sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Leituras de Verão – 3

A crise, e agora?

De um dos mais influentes intelectuais franceses da actualidade, conselheiro de Presidentes (primeiro de Miterrand e agora de Sarkozy) e presumido liberal de esquerda – o que à partida pretende traduzir-se na defesa prioritária da liberdade (quem a não defende, hoje?), através da conjugação da democracia com o mercado, ainda que regulado – respigo, no seu último livro (em título), algumas sintomáticas considerações sobre a crise:

A situação actual assemelha-se, guardadas as devidas proporções, à queda do Império Romano, que durou mais de três séculos, terminando numa desordem milenária”. (...)
Esta crise é também a ocasião de compreender como um pequeno grupo de pessoas, sem produzir riqueza, subtrai dentro da legalidade, sem qualquer controlo, uma parte essencial do valor produzido. E também como este grupo, depois de ter rapinado tudo o que pôde, faz pagar as suas formidáveis remunerações e bónus pelos contribuintes, os assalariados, os consumidores, os empresários e os aforradores, forçando os Estados a arranjar em poucos dias, para preencher os buracos deixados nos seus cofres, somas mil vezes superiores àquelas que todos os dias obstinadamente recusam aos mais desfavorecidos dos países desenvolvidos e aos famintos do resto do mundo.
É verdade que este confisco é feito de modo legal, honesto e não violento. O que, aliás, constituirá aos olhos de alguns o maior motivo de revolta: se é legal, então o sistema que o permite não tem razão de ser.


Surpreendente é que, depois de produzido este tão desapiedado quanto fiel diagnóstico e extraídas tais conclusões, o autor desista de levar até às últimas consequências a lógica do seu raciocínio sobre as forças do mercado que colocaram o mundo à beira do colapso – admitindo, ao menos, pôr em causa o mecanismo que tal engendrou – e persista, incólume, na via que determinou essa situação (com mais regulação e umas pitadas de solidariedade), precisando até, para que não restem dúvidas:

Século após século, a Europa do Norte, depois toda a Europa e depois o mundo inteiro preferiu a liberdade individual a todos os outros valores (justiça, solidariedade, imortalidade). E com esta finalidade põe em prática dois mecanismos que em princípio permitem organizar esta liberdade no contexto de escassez que define a condição humana: o mercado e a democracia.” Para, mais adiante, logo advertir:
Esta dupla formada por mercado e democracia não é, por natureza, harmoniosa. Em primeiro lugar, fundada sobre a implantação da liberdade individual, fazendo confiança no mercado para a eficácia e na democracia para a justiça. Ele desqualifica todos os outros valores, em particular a solidariedade.(...) Ninguém terá mais justificação de respeitar um compromisso que limite a sua liberdade. Nem de ser leal em relação a quem quer que seja sem ser a si próprio. Nem, em particular, de ser leal em relação às gerações seguintes: os nossos bisnetos não têm direito de voto!

Preso ao hiperpragmatismo fatalista que impôe a ausência de alternativas ao mercado e de saídas para a crise fora deste contexto, Attali ‘perde-se’ na teoria prospectiva dos ‘hiper-conceitos’ (desenvolvida noutra sua publicação, Breve História do Futuro): da ameaça do hiperimpério – o domínio global do mercado sobrepondo-se às leis democráticas, onde tudo será privatizado, gerando fortunas e miséria extremas; ao risco deste evoluir para o hiperconflito – uma sucessão de conflitos entre Estados, significando um perigoso retorno à barbárie; à hipótese redentora da hiperdemocracia – se houver capacidade para erguer um estado mundial democrático, com autoridade para controlar o mercado e a globalização (e, pelo caminho, dinamizar as novas tecnologias).

À parte o eventual mérito na consideração destes cenários futuristas, importa aqui sublinhar a inconsequência da crítica ao que se designa por ‘falhas do mercado’ (apontadas como a origem da crise) e que radica na incompreensão do que é a natureza do mercado e das forças que o comandam e o levam a comportar-se deste modo: é a lei do valor e não eventuais perversões do sistema (ou dos seus intérpretes), que determina, por imperativos da sua própria sobrevivência, a necessidade (sistémica) de uma expansão ilimitada (valendo-se, para isso, da ‘ideologia do crescimento contínuo’), afinal a origem e a causa principal das crises – e desta, em particular, com todos os equívocos, dramas e aspectos rocambolescos que a envolveram, o que certamente também ajuda a criar a nebulosa sobre as suas verdadeiras raízes.

Assim se põe em causa a devida lealdade (e solidariedade) em relação às gerações futuras: de facto “os nossos bisnetos não têm direito de voto!

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