A história de um acordo à esquerda: um passo à retaguarda, dois passos em frente
A mudança política em Portugal
teve, no dia 10 de Novembro/15, o culminar apenas da primeira fase de um processo que se adivinha longo e atribulado. Deu-se,
para já, um passo importante nesse processo, mas tudo não passou ainda dos
aspectos mais formais envolvidos num trajecto que vai ter já muito em breve,
tudo o indica (e a despeito dos humores venenosos do ‘pastel’ de Belém), a sua grande
prova de fogo. Foram criadas bases para se dar início a uma mudança real na
política portuguesa, mas as transformações sociais exigidas enfrentam um
cenário de tantas incertezas, a nível interno e externo, que se torna
impossível antecipar seja o que for, a imprevisibilidade é mesmo a única
certeza. Talvez seja esta até a única área de possível acordo com a caterva de
comentadores que, por estes dias ainda mais que no passado, pressurosamente se afadigam
em pintar o caos e o drama perante o que asseguram ser uma ‘alternativa
impossível’ que teimam em esconjurar.
Mas se é difícil antecipar o
futuro, agora em particular, afigura-se oportuno ponderar sobre o caminho
andado para aqui chegar e recordar alguns dos passos que o possibilitaram. Embora
se devam sobretudo acentuar os valores
comuns a todos quantos se reclamam da esquerda, herdeira de uma longa
tradição sintetizada na trilogia que a revolução francesa consagrou, não é
possível ignorar – neste momento importa até avivá-lo bem (coisa que os
comentadores também fazem mas com propósitos antagónicos dos aqui terçados) – o
ponto de partida das divergências ideológicas das três principais forças
políticas que garantem o acordo que torna possível essa mudança.
Independentemente das razões e explicações para o longo e profundo divórcio
entre posições políticas aparentemente próximas, o certo é que só agora parecem
criadas as condições que permitiram um entendimento mínimo entre PS, BE e PCP.
Um entendimento desde logo na rejeição conjunta de uma posição política
antagónica aos três (consubstanciada na política de austeridade actual), depois
traduzido em programa mínimo de governo – o que de facto constitui a grande novidade!
Para aqui chegar, porém, foi
preciso, antes, passar pela prova da divisão profunda que separava as
esquerdas, como no famigerado chumbo do PEC IV, apresentado pelo PS de Sócrates
e rejeitado no que foi entendido por uma aliança espúria entre esquerda (BE,
PCP e PEV) e direita (PSD e CDS/PP). Mas só na aparência é possível considerar essa
rejeição como uma aliança: a direita entendeu, depois de aprovar os anteriores
três PECs, rejeitar o IV para poder ‘ir
ao pote’ do poder (na expressão do seu líder Passos Coelho). Quanto à esquerda,
apenas manteve a coerência da sua posição política: seria estranho e sobretudo
incoerente se, depois da rejeição dos três anteriores PECs, votasse
favoravelmente, por puro tacticismo, o IV! Mas mais que voltar à história desse
tempo, por demais conhecida, o que mais importa agora destacar são os efeitos dessa
posição na evolução política.
Sabe-se o que se seguiu a esse
chumbo. Após eleições antecipadas, a coligação de direita tomou o poder
propondo-se ir além do ‘memorando’ imposto pela troika, traduzindo-se na aplicação
de uma política de austeridade com o
propósito explícito de empobrecer o país
– acusado de viver acima das suas possibilidades – através de uma brutal
transferência de rendimentos do trabalho para o capital impondo a maior e mais
violenta agressão aos direitos dos trabalhadores em democracia. Os resultados
desta operação política foram duplos: por um lado a direita radicalizou-se ao
ponto de pretender converter o Estado Social num Estado assistencialista,
eliminando assim os últimos resquícios de social-democracia que ainda perduravam
num partido que dela se reclama; por outro sinalizou à esquerda a prioridade da defesa
desse Estado Social contra os ataques desta direita, criando as
condições para o acordo agora assumido.
Sem a experiência que o ‘episódio PEC IV’ acabou por proporcionar
– permitindo à direita coligada aplicar o seu programa num violento exercício
de poder sobre quem trabalha, causticando o PS na oposição – dificilmente a
esquerda convergiria primeiro na
avaliação conjunta do que foi a destruição inútil de vidas e recursos, ímpar na
democracia portuguesa, depois na agregação
de esforços no sentido da mudança que agora se perspectiva. Foi preciso o PS
perceber a natureza desta direita ideologicamente comprometida e os dois
partidos à sua esquerda concluírem que, para garantir o essencial – a vida das
pessoas – nas condições actuais, isso implicava cedências programáticas (mesmo
que temporárias), para que um acordo nunca antes conseguido entre os três fosse
agora possível e viesse a concretizar-se. Um pequeno passo para a mudança – mas
um passo bem decisivo!
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