sexta-feira, 13 de julho de 2012

As velhas cruzadas dos novos pregadores


A crise, já todos o sabem, mexeu (está a mexer, vai continuar a mexer...) com a vida das pessoas. Não de forma igual para todos. O que para a maioria se traduz em retrocesso e grandes dificuldades, representa para uns poucos a consolidação do seu poderio económico e social. A política, essa, parece alheia ao desenrolar dos dramas pessoais nela originados, relegada para adorno de decisões pretensamente técnicas e objectivas, manietada na lógica de uma ideologia que se afirma anti-ideológica. Manipulada na defesa de interesses pessoais ou de grupos minoritários.

Na génese desta crise encontra-se um facto, pouco destacado, mas de enorme importância na explicação da forma como foram sendo criadas as condições que a ela conduziram, as circunstâncias da sua eclosão e, agora, o emaranhado de situações e a rede de interesses que a perpetua e torna impossível ultrapassá-la. Trata-se da ‘tomada do poder das empresas pelos gestores’. Com o salutar propósito de introduzirem maior racionalidade na actuação das empresas, assumiram o comando da gestão e rapidamente passaram ao controle da decisão, neutralizando (na prática, destronando) os seus proprietários.

A pretexto da ‘criação de valor para o accionista’ e sob o genérico rótulo de ‘técnicas de gestão’, foram introduzindo um conjunto de regras orientadas essencialmente para o seu benefício pessoal. Atribuíram-se si próprios (ou recorreram, para dar menos nas vistas, a ardilosos, mas bem detectáveis, esquemas accionistas cruzados), remunerações obscenas com base em pretensos critérios técnicos, por via da indexação aos resultados obtidos no exercício (a eficácia do imediato sobre a gestão eficiente, pois a longo prazo surgirá, inexorável,... a crise!). Invadiram o espaço político, impuseram a sua forma de gestão aos serviços públicos (que passaram a ser geridos como empresas) e rapidamente se instalou a promiscuidade mais completa entre negócios e Estado, na admissão de pessoas ou na celebração de contratos. A corrupção e o tráfego de influências passou a ser encarado como natural. Em definitivo, a política ficou sequestrada nas malhas dos interesses privados e dos negócios.

Pretender desmontar agora este edifício, laboriosamente erguido ao longo dos últimos trinta anos, pondo em causa os benefícios auto-atribuídos, é tarefa que se apresenta quase impossível, dada a teia de relações estabelecida, dos negócios à política. Mais fácil será o edifício ruir, arrastando todos na derrocada fatal do que os actuais decisores prescindirem das mordomias obtidas e a que se consideram com pleno direito (até por via das normas legais arquitetadas para as alcançar). A ideologia neoliberal que incentiva o empreendedor criativo – fomentando a competição desregulada (ainda que se apregoe o contrário) e a ganância, em detrimento da cooperação e da solidariedade – enquadra e justifica bem toda a agressividade destes comportamentos aparentemente excessivos.

É este, de facto, o grande papel reservado ao actual primeiro ministro, o de arauto e defensor da causa liberal (a sua única formação – mal preparado em tudo o resto!) na impossível missão de justificar a austeridade imposta. Reduzido na capacidade de decisão, refugiado na defesa intransigente do ‘memorando da troika’, cuja política emana directamente de Berlim, Passos desdobra-se em intervenções, nas mais diferentes situações e lugares. As suas conhecidas gafes – o apelo à emigração, o desemprego como oportunidade,... – mais não são, afinal, que doutrina vertida dos manuais da economia liberal, nada de surpreendente, pois.

O ideólogo sobrepõe-se ao político, o missionário prosélito ao estadista sensato. E, acrescente-se, mais em nome de interesses do que causas. A insuportável pose de pregador e a alucinada entoação doutrinária de Passos, o tom convicto que não admite dúvidas nem se perde em incertezas no caminho traçado rumo aos objectivos definidos, denota bem o espírito de missão que o anima. Tal como nos idos dos descobrimentos, em que a ‘dilatação da fé’ justificava e servia de cobertura à mais prosaica ‘expansão dos negócios’, também agora a cartilha liberal esconde e legitima interesses instalados. O pretendido efeito anestesiante, contudo, está já a esgotar-se e até o pregador dá mostras de cansaço, de enervamento, de falta de compostura – o polimento da sua esmerada formação começa a esfarelar! Resta-lhe ainda a via da ‘intentona dos pregos’, na senda do seu frenético mestre e tutor.

Delapidada sem glória nem proveito a tão gabada paciência dos portugueses, a retraída apatia parece agora dar lugar à ameaçadora revolta. O fresco Verão pode trazer um Outono quente!

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