II – O realismo da política
radical dos ‘marginais da política’ e a dialéctica da História
A grande novidade na evolução
política das últimas décadas, dominadas pelo ascenso incondicional e quase
absoluto das ideias e práticas neoliberais a nível global, foi a subida ao
poder num país ocidental de um desses partidos ditos de protesto (algumas experiências
fora deste espaço não têm sido encaradas como um risco tão sério, caso das
tentativas de autonomia face ao poder global por parte de certos países
sul-americanos, não obstante todos os esforços desestabilizadores). A vitória
do Syriza na Grécia surgiu, pois, no horizonte do incontestado poder neoliberal
como uma ameaça – a despeito do seu programa pouco mais reivindicar que
um retorno ao ‘velho’ ideário social-democrata dos ‘trinta gloriosos anos’ e o
resgate do Estado Social! Mas, como na boa doutrina da gestão empresarial, uma ameaça pode e deve ser revertida e
encarada como uma oportunidade, pelo
que é assim mesmo que tem vindo a ser tratada pelos poderes instituídos. A ‘experiência
grega’ deverá funcionar, então, como vacina para os restantes países
que ousem contestar o poder estabelecido!
Os próximos tempos – talvez os
próximos dias – irão decerto trazer novidades neste domínio. A resistência
grega à chantagem comunitária (BCE, Comissão, Eurogrupo, directório alemão…)
encontra-se nos limites do tolerável pela dignidade de um povo e das condições
de sobrevivência, por razões financeiras, do próprio governo grego. Enquanto as
negociações prosseguem, pressente-se a angústia dos negociadores gregos (e
atrás deles, além da esmagadora maioria do povo grego, segundo as sondagens, grande
parte da opinião pública dos europeus para quem o desfecho desta ‘aventura’ não
é irrelevante, bem pelo contrário), na busca de uma solução que, preservando o
Euro, permita para já aliviar a austeridade; a par da mal disfarçada impaciência
dos negociadores comunitários ávidos por desferirem o golpe de misericórdia na
ousadia grega e assim aplicarem, o mais rápido possível, a vacina correctiva
nos demais países onde despontam laivos de rebeldia.
Até por isso a operação de
salvação do Euro, já se percebeu, dificilmente terá sucesso na Grécia. Se, como
tudo o indica, a Grécia for obrigada a sair do Euro, as suas implicações sobre
os restantes países europeus far-se-ão inevitavelmente sentir aos diversos
níveis. Contudo, torna-se prematuro adiantar o que quer que seja sobre
possíveis cenários. Em termos económicos e financeiros, por mais acautelados e
preparados que venham a ser os planos de saída, os efeitos de uma tal decisão estão
longe de poder ser antecipados e o imprevisto é o único cenário plausível. Ou
seja, nenhum cenário é possível adiantar face à imprevisibilidade da própria
reacção dos mercados financeiros. O que condiciona todas as restantes áreas,
incluindo a política. Que, ainda assim, permite alguma incursão menos arriscada
a nível dos meandros partidários.
Assim, no campo das hipóteses
meramente voluntaristas da intervenção política – uma crise traumática, como a
de 2008, não é descartável, apresenta-se até como muito provável, mas a
acontecer, nem o momento e muito menos os seus efeitos são possíveis de
antecipar – a resposta ao autêntico retrocesso civilizacional que esta
austeridade impôs (sobretudo a nível de direitos laborais) pode envolver duas
estratégias com objectivos bem diferenciados. Uma aponta, antes de mais,
a prioridade na substituição dos responsáveis pela hecatombe – depois logo se
verá…; a outra estabelece, para além disso, e desde já as condições essenciais
à elaboração de um programa de governo democrático. A primeira corresponde à estratégia
seguida pelo PS e de todos quantos têm vindo a manifestar a necessidade de convergência
com esse propósito mínimo: daí a táctica de A. Costa não se comprometer com
nada de concreto antes das eleições (jogando no desgaste do Governo, mas também
não correndo riscos de promessas não cumpridas). A segunda, na sequência da adoptada pelo Syriza na Grécia, estabelece
dois objectivos imediatos: renegociação da dívida e remoção do Tratado
Orçamental.
Relativamente à primeira, existe o risco (entre os mais
cépticos ou realistas, a convicção) desta se tornar completamente inútil,
pois para além de algumas declarações piedosas sobre os malefícios da
austeridade e a necessidade de alteração da política europeia neste domínio, é
bem conhecido o historial do PS no poder, rapidamente os seus próceres
aceitarão, por pressão dos respectivos pares europeus ou sob pretexto de
realismo político (os ‘compromissos assumidos’), o essencial da actual política
de austeridade. Já quanto à segunda,
o risco é mesmo o de, esgotadas todas as vias negociais, não restar alternativa
à saída
do Euro – à semelhança do que poderá acontecer agora na Grécia e com isso desencadear um processo de imprevisíveis
consequências.
Apenas dois partidos com assento
parlamentar, PCP e BE, têm sido consequentes com esta última estratégia e
dispostos a mantê-la sem desvios – ainda que com percursos próprios e traços distintivos.
Aliás, sendo os dois tidos como partidos de protesto, apodados de radicais e
marginais à política responsável (!), é curiosa a diferença como são encarados
pela política dita ‘governamentável’. O PCP, tratado ainda como um quisto
político da democracia (‘desta’ democracia), suporta-se, e é mesmo acomodável
nas suas manifestações mais hostis, tido até como essencial para o bom
enquadramento das tensões e conflitos sociais. Já o Bloco, depois de um
relativo estado de graça ou de uma reservada expectativa, parece agora
suscitar uma crescente hostilidade mediática, uma quase irritação epidérmica
traduzida ou na desvalorização das suas posições (entre o desdém e a zombaria),
ou no repetido prognóstico da sua desagregação. PCP e BE, entretanto, mantêm-se
cada vez mais próximos no diagnóstico e na terapia radical – e firmes na
oposição à política sem conteúdo deste PS (e dos seus ansiosos/ansiados
apêndices). Ambos empenhados, consequentemente, em preparar desde já uma alternativa para a provável saída do
Euro.
Vem a propósito recordar
que ainda há seis anos o Syriza não passava de um partido marginal na política
grega, inferior ao peso actual do Bloco, ao invés do então poderoso e maioritário Pasok (versão grega do PS português), hoje praticamente desfeito. E relembrar também, ainda e sempre, os limites do
voluntarismo político na dinâmica da História. No processo de transformação
social em que estes partidos se dizem empenhados o importante é mesmo saber
corresponder às exigências de cada momento, saber ler a realidade em mudança. Não
será por acaso que, depois de anos do seu forçado apagamento, para muitos até
de um já celebrado mas prematuro (prova-se agora) funeral, se assiste à
recuperação/renovação da dialéctica marxista como instrumento essencial na
análise – e transformação – social.