No emaranhado de ideias e
sentimentos que se vai tecendo em torno da Grécia, sobretudo depois da ‘noite da humilhação’ em que a
democracia grega foi obrigada a vergar-se perante o alemão Schäuble & Cª.,
sobram muitas dúvidas e incógnitas, mas emergem também algumas certezas. A mais
ouvida e repetida terá sido mesmo – a par da humilhação infligida, já não há
volta a dar – a de que o Euro acabou
com a rendição grega. Para alguns mais ousados terá sido mesmo a União Europeia que acabou, pois deixa
de fazer sentido falar-se mais de uma Europa solidária, como era o propósito
que presidiu à sua criação.
Já muito se disse e se escreveu
sobre a estratégia do medo – de que
a humilhação
é peça fundamental – como forma de dominação política. O que se passou
com a Grécia é, deste ponto de vista, exemplar e ilustra bem tudo o que aqui
está em jogo: uma democracia ‘proibida’
de apresentar alternativas à via única da austeridade; a austeridade utilizada como forma de impor um modelo económico
determinado, o modelo neoliberal; o modelo
neoliberal da economia apresentado como a única realidade plausível (TINA)
e capaz de salvaguardar os interesses nacionais; o interesse nacional sobrepondo-se à solidariedade comunitária; a imposição, na cena internacional, da regra
do mais forte sobre os mais fracos; e
mais uma vez, a confirmação da supremacia
germânica sobre todos os restantes (agora sob disfarce económico)…
Tudo isto e o mais que conduziu à
‘noite da humilhação’, longe do acaso
ou de corresponder a esconsas e cabalísticas conjuras, é tão só o resultado
lógico da aplicação dos princípios e regras (ou ausência delas) que enformam o
sistema capitalista na sua fase actual neoliberal, surge apenas como a extensão
natural de um modelo social que faz da competição
a sua marca de água e principal critério de ponderação. A não ser travada, a tendência
que se nota para uma competição cada vez mais exacerbada potencia o conflito
social, político…, e irá seguramente desembocar, tudo o indica, na selva
social (como já antes o tinha
afirmado). Essa é a lógica inexorável de um sistema que sobrepõe a concorrência
– o mercado – à democracia. Ademais,
ao privilegiar-se a competição sobre a cooperação num espaço que se pretende de
integração económica, legalizando e até incentivando, por exemplo, práticas
abusivas no comércio intracomunitário – com a desregulação cada vez mais
descarada de diversas formas de dumping (social, fiscal, até comercial, através
das famigeradas barreiras técnicas) –
quebram-se limites que de algum modo tolhiam os egoísmos nacionais e, por isso
mesmo, podiam ainda sustentar alguns laivos da solidariedade implícita na pretensão
de uma integração comunitária da Europa.
Neste contexto, o impiedoso Schäuble,
apesar da ‘sua’ esmagadora vitória alcançada sobre os gregos, não passa de um efémero
títere exercendo um poder delegado pelos
mercados, mas destinado à imolação na primeira contrariedade. Já a massacrada
realidade grega, não obstante o aparente fracasso ditado pela submissão total a
esse poder, representa a expressão de uma alternativa possível (em construção)
à conjuntura histórica dominada pelo austeritário
TINA que não admite alternativas. Se, por um lado, ficou evidente a debilidade
da democracia em enfrentar esses poderes fáticos da sociedade, foi possível,
para já, demonstrar a capacidade em se assumirem livremente opções democráticas
– e isso contra todas as pressões, chantagens e… medos!
Não resisto a reproduzir aqui o
‘comentário’ de um Anónimo a um texto
de Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas a propósito da
importância (ou não) de Schäuble no desencadear dos acontecimentos que conduziram
à rendição grega ao ‘dictat’ europeu: “Tudo
isto me faz lembrar a caótica confusão de um rebanho numa cerca uma vez nela
introduzida uma alcateia. Os lobos hão-de comer as ovelhinhas e, quando já as
não houver e, apesar do sangrento banquete, ainda existir apetite para mais
carnificina, hão-de devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles. Ser o
lupino macho alfa um "Schäuble", um "Gunther" ou um
"Hans" é indiferente para a adivinhada sorte das ovelhas. Aliás, há
agora um lobinho que, querendo agigantar-se, pretende ditar o número de
efectivos da alcateia e que dá pelo pouco germânico nome de
"Hollande".
Com cara de cachorro apanhado no meio da
borrasca ficou o Messias de Massamá, o nosso querido Primeiro: julgava-se, dada
a sua canina solicitude para com os poderosos da alcateia, um membro dos
componentes do feliz grupo dos predadores de topo, mas mandaram-no ir brincar
com os do seu escalão: os cachorrinhos de Espanha e da Grécia. A ele, coitado,
que não se cansava de protestar que não era grego. Não se faz. E nem um carinho
da mamã loba Merkel ele recebeu... Chocante.”
A alegoria não é, de modo algum,
tranquilizadora, mas é bem certeira na denúncia de uma situação que ameaça a
própria sobrevivência da espécie. Pela via da competição desenfreada, da predação
ilimitada dos recursos, da destruição imensa de vidas, de os lobos acabarem a ‘devorar-se uns aos outros até só sobrar um deles’. Ao medo e à humilhação, porém, é possível
hoje sobrepor a dignidade e a coragem
democráticas que os gregos provaram nas urnas. Destas e em termos práticos
sobra ainda a demonstração factual de um Euro
incompatível com a democracia, o que torna mais sólida a exigência de rupturas
sociais, no âmbito de uma estratégia política que aposte, no
imediato, na recuperação da soberania nacional e no termo desta austeridade.
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