segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Coincidências muito oportunas e a mão (pouco) cega da justiça

Se os paladinos da teoria neoliberal, na sua cruzada evangelizadora, buscassem argu-mentos ou uma justificação (ou até, porventura, uma sub-reptícia forma de diversão) para mais fácil acomodação da sua política junto da opinião pública, decerto não teriam conseguido encontrar melhor fundamento para aí estribarem os seus intentos que os dois casos judiciais mediaticamente dominantes na actualidade lusa. E logo nas duas áreas que mais exemplarmente lhes importa ‘trabalhar’ para conseguirem impor a sua doutrina aos mais incrédulos e infiéis: nos negócios, para demonstrarem como a regulação do mercado funciona; na política, arguindo contra o poder e a dimensão do Estado, tido como o principal foco da corrupção e do mau funcionamento de toda a organização social.

Pode ser que o caso BES e o caso Sócrates tenham eclodido, quase em simultâneo, sem interferências ou quaisquer artimanhas por parte do Governo e dos seus ‘apparatchiks’, mas parecem dois casos talhados bem à medida, vieram mesmo a calhar para a demonstração – em que afanosamente se empenham – de que o problema não está nas políticas prosseguidas, antes no comportamento desviado de alguns indivíduos. Essencial, mesmo, é que a política se mantenha e possa alcançar os objectivos que se propôs: impor a regulação pelo mercado tão livre de constrangimentos quanto a pressão social lho permita – o que implica reduzir as funções do Estado à repressão, à justiça e à… caridadezinha!

Pode ser então que seja apenas mera coincidência estes dois casos terem surgido precisamente no momento de maior fragilidade da teoria, no termo da aplicação das políticas da austeridade e do comprovado fracasso das mesmas, com nenhum dos objectivos propostos alcançado. Do próprio descrédito das privatizações, cujo produto era suposto servir para abater à dívida, mas que se conclui, não obstante o seu montante global (mais de 8mM€) ultrapassar em muito o objectivo estipulado no famigerado memorando da ‘troika’ (cerca de 5mM€ até ao final do programa), não dar sequer para pagar os juros relativos a um ano da mesma, muito menos amortizar o que quer que seja!

Sobretudo depois de se saber que a solução encontrada para o BES, fruto de mais um experimentalismo extemporâneo em detrimento de outras bem mais sólidas e de efeitos testados, corre o risco de se transformar num imbróglio jurídico e num imenso problema financeiro. Ou de se perceber que o caso Sócrates nasceu sem suporte consistente e – contra toda a técnica jurídica e até contrário à mais elementar justiça – a prova tem vindo a ser construída com base numa investigação serôdia de duvidosa imparcialidade como se impõe de uma justiça que se crê e pretende cega (até agora todas as provas divulgadas se resumem a suspeitas – a última terá sido a suspeita da criação de uma empresa fantasma em Londres… –, crenças – os investigadores acreditam que… –, indícios, presunções…).

Na prática pouco importa se o lançamento destes factos foi preparado ou se se tratou apenas do seu oportuno aproveitamento – desde que, por um lado a repressão e a justiça cumpram zelosamente o respectivo papel, por outro uma prestável comunicação social se encarregue, através da montagem de degradantes espectáculos mediáticos, de alimentar a reacção emocional das pessoas submetidas a anos a fio de severa austeridade, de corresponder à ansiedade da inquieta turba (que tanto desprezam!), compreensivelmente sedenta por encontrar responsáveis para a sua enorme insatisfação. A personalização da culpa permite, é certo, desviar todo o odioso provocado pelo descalabro económico e social das políticas por ele responsáveis para os seus conjunturais intérpretes (não se isentando estes minimamente da respectiva culpa, bem entendido).

A tensão acumulada por anos de expiação de culpas alheias ameaça, contudo, tornar-se insuportável. Sobretudo quando no horizonte se perfilam desafios inadiáveis que convocam opções e decisões de desfecho imprevisível. À cabeça, claro, o peso sufocante da dívida, por agora a beneficiar de um período de excepcional baixa de juros, mas que a todo o momento pode vir a alterar-se (a evolução das economias tornou-se ainda mais instável com a queda abrupta do preço do petróleo – que, mesmo para uma economia importadora da matéria prima, como a portuguesa, não traz apenas aspectos positivos). E a imponderabilidade das eleições na Grécia, Espanha, Portugal... E a equação dos arranjos eleitorais, com a múmia de Belém e a mentira de S. Bento em fundo! E a constante incerteza em torno do Euro

Decididamente 2015 promete ser um ano interessante!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A política dos moralistas da política

O debate político, em Portugal, é actualmente dominado pelos moralistas da política. Com a prisão de Sócrates, esta discussão exacerbou-se até ao paroxismo. Na verdade, a mais recente série de casos, iniciada com o BES dos primos Ricardo e Ricciardi, continuada na rede dos ‘vistos gold’ em que foram apanhadas altas figuras do Estado, culminando agora na prisão do ex-Primeiro Ministro (por indícios de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal), proporcionou aos moralistas de todos os quadrantes o melhor argumento às teses que defendem e um poderoso incentivo à cruzada que empreenderam. Segundo eles, o problema central do País é o alto nível de corrupção das suas elites, Portugal encontra-se refém de um gang de corruptos que se apossou da economia e da política, infernizando toda a sociedade. Para alguns até, ‘Portugal é um país de corruptos’!

Ninguém ousará, por certo, contestar a importância da luta contra a corrupção seja em que domínio for, da economia à política, do âmbito local ao nacional. A corrupção é, sem dúvida, um dos problemas que mais corrói e degrada a vida em sociedade, sempre assim foi. Impõe-se, pois, denunciá-la e combatê-la. Sem subterfúgios ou restrições. Mas centrar a política na luta contra a corrupção é menorizá-la reduzindo-a ao papel de polícia, é eliminar as escolhas e as alternativas à situação vigente, é permitir a perpetuação do poder que em cada momento a domina e orienta. No caso presente, a tese que afirma ser a corrupção o tema central da vida nacional insere-se bem na lógica dos proclamados e dominantes princípios neoliberais erguidos para justificar a actual política da austeridade: do “viver acima das nossas possibilidades” que conduziu à “necessidade do País empobrecer” e, por último, ao TINA do “não há alternativa” à austeridade!

Importa, contudo, explicitar o lugar que a ‘luta contra a corrupção’ tem nesta política. Ela assume um papel essencial, ainda que meramente instrumental, para se atingir um propósito superior, o de, através dela, se atingir o Estado, em especial o peso das suas funções sociais. O discurso contra a corrupção centra-se invariavelmente na moralização da política e dos políticos (os gestores do Estado!), considerados a origem e o principal foco de onde emana a maior parte das irregularidades cometidas neste domínio. É precisamente isto que proclamam os seus principais arautos, sejam eles políticos como Paulo Morais ou Henrique Neto (que, a propósito da prisão de Sócrates, consegue aconselhar António Costa a ‘limpar a casa no próximo congresso sem apresentar uma única ideia política!), ou jornalistas como Gomes Ferreira e Camilo Lourenço. Ou ainda, a outro nível, o batido paradigma Medina Carreira. E até mesmo comentadores de esquerda como Daniel Oliveira ou Joana Amaral Dias não se coíbem de centrar a luta política na moralização da sociedade (significativo o facto de, alguns de ‘direita’, como Pedro Marques Lopes ou Pacheco Pereira, manifestarem opinião diversa).

Não admira, pois, que, transformado o Estado no principal agente e promotor da corrupção, a direita neoliberal (e não só) considere positivo tudo o que contribua para lhe diminuir o peso e a importância. Tanto nas doutrinárias pregações de Passos Coelho, como sobretudo na prática política deste Governo, transparece a ideia de uma urgente missão a cumprir: a de inverter o rumo do País, libertando-o das garras estatistas em que, segundo eles, definhava. Ideia que, contudo, lhes é anterior. Recorde-se que o início da governação de Sócrates pauta-se por um conjunto emblemático de medidas visando racionalizar o Estado (com o salutar propósito de eliminar desperdícios – as famosas gorduras!), em especial nas áreas da justiça, saúde e educação. Cedo se percebeu, entretanto, que os limites entre racionalizar e destruir eram muito ténues e facilmente transponíveis, aí começando o desmantelamento de áreas sensíveis do muito frágil Estado Social português.

Eis, pois, dois virtuosos princípios – racionalização e luta contra a corrupção – que parecem reunir consenso generalizado, mas cuja concretização pode esconder propósitos bem diferentes dos proclamados. Ninguém, por certo, se atreverá a defender a corrupção ou uma política de favores. Enfatizo o que disse antes: a corrupção é um problema social grave que destrói as sociedades! Mas uma coisa é reconhecer a importância da sua denúncia e da luta para a debelar, outra a de a considerar o tema central de uma sociedade disfuncional, desviando as atenções dos principais problemas com que se defronta e que em boa medida a originam e a alimentam: à cabeça, a absoluta financeirização da economia, cuja estrutura erguida nas últimas décadas permanece incólume (incluindo os off-shores), não obstante ter colocado o mundo à beira da catástrofe; depois, a manutenção de uma organização social caduca, porque desfasada da realidade técnica e produtiva actual, nomeadamente a nível da distribuição do tempo de trabalho e da riqueza; ou ainda quanto à organização política do Estado, presa nos limites da democracia representativa e da centralização administrativa…

É certo que actuar ‘apenas’ sobre os corruptos ‘apanhados’ nas esburacadas malhas da lei, centrar neles toda a atenção, com o interessado apoio do circo mediático, permite ignorar, por exemplo, a existência e o papel dos off-shores nos níveis actuais da corrupção e da fraude fiscal. Actuar contra as irregularidades bancárias (que até podem conduzir bancos à falência) na base de leis permissivas construídas de propósito para permitirem ‘fugas e fintas’ jurídicas, desvia as atenções da exigência política para se alterar o modelo de funcionamento de todo o sistema financeiro – que continua a operar com os produtos e os comportamentos da prática bancária construída nos últimos trinta anos de gradual desregulação e inteira liberalização da actividade. É como abrir as portas da prisão e depois manifestar-se surpresa por os presos, afinal, fugirem!


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P.S. A mais recente pregação do pífio evangelizador neoliberal Passos Coelho insere-se nesta mesma linha de pensamento moralizador, que pretende ir para além da política. Sentencia ele: ‘no que toca à disciplina orçamental e às reformas estruturais, não há esquerda nem direita, há bom governo e mau governo’! Sem surpresas, esta lógica moralista da distinção entre bons e maus, exclui as escolhas políticas, afasta as alternativas democráticas, impondo a via única do ‘não há alternativa’. Atinge a democracia na sua essência. Apetece mesmo reproduzir aqui a piada que corre nas redes sociais: ‘pior do que ter um ex-Primeiro Ministro preso é ter o actual à solta’!