A crise, já todos o sabem, mexeu (está a mexer, vai
continuar a mexer...) com a vida das pessoas. Não de forma igual para todos. O
que para a maioria se traduz em retrocesso e grandes dificuldades, representa
para uns poucos a consolidação do seu poderio económico e social. A política,
essa, parece alheia ao desenrolar dos dramas pessoais nela originados, relegada
para adorno de decisões pretensamente técnicas e objectivas, manietada na
lógica de uma ideologia que se afirma anti-ideológica. Manipulada na defesa de
interesses pessoais ou de grupos minoritários.
Na génese desta crise encontra-se um facto, pouco
destacado, mas de enorme importância na explicação da forma como foram sendo
criadas as condições que a ela conduziram, as circunstâncias da sua eclosão e,
agora, o emaranhado de situações e a rede de interesses que a perpetua e torna
impossível ultrapassá-la. Trata-se da ‘tomada do poder das empresas pelos
gestores’. Com o salutar propósito de introduzirem maior racionalidade na
actuação das empresas, assumiram o comando da gestão e rapidamente
passaram ao controle da decisão, neutralizando (na prática, destronando)
os seus proprietários.
A pretexto da ‘criação de valor para o accionista’
e sob o genérico rótulo de ‘técnicas de gestão’, foram introduzindo um
conjunto de regras orientadas essencialmente para o seu benefício pessoal.
Atribuíram-se si próprios (ou recorreram, para dar menos nas vistas, a
ardilosos, mas bem detectáveis, esquemas accionistas cruzados), remunerações
obscenas com base em pretensos critérios técnicos, por via da indexação
aos resultados obtidos no exercício (a eficácia do imediato sobre a gestão
eficiente, pois a longo prazo surgirá, inexorável,... a crise!).
Invadiram o espaço político, impuseram a sua forma de gestão aos serviços
públicos (que passaram a ser geridos como empresas) e rapidamente se instalou a
promiscuidade mais completa entre negócios e Estado, na admissão de pessoas ou
na celebração de contratos. A corrupção e o tráfego de influências passou a ser
encarado como natural. Em definitivo, a política ficou sequestrada nas malhas
dos interesses privados e dos negócios.
Pretender desmontar agora este edifício, laboriosamente
erguido ao longo dos últimos trinta anos, pondo em causa os benefícios
auto-atribuídos, é tarefa que se apresenta quase impossível, dada a teia de
relações estabelecida, dos negócios à política. Mais fácil será o edifício
ruir, arrastando todos na derrocada fatal do que os actuais decisores
prescindirem das mordomias obtidas e a que se consideram com pleno direito (até
por via das normas legais arquitetadas para as alcançar). A ideologia
neoliberal que incentiva o empreendedor criativo – fomentando a
competição desregulada (ainda que se apregoe o contrário) e a ganância, em
detrimento da cooperação e da solidariedade – enquadra e justifica bem toda a
agressividade destes comportamentos aparentemente excessivos.
É este, de facto, o grande papel reservado ao actual
primeiro ministro, o de arauto e defensor da causa liberal (a sua
única formação – mal preparado em tudo o resto!) na impossível missão de
justificar a austeridade imposta. Reduzido na capacidade de decisão, refugiado
na defesa intransigente do ‘memorando da troika’, cuja política emana
directamente de Berlim, Passos desdobra-se em intervenções, nas mais diferentes
situações e lugares. As suas conhecidas gafes – o apelo à emigração, o
desemprego como oportunidade,... – mais não são, afinal, que doutrina vertida
dos manuais da economia liberal, nada de surpreendente, pois.
O ideólogo sobrepõe-se ao político, o missionário
prosélito ao estadista sensato. E, acrescente-se, mais em nome de interesses do
que causas. A insuportável pose de pregador e a alucinada entoação doutrinária
de Passos, o tom convicto que não admite dúvidas nem se perde em incertezas no
caminho traçado rumo aos objectivos definidos, denota bem o espírito de missão
que o anima. Tal como nos idos dos descobrimentos, em que a ‘dilatação da fé’
justificava e servia de cobertura à mais prosaica ‘expansão dos negócios’,
também agora a cartilha liberal esconde e legitima interesses instalados. O
pretendido efeito anestesiante, contudo, está já a esgotar-se e até o pregador
dá mostras de cansaço, de enervamento, de falta de compostura – o polimento da
sua esmerada formação começa a esfarelar! Resta-lhe ainda a via da ‘intentona
dos pregos’, na senda do seu frenético mestre e tutor.
Delapidada sem glória nem proveito a tão gabada paciência dos
portugueses, a retraída apatia parece agora dar lugar à ameaçadora
revolta. O fresco Verão pode trazer um Outono quente!
Sem comentários:
Enviar um comentário