sábado, 18 de outubro de 2008

Duas mensagens para um projecto?

Na quinta-feira passada (16 de Out.), à noite, assisti a duas intervenções do Francisco Louçã sobre a actual crise. Primeiro na televisão, depois num debate promovido pelo Le Monde Diplomatique. E se trago aqui o assunto é sobretudo por não estar seguro de as mensagens transmitidas nas duas comunicações se poderem sobrepor, ou mesmo de uma poder ser o desenvolvimento da outra. E também porque me permite expressar um pouco aquilo que me parece ser, até à data, a estratégia da esquerda perante a crise e analisá-la criticamente.

Dir-se-á, desde logo, que a táctica comunicacional, atenta a heterogeneidade das duas audiências, aconselharia mensagens diferentes na forma (embora reproduzindo uma orientação comum). A primeira, dirigida a um público muito diversificado e por isso mais moderada, apontando para medidas imediatas e próximas das preocupações das pessoas; a segunda, perante um auditório já motivado pelo tema, permitindo um tratamento mais elaborado e de perspectivas a longo prazo. Contudo, a sensação que retirei destes dois momentos do Louçã é que podem não ser totalmente convergentes (descontando, portanto, o efeito dos públicos e dos meios de comunicação utilizados diferentes).

Explico-me:
– Na entrevista televisiva (não vi os 5 a 10 minutos iniciais), a preocupação do Louçã parece ter sido a de acomodar (ou pelo menos não hostilizar) a onda dominante que pretende sobrevalorizar as causas morais da crise – insistindo na ganância e na fraude dos gestores financeiros – enquadrando, por isso mesmo, a sua saída, em medidas de correcção mais de natureza técnica (maior regulação dos mercados, é certo que com um maior controle político do Parlamento) do que de natureza política, ainda que pondo em evidência a dualidade de comportamentos do Estado perante as vítimas daquela: pressuroso e mãos largas no caso dos financeiros, alheado, por exemplo, no caso dos desempregados com casa própria, de repente impossibilitados, por razões alheias à sua vontade, de cumprirem com os planos de pagamentos acordados.

– No debate do MD, entretanto, as causas da crise vão muito para além da ética dos gestores e entroncam na natureza do próprio sistema capitalista mundial, basicamente num processo de profunda desvalorização do capital, sobretudo financeiro (essencialmente capital fictício, pois nas duas ou três últimas décadas, ele tem sido sustentado pela especulação bolsista com epicentro na ultraliberal América!), conduzindo logicamente à desvalorização do trabalho de cuja sobreexploração se alimenta a sua acumulação. E se assim é, a solução para a crise não passa por mais ou menos regulação e melhores níveis de auditoria das empresas – pois comprova-se que a isenção e independência dos reguladores e auditores é uma falácia destinada a legitimar o poder económico capitalista, precisamente baseado na desregulação do mercado! – passa pela alteração radical da política e, logicamente, do papel do Estado na economia.

É certo que o condicionamento do meio televisivo, face à diversidade dos públicos atingidos, aconselha alguma prudência, até para garantir alguma eficácia da mensagem que se transmite. Penso, no entanto, que a degradação das condições actuais, a nível económico, político e até (ou sobretudo) ideológico, é hoje particularmente propícia à demonstração de que um outro modelo de sociedade se tornou indispensável e, por isso, aconselharia maior ousadia no seu conteúdo. E designadamente uma melhor explicitação (tanto quanto é já hoje possível fazê-lo) dos objectivos e medidas para os atingir.
Como tentarei mostrar em próxima posta.
(...)

4 comentários:

José M. Sousa disse...

Que entrevista televisiva foi? A que canal?

José M. Sousa disse...

Plenamente de acordo! E se lermos, por exemplo, Ann Pettifor, autora de "A crise emergente da dívida do primeiro mundo" - livro que, insisto deveria ser traduzido de imediato para português (quem conhecer editores, façam a sugestão)- veremos que o Louçã tem todas as razões para ser "radical" neste ponto. Suponho, no entanto, que devesse transmitir alguma pedagogia, conhecimento - de forma simples - sobre a natureza do sistema financeiro. Não chega simplesmente em falar genericamente dos males do capitalismo. Muitas pessoas pensarão que é o disco riscado de sempre.É necessário transmitir conhecimento, e a Ann Pettifor fá-lo bem.

Carlos Borges Sousa disse...

Caríssimos,
Não tive oportunidadede, e com muita pena minha, de ver a entrevista referida pois, e como devem calcular, o trabalho, por aqui, tem sido absorvente q.b.

Anónimo disse...

A entrevista ocorreu na SIC/N, ao Mário Crespo (este, que é capaz do melhor e do pior, até nem esteve mal), sensivelmente entre as 21 e as 21,30H desta quinta-feira. Como digo, não vi os 5 ou 10 minutos iniciais e por isso pode ter-me escapado alguma coisa importante. É claro que posso ter sido influenciado pela intervenção seguinte do mesmo Louçã no debate do MD – o confronto entre as duas era inevitável – onde me pareceu explanar uma análise mais objectiva, sem deixar de ser clara.
Reconheço aqui dois problemas (pelo menos) de não muito fácil resolução:
– O primeiro, a que já me referi no texto, tem a ver com o próprio meio televisivo e os públicos atingidos – mas aqui é necessário também fazer escolhas e ter a preocupação de falar sobretudo para os públicos visados (e não se pretender convencer toda a gente), pelo menos é o que eu penso como leigo na matéria.
– O segundo, apontado pelo José Sousa, diz respeito à necessidade de apresentação de medidas concretas para se sair da crise e não apenas generalidades sobre os males do capitalismo. Mas também aqui o Louçã me pareceu bem mais realista quando, na segunda intervenção, expôs como o capital fictício (essencialmente resultante da actividade especulativa das Bolsas) tomou conta do capitalismo na América, do que apontando apenas para a necessidade de maior regulação (que ele refere, e bem, nada acrescentar de substancial, porquanto percebeu-se bem nesta crise o quanto os reguladores estão dependentes de quem os nomeia!).
Ora, sabendo-se que esse capital fictício (expresso financeiramente) representa pelo menos 4 a 5 vezes o valor real das economias capitalistas em todo o mundo – na América como na Europa ou no Japão,... – porque não insistir, por exemplo, em medidas nesta área que conduzam ao controle público do sistema financeiro mundial?
Irrealista? Nem tanto. Alguém, há um (1!) mês atrás, suspeitaria o que está hoje a acontecer ao sistema bancário nos principais países do centro capitalista? Alguém consegue prever o que irá acontecer a partir de agora? Fala-se num novo Bretton Woods e, obviamente, face aos promotores, não é de se ficar muito entusiasmado com as medidas que daí advirão. Mas até lá, quem sabe o que pode ainda vir a acontecer em termos de poder determinar algumas das suas linhas de força?
Certo é que o papel das esquerdas não pode apenas ser o de assistir a este desenrolar dos acontecimentos. Eu, pela minha parte, procuro traduzir algumas das dúvidas e preocupações com este evoluir da situação, mas não disponho de soluções (não sei se alguém, neste momento, as tem). Mas aos responsáveis políticos, na medida em que concentram um maior número de informação pertinente e dispõem de apoios técnicos para o efeito, exige-se um pouco mais do que simples dúvidas.
Foi apenas isso que eu procurei traduzir nas duas postas desta (curta) série.