quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Crise? Qual crise?

VI – Uma alternativa política à crise actual

A crise exige, pois, uma resposta política – e não a meramente técnica, em que se afadigam, em vão, os próceres liberais. Mas mais que um programa de acção ou proposta política – que não cabe aqui apresentar nem defender – importa sobretudo formular os princípios que devem servir de base à construção do novo tipo de relações sociais saído da crise, um código de conduta que permita aferir da valia e capacidade das medidas que vierem a ser adoptadas pelos poderes públicos para se passar das intenções aos actos, para efectivamente se poder falar em controle das causas que a determinaram, para, enfim, ser possível um mundo diferente. Naturalmente, de âmbito de aplicação universal – ainda que sem grandes ilusões sobre a sua concretização.

É nesse propósito que aqui apresento o que entendo dever integrar, na actual fase, uma plataforma mínima de entendimento. Longe da pretensão de ser exaustivo (não mais que meramente indicativo), ou sequer inovador (tudo o que delaconsta tem vindo a ser proposto, há muito e pelas mais diversas entidades), muito menos de poder constituir um documento completo e finalizado (indiscutível e fechado, portanto). Para obstar ao estafado argumento de que a esquerda só sabe criticar, mas não tem alternativas viáveis a apresentar. Mesmo que o seja apenas em termos de princípios muito genéricos, porque o que importa, nesta fase, é que se demonstrem exequíveis e de aceitação suficientemente universal.

Em geral, as regras enunciadas (ou a base de que são extraídas) constam já do que se pode designar por um largo consenso constitucional, muitas integradas (sob diferentes formas) nas leis fundamentais das principais democracias do mundo – ou, pelo menos, sem que ninguém as ouse contestar. Contudo, haverá sempre quem argumente que os princípios aqui expostos são irrealistas, que a sua concepção é demasiado abstracta pois não atende aos últimos avanços económicos (tão avançados, direi eu, que puseram o mundo à beira duma catástrofe – como é o caso dos famigerados ‘off-shores’!), ou que tudo isto não passa de mero exercício teórico, dominado por um idealismo utópico e fantasioso. Ainda assim, vale a pena arriscar!

Para que tudo não fique na mesma – mas, reafirmo, sem grandes ilusões! – importaria, pois, que a discussão sobre as medidas a adoptar se centrasse em torno dos seguintes pontos:


1. Activar princípios básicos democráticos na organização social – no plano do Estado e das empresas – essencialmente a quatro níveis:
– impor o domínio da política sobre a economia, por forma a que as escolhas políticas livremente assumidas se sobreponham às das do livre curso das forças do mercado;
aproximar os eleitos dos seus eleitores, com a adopção do princípio da descentralização do poder do Estado (pelo recurso a vários dispositivos, a regionalização, por exemplo);
reordenar prioridades económicas, substituindo o objectivo do crescimento contínuo por uma distribuição do rendimento mais equitativa;
aproveitamento racional dos recursos disponíveis, tanto a nível das capacidades humanas como das potencialidades naturais, impondo-se, em ambos, uma sistemática política de redução de desperdícios.

2. Garantir o controle público de áreas reconhecidamente estratégicas, acautelando que a sua utilização ou actividade venha a ser posta em causa por interesses privados:
Domínio absoluto dos sectores económicos vitais para o futuro de toda Humanidade, tais como a água, a energia, os recursos mineiros, a floresta...;
Controle das empresas de grande dimensão (em função do respectivo contributo para o PIB), dado o peso e repercussões da sua actividade sobre o tecido social.

3. Controlar os efeitos da globalização financeira, em nome de uma maior transparência, equidade e solidez nas relações sociais internacionais, nomeadamente:
eliminar os denominados ‘paraísos fiscais’ (off-shores): calcula-se que 80% dos lucros gerados a nível mundial escapam ao fisco, beneficiando os 20% mais ricos do planeta;
banir e interditar todas as formas de ‘dumping’ – comercial, social, fiscal,... – por se considerar que tais práticas distorcem a verdade das relações de comércio.

4. Potenciar os efeitos da globalização técnico-científica, no sentido de uma efectiva e planetária democratização dos benefícios da ‘revolução informacional’, apostando-se em:
difusão maciça dos sistemas informáticos, implicando a dotação em equipamentos, mas também a formação indispensável à sua melhor utilização e exploração;
acesso generalizado e imediato a tecnologias industriais limpas, em detrimento das mais obsoletas, estas normalmente associadas a graves problemas ambientais.

5. Construir novas relações internacionais – a nível comercial, económico, político, social,... – baseadas essencialmente em:
integração nos ordenamentos jurídicos nacionais dos princípios universais do direito, com particular respeito pelos do Homem e da Natureza;
adopção pela comunidade internacional dos princípios de igualdade e garantia da soberania interna dos Estados, não ingerência, respeito e cooperação mútua;
compromisso Norte-Sul, que permita reorientar as economias no sentido do respeito pelo ambiente, os recursos naturais e o apoio maciço ao desenvolvimento do Sul.

Tudo isto é exequível, é desejável e é urgente! Constituirá apenas, como é óbvio, um primeiro passo para se ultrapassar a grave crise social (que vai muito além da financeira, que se está a pretender reduzir a mero 'erro humano') e iniciar-se a (re)construção de uma sociedade diferente, que permita inverter a regra do mercado como medida de todas as coisas, de tudo ser feito em nome e para maior benefício do mercado. Na convicção, porém, de que a aceitação de novos parâmetros na organização social só se efectivará por etapas e sob forte e continuada pressão das opiniões públicas, nacionais e mundial, cada vez mais conscientes dos riscos e perigos da deriva mercantilista (em especial na sua actual versão neoliberal) e despertas para uma acção política, ainda de contornos pouco definidos na sua constituição formal – por enquanto expressa sobretudo em inúmeras manifestações de mal-estar e crescente desespero ou em generosas tentativas partidárias ainda sem um muito definido programa político que vão aparecendo um pouco por todo o mundo.

Aliás, a crise encarregou-se de demonstrar de forma mais persuasiva que qualquer campanha política nesse sentido, que é tempo de se começar a questionar o domínio absoluto do paradigma mercantil, afinal a origem e causa última do descalabro financeiro actual!

2 comentários:

José M. Sousa disse...

Um livro a precisar de tradução urgente para português:

The Coming First World Debt Crisis

A Emergente Crise da Dívida do Primeiro Mundo! de Ann Pettifor

Destina-se aos leigos - a todos nós - nesta loucura da finança de casino, com o objectivo de dotar as pessoas de instrumentos que lhes permitam compreender a crise actual e o que podemos fazer em relação a isso.

Anónimo disse...

Caro José Sousa,
Vou ter mesmo de aguardar pela tradução (dado que não me sinto muito à vontade no inglês), ou então pelo final do ano lectivo, depois do curso que ando a tirar!
Mas lá que o tema me suscita grande curiosidade e interesse, é mais que óbvio!