quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bestas de carga e bestas quadradas



O polido Sr. Ulrich, banqueiro com pergaminhos e nome na praça, decidiu chamar aos portugueses ‘bestas de carga’. Não exactamente nestes termos, claro, afinal trata-se de pessoa de trato fino e verbo cuidado, obrigado por formação, posição e porventura até ascendência (o nome estrangeirado assim o faz supor) a tornear as intenções, a metaforizar as ofensas. O que ele disse mesmo foi, interrogando-se sobre se o País aguenta ainda mais cargas de austeridade – ‘Ai aguenta, aguenta’, ter-se-á expressado deste modo – o que, traduzido em português vernáculo e vertido para as pessoas, dá exactamente aquela expressão. Mas se os portugueses são tratados como ‘bestas de carga’, na opinião firme e abalizada do impoluto (?) banqueiro, então ele assume-se, na mesma linguagem vernácula e chã, não como vulgar ‘besta de carga’ (pois não suporta ‘carga’ nenhuma e a dos restantes portugueses não lhe pesa cheta), mas como rotunda ‘besta quadrada’! Recorro ao exemplo dos Yurok para explicar o ‘quadrado’.

Os Yurok eram (como estudado por etnólogos vai para mais de meio século!) um povo primitivo, que habitava nas margens do rio Klamath, algures na América (Califórnia do Norte). Toda a vida material e social deste povo se encontrava imbricada e dependente do rio, a ponto de a sua própria percepção geométrica do mundo ser influenciada pela morfologia física envolvente desse rio, de configuração cilíndrica por força da densa vegetação que cobria as suas margens e se prolongava por todo o leito do mesmo, formando um arco compacto. E assim, ao contrário da habitual visão tridimensional, aquela gente, com uma visão muito fechada do universo, desenvolveu uma concepção da realidade na base de uma estrutura... tubular! A nossa herança euclidiana reage à descrição, é certo, mas para quem se habituou a aceitar como natural a diferença, fará o esforço de compreender que existem culturas onde o próprio espaço físico é percebido de modos diferentes do nosso.

A etnologia, bem como as disciplinas afins da antropologia, da sociologia, da psicologia, são áreas a que o ilustre banqueiro pouco ou nenhum crédito dará. Os seus créditos são apenas de carácter financeiro, quando muito socorrer-se-á da economia – daquela ‘teoria económica’ tão científica, tão isenta, tão exacta que até pede meças à que é vista como a mais exacta das ciências, a matemática (longe, portanto, da denominada ‘economia política’ ou da perversa tendência de a integrar nas denominadas ciências sociais, também ditas ‘ocultas’) – para melhor poder argumentar em favor das suas teses. Vive assim fechado, também ele, num mundo à parte (só dele e de mais uns quantos exclusivistas), ostensivamente ignorando a realidade que o(s) rodeia, arrogantemente acreditando que todo o mundo pensa, vive e sente como ele(s), parasitando, afinal, as vidas dos que desprezam.

A imagem que me ocorre, então, é a daqueles funcionários chineses obrigados a fazer testes de aptidão para a polícia com a cabeça enfiada numa caixa de forma cúbica – para não poderem copiar, para melhor se concentrarem no exercício..., pouco importa aqui o motivo, apenas retenho o episódio para melhor ilustrar a posição do estimado Sr. Ulrich, que assim se vê ‘obrigado’ a olhar em frente, sem se ‘distrair’ com os dramas à sua volta, a sua visão lateral ‘limitada’ aos interesses financeiros de um lado e à teoria económica do outro (longe da ‘economia política’, claro, vade retro).

Eis, pois, a razão de, com toda a propriedade e sem risco de tal vir a considerar-se ofensivo, se dever chamar ao refinado banqueiro Sr. Ulrich ‘besta quadrada’. Ao ter classificado os portugueses, naquele jeito ao mesmo tempo peremptório e manso, de ‘bestas de carga’, sendo ele – até ver! – português, mas sem canga nem carga, de besta não se livra, o resto do epíteto advém-lhe da sua visão fechada nessa espécie de caixa cúbica onde, para proveito próprio, enterrou a cabeça e que o obriga, à semelhança da visão tubular dos Yurok, a manifestar um pensamento limitado – no caso, ‘quadrado’!

E, já agora, profundamente ofensivo para os portugueses que lhe merecem tanto desprezo. Pois até a aceitação da diferença tem limites. Fraco consolo, é certo, para tão ruim defunto!

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