terça-feira, 6 de setembro de 2011

Histórias de encantar do ministro Gaspar

A pouco e pouco vai-se percebendo melhor a personalidade do Ministro das Finanças. E se a cada nova aparição sua equivale novo pacote de austeridade, com explicações pouco ou nada convincentes até para os seus mais fervorosos correligionários, a cada nova declaração esbate-se a áurea de técnico austero na palavra, rigoroso nas ideias. Aquilo que de início parecia apenas um estilo ‘português suave’, sobretudo por contraste com a truculência anterior, vai-se descobrindo ser a carapaça onde se acobertam obsessões ideológicas do mais fanático fundamentalismo. Profissão de fé idêntica à de Bush – fiéis da mesma religião – só nos faltava descobrir também tratar-se de predestinado com uma missão divina a cumprir.

O convencimento é de tal ordem que, nas múltiplas aparições e declarações a que já foi instado, o ministro Gaspar só responde, explicitamente o estabelece, àquilo que entende dever responder (não se trata, por regra, nem de revelar segredos de Estado, nem, as mais das vezes, de matéria a aprofundar, mas apenas porque... não lhe apetece). Ou então refugia-se em explicações banais que pouco mais traduzem e adiantam que o senso comum. Mera técnica para se esquivar aos temas incómodos, pois estes não são para debater em público, só mesmo entre predestinados em selectos ‘think thanks’, como a ‘misteriosa’ Societé Mont-Pèlerin ou o Fórum Económico de Davos (este, bem mais publicitado).

Episódio revelador aconteceu na denominada Universidade de Verão do PSD, onde o ministro se deslocou para leccionar. Tema, a crise, claro. E as explicações sobre a mesma. Apanhei a prelecção no exacto momento em que Sexa, munido daquele estilo arrastado e pose de académico ao jeito de quem conta uma história a um público infantil, iniciava a explicação da crise pelo... princípio da mesma. Segundo Gaspar, tal ocorreu nos EUA, com a crise do ‘sub-prime’, e apanhou toda a gente desprevenida. Pelos vistos tudo corria às mil maravilhas (!), ninguém contava com tal percalço (?), nem até a módica dimensão económica do que estava em causa prefigurava ou justificava o que veio a acontecer. Mas então de onde veio a ‘profunda e grave crise’ que se lhe seguiu?

A explicação, segundo o ministro, encontra-se em duas palavras apenas, que se prendem com a natureza do sistema financeiro: trata-se de um sistema muito complexo e que baseia a sua actividade na confiança. E com duas palavrinhas apenas se escreve a história desta crise, que parece não ter fim e vai colocando a cada dia que passa cada vez mais problemas. Com a complexidade tranca-se a oportunidade de se aprofundar a origem da coisa, com a falta de confiança arruma-se a questão. Como é que se chegou à complexidade e porque é que se perdeu a confiança, são pormenores que pouco interessam ao fio da história que traz Gaspar satisfeito e confiante nas suas inabaláveis convicções.

Dizer que o sistema financeiro é complexo e assenta na confiança é cair no vulgar, é descrever sem explicar, é tarefa de repórter não de cientista, não acrescenta nada à resolução dos problemas criados. Mas percebe-se porque o faz. Arriscar-se a explicar o que aconteceu, exigiria desmontar a ‘máquina’ – toda a ‘engenharia financeira’ – que produziu a crise. Coisa que provavelmente não sabe fazer (o que duvido), ou se o sabe (hipótese mais plausível), não se atreve, pois isso equivaleria a pôr em causa a sua ilimitada crença no ‘mercado livre’, precisamente a ideologia que engendrou tal máquina – e que, em última análise, é responsável pela crise.

Equivaleria sobretudo a clarificar o seu papel neste governo de fervorosos acólitos do mercado e a admitir o fracasso do carácter público das suas políticas (assim apresentadas por forma a merecerem a indispensável aceitação social). E a denunciá-las como meros veículos de recomposição do capital financeiro (posto à beira do colapso na sequência da crise), através da sistemática transferência de recursos extorquidos ao trabalho – seja por via fiscal ou política, com a destruição do Estado Social e consequente perda de direitos, exclusão...

Para isso conta com a prosélita liturgia da palavra que a seita neoliberal pratica em consagrados rituais destinados a exorcizar infiéis e a arregimentar descrentes, sem pejo de recorrer, sempre que lhe convém, a toda a litania de expressões inócuas para melhor esconder os verdadeiros propósitos da sua subordinada política aos interesses do capital.

Sem comentários: