quarta-feira, 8 de abril de 2015

A hora das opções decisivas, na Grécia como em Portugal e no resto da Europa (II)

II – O realismo da política radical dos ‘marginais da política’ e a dialéctica da História

A grande novidade na evolução política das últimas décadas, dominadas pelo ascenso incondicional e quase absoluto das ideias e práticas neoliberais a nível global, foi a subida ao poder num país ocidental de um desses partidos ditos de protesto (algumas experiências fora deste espaço não têm sido encaradas como um risco tão sério, caso das tentativas de autonomia face ao poder global por parte de certos países sul-americanos, não obstante todos os esforços desestabilizadores). A vitória do Syriza na Grécia surgiu, pois, no horizonte do incontestado poder neoliberal como uma ameaça – a despeito do seu programa pouco mais reivindicar que um retorno ao ‘velho’ ideário social-democrata dos ‘trinta gloriosos anos’ e o resgate do Estado Social! Mas, como na boa doutrina da gestão empresarial, uma ameaça pode e deve ser revertida e encarada como uma oportunidade, pelo que é assim mesmo que tem vindo a ser tratada pelos poderes instituídos. A ‘experiência grega’ deverá funcionar, então, como vacina para os restantes países que ousem contestar o poder estabelecido!

Os próximos tempos – talvez os próximos dias – irão decerto trazer novidades neste domínio. A resistência grega à chantagem comunitária (BCE, Comissão, Eurogrupo, directório alemão…) encontra-se nos limites do tolerável pela dignidade de um povo e das condições de sobrevivência, por razões financeiras, do próprio governo grego. Enquanto as negociações prosseguem, pressente-se a angústia dos negociadores gregos (e atrás deles, além da esmagadora maioria do povo grego, segundo as sondagens, grande parte da opinião pública dos europeus para quem o desfecho desta ‘aventura’ não é irrelevante, bem pelo contrário), na busca de uma solução que, preservando o Euro, permita para já aliviar a austeridade; a par da mal disfarçada impaciência dos negociadores comunitários ávidos por desferirem o golpe de misericórdia na ousadia grega e assim aplicarem, o mais rápido possível, a vacina correctiva nos demais países onde despontam laivos de rebeldia.

Até por isso a operação de salvação do Euro, já se percebeu, dificilmente terá sucesso na Grécia. Se, como tudo o indica, a Grécia for obrigada a sair do Euro, as suas implicações sobre os restantes países europeus far-se-ão inevitavelmente sentir aos diversos níveis. Contudo, torna-se prematuro adiantar o que quer que seja sobre possíveis cenários. Em termos económicos e financeiros, por mais acautelados e preparados que venham a ser os planos de saída, os efeitos de uma tal decisão estão longe de poder ser antecipados e o imprevisto é o único cenário plausível. Ou seja, nenhum cenário é possível adiantar face à imprevisibilidade da própria reacção dos mercados financeiros. O que condiciona todas as restantes áreas, incluindo a política. Que, ainda assim, permite alguma incursão menos arriscada a nível dos meandros partidários.

Assim, no campo das hipóteses meramente voluntaristas da intervenção política – uma crise traumática, como a de 2008, não é descartável, apresenta-se até como muito provável, mas a acontecer, nem o momento e muito menos os seus efeitos são possíveis de antecipar – a resposta ao autêntico retrocesso civilizacional que esta austeridade impôs (sobretudo a nível de direitos laborais) pode envolver duas estratégias com objectivos bem diferenciados. Uma aponta, antes de mais, a prioridade na substituição dos responsáveis pela hecatombe – depois logo se verá…; a outra estabelece, para além disso, e desde já as condições essenciais à elaboração de um programa de governo democrático. A primeira corresponde à estratégia seguida pelo PS e de todos quantos têm vindo a manifestar a necessidade de convergência com esse propósito mínimo: daí a táctica de A. Costa não se comprometer com nada de concreto antes das eleições (jogando no desgaste do Governo, mas também não correndo riscos de promessas não cumpridas). A segunda, na sequência da adoptada pelo Syriza na Grécia, estabelece dois objectivos imediatos: renegociação da dívida e remoção do Tratado Orçamental.

Relativamente à primeira, existe o risco (entre os mais cépticos ou realistas, a convicção) desta se tornar completamente inútil, pois para além de algumas declarações piedosas sobre os malefícios da austeridade e a necessidade de alteração da política europeia neste domínio, é bem conhecido o historial do PS no poder, rapidamente os seus próceres aceitarão, por pressão dos respectivos pares europeus ou sob pretexto de realismo político (os ‘compromissos assumidos’), o essencial da actual política de austeridade. Já quanto à segunda, o risco é mesmo o de, esgotadas todas as vias negociais, não restar alternativa à saída do Euro – à semelhança do que poderá acontecer agora na Grécia e com isso desencadear um processo de imprevisíveis consequências.

Apenas dois partidos com assento parlamentar, PCP e BE, têm sido consequentes com esta última estratégia e dispostos a mantê-la sem desvios – ainda que com percursos próprios e traços distintivos. Aliás, sendo os dois tidos como partidos de protesto, apodados de radicais e marginais à política responsável (!), é curiosa a diferença como são encarados pela política dita ‘governamentável’. O PCP, tratado ainda como um quisto político da democracia (‘desta’ democracia), suporta-se, e é mesmo acomodável nas suas manifestações mais hostis, tido até como essencial para o bom enquadramento das tensões e conflitos sociais. Já o Bloco, depois de um relativo estado de graça ou de uma reservada expectativa, parece agora suscitar uma crescente hostilidade mediática, uma quase irritação epidérmica traduzida ou na desvalorização das suas posições (entre o desdém e a zombaria), ou no repetido prognóstico da sua desagregação. PCP e BE, entretanto, mantêm-se cada vez mais próximos no diagnóstico e na terapia radical – e firmes na oposição à política sem conteúdo deste PS (e dos seus ansiosos/ansiados apêndices). Ambos empenhados, consequentemente, em preparar desde já uma alternativa para a provável saída do Euro.

Vem a propósito recordar que ainda há seis anos o Syriza não passava de um partido marginal na política grega, inferior ao peso actual do Bloco, ao invés do então poderoso e maioritário Pasok (versão grega do PS português), hoje praticamente desfeito. E relembrar também, ainda e sempre, os limites do voluntarismo político na dinâmica da História. No processo de transformação social em que estes partidos se dizem empenhados o importante é mesmo saber corresponder às exigências de cada momento, saber ler a realidade em mudança. Não será por acaso que, depois de anos do seu forçado apagamento, para muitos até de um já celebrado mas prematuro (prova-se agora) funeral, se assiste à recuperação/renovação da dialéctica marxista como instrumento essencial na análise – e transformação – social.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A hora das opções decisivas, na Grécia como em Portugal e no resto da Europa (I)

I - Tanto Euro para tão pouca democracia!

Pouco a pouco vai-se aproximando a hora das opções decisivas. Não tardará muito elas irão impor-se na Grécia e, por inevitável arrasto, estender-se-ão aos restantes países europeus. Desde logo aos que ainda este ano se terão de confrontar com eleições e onde, na sequência do que já ocorreu na Grécia, podem emergir alternativas para além das tradicionais alternâncias. Que arriscam vir a baralhar os habituais remansosos jogos de poder pois não deixarão de questionar (ou incomodar?) as opções individuais que cada um irá ser chamado a tomar. E é sobretudo destas que importa falar então, em nome do urgente resgaste do bem-estar extorquido, dos direitos ameaçados, do aumento das desigualdades, da dignidade ofendida…

O essencial do debate irá centrar-se seguramente em torno da austeridade responsável por tamanha regressão histórica – em nome da intransigente defesa do Euro! Na melhor das hipóteses a abordagem poderá ir ao ponto de questionar a própria razão de ser da austeridade em período de recessão, mas na maioria das vezes a discussão não irá sequer além da dosagem certa a aplicar: a austeridade não é questionável, ela torna-se mesmo inevitável perante um nível tão elevado da dívida, apenas importa saber em que medida ela é suportável para permitir criar as condições para a sua liquidação. Pouco importa avaliar a forma como esse montante foi originado, quem afinal lucrou com ela e a provocou. Falar de ‘auditorias à dívida’ neste contexto pouco ou nenhum sentido fará. E, no entanto, a austeridade no centro do debate foi apenas o meio encontrado ou a justificação para se aplicar uma política centrada, isso sim, na brutal transferência de recursos do trabalho para o capital, sob múltiplas formas e pretextos. A desvalorização da política e a tentativa de a substituir pela técnica – bem apoiada por reverentes e pressurosos ‘media’ de serviço – completam esta operação de reorganização social neoliberal.
 
