Conhecidos os resultados das
eleições legislativas de 4/Out. último e tal como no final de qualquer outra
eleição, logo se falou também sobre a ‘inteligência dos eleitores’, a
suprema sabedoria na manifestação da sua vontade na atribuição de
responsabilidades aos eleitos – ainda que, como sempre, restringida aos
resultados dos partidos ditos do ‘arco da governação’. A vitória apenas com
maioria relativa da coligação no poder sinalizaria a vontade dos eleitores na
manutenção do governo mas não na continuidade da sua política de austeridade
(pelo menos nas doses aplicadas), o que explicaria, de igual modo, o papel de
contrapeso a que o PS ficaria reduzido, penalizado por, em adesão à tese da coligação no poder, bem escorada
numa intensa barragem mediática, ter sido ele o responsável pela crise actual.
Desta sábia geometria ditada pela ‘inteligência dos eleitores’ – manter no
poder o governo em funções, mas sem maioria para não lhe ser possível aplicar a
austeridade pretendida – excluir-se-ia o significativo aumento de votos que os
mesmos eleitores decidiram atribuir aos partidos ditos de protesto, pondo a
descoberto a natureza das convicções dos que têm da democracia uma concepção ainda
próxima da coutada medieval!
Acresce que esses resultados têm
vindo a servir para testar e pôr à prova algumas das mais enraizadas certezas
do panorama político nacional: desde logo, a divisão partidária entre partidos de poder (o famigerado ‘arco
da governação’, com PS-PSD-CDS) e partidos de protesto (PCP e BE, nomeadamente);
depois, a convicção de que, precisamente por opção própria, nunca os segundos
aceitariam exercer (ou partilhar) o poder, mantendo-se sempre na confortável
posição do protesto. Agora que os ditos partidos de protesto se demonstram
disponíveis para viabilizarem uma fórmula de governo à esquerda (integrando ou
tão só apoiando um Governo do PS), está a gerar-se uma imensa agitação por
entre os habituais comentadores políticos (e os políticos do poder), receosos, afirmam,
dos efeitos que isso pode vir a implicar sobre a ‘credibilidade externa’ do
País! Impossível – apostrofam com o ar mais convicto e sábio perante tal
desaforo – essa solução é completamente inviável dado não existir qualquer
compatibilidade entre partidos que se afirmam contra a NATO, a UE e o Euro (PCP
e Bloco) e as tradicionais forças políticas alinhadas com a denominada
‘democracia ocidental’ – as tais do exclusivo ‘arco da governação’.
Houve alguém que recordou haver
no norte da Europa (Finlândia) uma coligação no poder que integra um partido
que é contra a NATO, o Euro e até a integração europeia (Verdadeiros
Finlandeses). Com uma notável diferença: trata-se de um partido da
extrema-direita – ainda assim bem integrado no sistema. Afinal o que torna
inadmissível a mera consideração dessa possibilidade é a ousadia de se
pretender afrontar o primado do mercado (por enquanto mais a nível ideológico
do que político, as condições a isso obrigam), pondo em causa algumas das suas bases essenciais (a defesa emblemática
– e, a prazo, inevitável – do controlo público do sistema financeiro),
com o risco imediato de a avaliação dos mercados poder vir a penalizar juros e
ratings de que se faz actualmente a vida dos cidadãos. E porque é com esta que
os ditos partidos de protesto estão mais preocupados, toda a prioridade na
busca de consensos é posta na luta
contra a austeridade e as
desigualdades que ela arrasta – afinal a essência da mensagem transmitida pela larga maioria dos eleitores!
Não parece, pois, constituir
entrave à viabilização de um ‘governo PS’
apoiado
pelos partidos à sua esquerda questões de princípio programático, de
repente tão enfaticamente destacadas por políticos e comentadores ansiosos,
temerosos de um desfecho que não desejam, uns pelos interesses que representam,
outros pelos serviços que cobram ou pelas carreiras que ambicionam. Curiosa a
reacção do mundo político e do universo de comentadores que ainda sem ser certa
– parecendo até pouco provável! – a constituição de um tal governo de esquerda
os lançou em estado de ansiedade catatónica. Antecipam, sem hesitação, uma
catástrofe nos mercados, agitam, sem embaraço e com total falta de pudor, o
espectro da Grécia (como se esse exemplo lhes não devesse pesar nas consciências
e não actuasse precisamente no acautelar dos passos a seguir).
Certo é que o PS, com António
Costa, tem nas mãos a oportunidade de conseguir um consenso histórico à
esquerda, de grande impacto nacional mas igualmente com repercussões a nível
europeu. Depois da destruição social a que se assistiu sobretudo nos últimos 4
anos, a esquerda (BE e PCP) já se mostrou disponível para abdicar, no imediato,
de algumas das suas mais emblemáticas bandeiras, em nome da recuperação da
dignidade e da restituição da vida roubada das pessoas, em nome da defesa do
Estado Social. Dessa sua decisão irá depender ou uma renovada afirmação do
partido ou a sua progressiva irrelevância: o apoio à coligação da direita,
acentuará a sua adesão às políticas de austeridade e ao neoliberalismo,
definhando como tantos outros partidos social-democratas da Europa
(‘pasokisação’); a opção pela esquerda, ao dividir o risco com os restantes
partidos desta área, pode aspirar a reganhar uma liderança (que hoje parece
prestes a desvanecer-se) no âmbito de um projecto capaz de aproximar mais a
política das pessoas, as esquerdas da realidade actual e da correcta percepção
dos seus interesses.
A grande prova advirá, em última
análise, das profundas mutações em curso na realidade económica, social e
política: os sinais evidentes de desagregação ética e dos valores em
que era suposto a Europa ser fundada ameaçam abalar os poderes instituídos. A
gigantesca fraude na Volkswagen, por
um lado, o desconchavo de posições perante o drama dos refugiados, por outro, indiciam situações de impossível
retorno ou recomposição, apontam à urgência
da mudança. A sofreguidão de que dão mostras empresas que se supunham suportes
basilares do sistema (‘não olhar a meios para atingir os fins’, é o seu lema),
pondo em causa a lealdade das relações económicas em que era suposto dever
basear-se a concorrência – o nervo do sistema – ou a constante violação das normas
de solidariedade que fundaram a UE – a razão
de ser da integração – exigem alteração das regras, dos comportamentos e, até,
de actores políticos. Este desafio não pode ser ignorado e deve ser bem
interpretado. Por todos os intervenientes.
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