedade) em relação às gerações futuras: de facto “os nossos bisnetos não têm direito de voto!