terça-feira, 13 de outubro de 2015

A ‘inteligência dos eleitores’ interpela a coerência dos comentadores!

Conhecidos os resultados das eleições legislativas de 4/Out. último e tal como no final de qualquer outra eleição, logo se falou também sobre a ‘inteligência dos eleitores’, a suprema sabedoria na manifestação da sua vontade na atribuição de responsabilidades aos eleitos – ainda que, como sempre, restringida aos resultados dos partidos ditos do ‘arco da governação’. A vitória apenas com maioria relativa da coligação no poder sinalizaria a vontade dos eleitores na manutenção do governo mas não na continuidade da sua política de austeridade (pelo menos nas doses aplicadas), o que explicaria, de igual modo, o papel de contrapeso a que o PS ficaria reduzido, penalizado por, em adesão à tese da coligação no poder, bem escorada numa intensa barragem mediática, ter sido ele o responsável pela crise actual. Desta sábia geometria ditada pela ‘inteligência dos eleitores’ – manter no poder o governo em funções, mas sem maioria para não lhe ser possível aplicar a austeridade pretendida – excluir-se-ia o significativo aumento de votos que os mesmos eleitores decidiram atribuir aos partidos ditos de protesto, pondo a descoberto a natureza das convicções dos que têm da democracia uma concepção ainda próxima da coutada medieval!

Acresce que esses resultados têm vindo a servir para testar e pôr à prova algumas das mais enraizadas certezas do panorama político nacional: desde logo, a divisão partidária entre partidos de poder (o famigerado ‘arco da governação’, com PS-PSD-CDS) e partidos de protesto (PCP e BE, nomeadamente); depois, a convicção de que, precisamente por opção própria, nunca os segundos aceitariam exercer (ou partilhar) o poder, mantendo-se sempre na confortável posição do protesto. Agora que os ditos partidos de protesto se demonstram disponíveis para viabilizarem uma fórmula de governo à esquerda (integrando ou tão só apoiando um Governo do PS), está a gerar-se uma imensa agitação por entre os habituais comentadores políticos (e os políticos do poder), receosos, afirmam, dos efeitos que isso pode vir a implicar sobre a ‘credibilidade externa’ do País! Impossível – apostrofam com o ar mais convicto e sábio perante tal desaforo – essa solução é completamente inviável dado não existir qualquer compatibilidade entre partidos que se afirmam contra a NATO, a UE e o Euro (PCP e Bloco) e as tradicionais forças políticas alinhadas com a denominada ‘democracia ocidental’ – as tais do exclusivo ‘arco da governação’.

Houve alguém que recordou haver no norte da Europa (Finlândia) uma coligação no poder que integra um partido que é contra a NATO, o Euro e até a integração europeia (Verdadeiros Finlandeses). Com uma notável diferença: trata-se de um partido da extrema-direita – ainda assim bem integrado no sistema. Afinal o que torna inadmissível a mera consideração dessa possibilidade é a ousadia de se pretender afrontar o primado do mercado (por enquanto mais a nível ideológico do que político, as condições a isso obrigam), pondo em causa algumas das suas bases essenciais (a defesa emblemática – e, a prazo, inevitável – do controlo público do sistema financeiro), com o risco imediato de a avaliação dos mercados poder vir a penalizar juros e ratings de que se faz actualmente a vida dos cidadãos. E porque é com esta que os ditos partidos de protesto estão mais preocupados, toda a prioridade na busca de consensos é posta na luta contra a austeridade e as desigualdades que ela arrasta – afinal a essência da mensagem transmitida pela larga maioria dos eleitores!

Não parece, pois, constituir entrave à viabilização de um ‘governo PSapoiado pelos partidos à sua esquerda questões de princípio programático, de repente tão enfaticamente destacadas por políticos e comentadores ansiosos, temerosos de um desfecho que não desejam, uns pelos interesses que representam, outros pelos serviços que cobram ou pelas carreiras que ambicionam. Curiosa a reacção do mundo político e do universo de comentadores que ainda sem ser certa – parecendo até pouco provável! – a constituição de um tal governo de esquerda os lançou em estado de ansiedade catatónica. Antecipam, sem hesitação, uma catástrofe nos mercados, agitam, sem embaraço e com total falta de pudor, o espectro da Grécia (como se esse exemplo lhes não devesse pesar nas consciências e não actuasse precisamente no acautelar dos passos a seguir).

Certo é que o PS, com António Costa, tem nas mãos a oportunidade de conseguir um consenso histórico à esquerda, de grande impacto nacional mas igualmente com repercussões a nível europeu. Depois da destruição social a que se assistiu sobretudo nos últimos 4 anos, a esquerda (BE e PCP) já se mostrou disponível para abdicar, no imediato, de algumas das suas mais emblemáticas bandeiras, em nome da recuperação da dignidade e da restituição da vida roubada das pessoas, em nome da defesa do Estado Social. Dessa sua decisão irá depender ou uma renovada afirmação do partido ou a sua progressiva irrelevância: o apoio à coligação da direita, acentuará a sua adesão às políticas de austeridade e ao neoliberalismo, definhando como tantos outros partidos social-democratas da Europa (‘pasokisação’); a opção pela esquerda, ao dividir o risco com os restantes partidos desta área, pode aspirar a reganhar uma liderança (que hoje parece prestes a desvanecer-se) no âmbito de um projecto capaz de aproximar mais a política das pessoas, as esquerdas da realidade actual e da correcta percepção dos seus interesses.


A grande prova advirá, em última análise, das profundas mutações em curso na realidade económica, social e política: os sinais evidentes de desagregação ética e dos valores em que era suposto a Europa ser fundada ameaçam abalar os poderes instituídos. A gigantesca fraude na Volkswagen, por um lado, o desconchavo de posições perante o drama dos refugiados, por outro, indiciam situações de impossível retorno ou recomposição, apontam à urgência da mudança. A sofreguidão de que dão mostras empresas que se supunham suportes basilares do sistema (‘não olhar a meios para atingir os fins’, é o seu lema), pondo em causa a lealdade das relações económicas em que era suposto dever basear-se a concorrência – o nervo do sistema – ou a constante violação das normas de solidariedade que fundaram a UE  – a razão de ser da integração – exigem alteração das regras, dos comportamentos e, até, de actores políticos. Este desafio não pode ser ignorado e deve ser bem interpretado. Por todos os intervenientes.

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