A propósito da
‘refundação’ ( do Memorando? do Estado? da Democracia?...)
Está em curso uma gigantesca
campanha de reabilitação da troika ou do que ela realmente representa.
Reabilitação para uns, reforço de credibilidade para outros, pois a troika,
como quase tudo, tem seguidores fiéis e tergiversadores de ocasião (conforme os
ventos) – os Gomes Ferreiras e os Camilo Lourenços, não obstante algumas
divergências, surgem unidos no propósito essencial de justificarem a existência
dessa espúria tríade externa: suportar o programa político dito liberal
até agora desenvolvido pela tríade partidária interna (onde, como se sabe – e
se lamenta – tergiversa também o PS, uns dias ao lado do actual Governo PSD/CDS
– em regra no essencial – noutros na oposição ao mesmo).
O objectivo deste ‘novo’ surto de acrisolada fé nas
virtudes terapêuticas (para consumo interno) da famigerada tríade é claro:
desferir o golpe de misericórdia no raquítico Estado Social, acusado, ainda
assim, de todos os males e vícios que se atribuem a um povo cada vez mais
oprimido e definhado, uma vez que, dizem eles, as inúmeras penas e demais
sevícias infligidas em nome de uma saudável e miraculosa ‘cura de
emagrecimento’ (???) da despesa pública não surtiram o efeito previsto e
desejado.
Aproxima-se o momento – cumprida a etapa da punitiva e ‘pedagógica’ punção
fiscal, essencial à sustentação da tese dos gastos excessivos do Estado – de terminar a tarefa principal que tem ocupado o poder
político a pretexto da resolução da actual crise financeira: demolir o edifício
de direitos sociais instituído nos últimos quarenta anos, rasgar o pouco
mais que embrionário Contrato Social, dar a estocada final no massacrado
Estado Social. Claro que, no final, restará sempre um seu arremedo –
hoje já poucos arriscam contestar a necessidade de ‘um’ Estado Social –
provavelmente reduzido a mero subsidiário de uma caridade institucionalizada.
Ora, nunca como hoje as possibilidades técnicas permitiram
às pessoas tantas facilidades no acesso a uma vida digna, mas também nunca como
hoje foram postos em causa tantos direitos básicos (de repente transformados em
‘meras’ regalias descartáveis) com o
argumento de que os recursos que existem não dão para todos, ou para tudo
o que era suposto ser garantido por esses direitos. Certo é que nunca como hoje
se foi tão longe na mistificação da realidade: desde logo patente na política
económica do OE/2013 – não obstante reunir o mais largo
consenso negativo de que há memória, mesmo na maioria que a aprovou; ou ao
apresentar-se, como saída para a crise, uma pretensa Refundação do Estado
– eufemismo que esconde o plano de destruição do Estado Social; ou ainda ao
falar-se da necessidade de se reindustrializar o País – depois de
sucessivas políticas 'social-democratas' (do PSD e do PS) terem destruído a sua
modesta estrutura produtiva por troca com os Fundos Europeus de uma dita
modernização, pondo-o completamente dependente do exterior e, agora, da
voracidade da especulação interna e externa!
Mas, sobretudo, nunca como hoje a fraude democrática
de um Governo – que, antes de o ser, no ‘contrato eleitoral’ que
estabeleceu com os cidadãos, prometia o contrário daquilo que está a executar – foi tão ostensiva e tão profunda. Talvez porque nunca como hoje o poder
político demonstrou tanta cobardia e tão descarada subserviência perante os
interesses particulares (externos e internos), na defesa pública dos seus
representados.
Escorado numa pretensa decisão da
troika (urdida e ‘soprada’, como bem se sabe, pelos representantes do momento
da tríade interna), este Governo delineou um programa – a dita
‘refundação do Estado’ (ou da própria democracia?); estabeleceu um calendário
– até Fevereiro; definiu uma meta – pelo menos uma redução da
despesa do Estado em 4 mil milhões de euros! Munido de tal propósito, importa
agora aplanar o terreno, recorrer aos bons ofícios de prosélitos e
serventuários reafirmando, mais uma vez, a estafada tese do inevitável,
de revisitar (palavra bem do seu agrado), mui reverentemente, a famigerada TINA
de Thatcher do ‘não há alternativa’– de se resguardar, mais uma vez, no patrocínio dessa
soturna tríade externa, a troika!
Com a crise do crescimento económico contínuo (e o desmoronar do
sonho do progresso ilimitado, que se associa à sociedade de consumo), a falência
da austeridade inevitável (a austeridade não é a terapia mais indicada
para este sistema, que se alimenta sempre de mais consumo), resta, pois, a frágil
democracia, cada vez mais identificada (ou acantonada?) ao conjunto de
rituais que lhe dão forma, mas já quase despojada de conteúdo e, por isso
mesmo, em crescente descrédito. Mesmo assim, se (ou quando?) esta falhar – ou
se esgotar – qual a alternativa?