Ora, para quem na Europa a aprendizagem forçada dos últimos anos não fora bastante para o evidenciar, a experiência grega dos dois meses de governação da actual coligação liderada pelo Syriza tornou bem claro o dilema que resume a opção essencial em confronto: se a austeridade por trás dessa brutal transferência de recursos é o suporte político natural deste Euro, então a única alternativa que resta à democracia passa por se ponderar seriamente a saída dele em momento oportuno. Esta é a conclusão a partir da qual será possível construir uma plataforma de entendimentos para o futuro sem equívocos ou ilusórias expectativas. Talvez a mesma que permitiu ao Syriza, percebe-se melhor agora, coligar-se com um partido de centro-direita, mas firme na oposição a esta austeridade e disposto a sair do Euro se a tal for obrigado. O que de algum modo antecipa já os desenvolvimentos imediatos deste processo.

Pressentia-se, com a vitória do Syriza na Grécia, que muita coisa na política europeia (e nas políticas dos respectivos países) iria ser posta à prova. Desde logo o confronto da autonomia democrática de cada país com a cada vez mais assumida hegemonia alemã, a pretexto do Euro, e o papel de crescente subserviência das instituições europeias, a começar pela Comissão, perante tal poder. Da permanente chantagem exercida pelo BCE sobre as finanças gregas, à uniformidade de posições adoptada pelos países comunitários (mesmo que aqui ou ali, fora dos centros de decisão, um ou outro possa emitir alguma nota dissonante de apoio ao governo grego), obedientemente perfilados perante o Kaiser alemão – de momento a guarda avançada da ofensiva neoliberal – tudo parece conjugar-se para provar a impossibilidade de, no actual contexto político de subordinação ao Euro, poder vingar alguma autonomia neste unanimismo, imposto ou assumido, de pendor germânico. Que, afinal, de nada valem posições políticas voluntaristas, por mais democráticas e bem-intencionadas, perante o ‘diktat’ dos poderes instituídos, normalmente travestido de imposições técnicas, versão actualizada do TINA de Tatcher.

Esta aparente conformidade política de posições com origens tão díspares e interesses tão divergentes é apontada como normal e até inevitável face aos compromissos assumidos perante as instituições comunitárias. O edifício institucional desta UE assume-se, pois, como ‘apenas’ mais uma peça de uma vasta operação – reafirme-se sempre – minuciosamente elaborada ao longo das últimas décadas, tendente à implantação das ideias e práticas liberais, resultando na actual globalização capitalista. A orientação ideológica neoliberal, laboriosamente tratada em sociedades (quase) secretas ou em selectas academias universitárias (da Societé Mont-Pelerin à Escola de Chicago…), tem a sua expressão prática na condução política promovida por múltiplas organizações privadas supranacionais (do Consenso de Washington ao Club Bilderberg ou à Comissão Trilateral…) e, a nível interno de cada país, por uma miríade de partidos que vão dos assumidamente liberais aos social-democratas e socialistas, acusados de capitularem perante o avassalador poder liberal.

Tudo isto devidamente ‘condimentado e bem oleado’ por uma comunicação social bem atrelada, cumprindo a função de justificação perante uma opinião pública que se pretende avessa à política (e com horror aos políticos!) e arredada da cidadania, presa na versão tecnocrata do indiscutível ‘não há alternativa’! De fora apenas as franjas marginais da política, os partidos ditos de protesto, tolerados pelo sistema e assim designados para surgirem perante a tal opinião pública como incapazes de governar, ao mesmo tempo que desse modo cumprem, na sua óptica, o papel de enquadramento legal das tensões sociais que melhor legitima os seus actos. 
(...)