Tempo de incerteza – II
Ainda que de uma forma algo imprecisa, começa a perceber-se que a actual organização social baseada no trabalho assalariado se encontra, ela própria, em crise. Duvida-se que a saída para a crise actual, financeira e económica, social e global, traga de novo os empregos perdidos ou ponha a funcionar as empresas que entretanto fecharam. Ou mesmo que as novas empresas que eventualmente surjam possam recuperar esses empregos ou compensar todos os prejuízos, económicos e sobretudo sociais, provocados pelas que entretanto fecharam.
Surpreendentemente e no momento em que mais se justificaria ser-se optimista dado o potencial tecnológico disponível, o mundo mergulha na pior crise social de que há memória – muito por ‘culpa’ desse potencial! Na verdade, tem sido em nome do próprio progresso técnico que se têm imposto alterações nas diversas formas adoptadas pelas empresas (o modelo de organização base do sistema económico capitalista), ao ir-se reduzindo ou mesmo eliminando as grandes e tradicionais concentrações de trabalho: a fábrica cede perante a automação; o escritório cede perante o computador (ou melhor, a informação em rede), pondo em causa a razão de ser da sua própria existência. A inovação e as competências individuais substituem a produção e o trabalho em grupo, como formas privilegiadas de organização social.
Aparentemente este processo parece irreversível e de difícil, senão mesmo pouco sensata, contestação. Mas o que até agora a história do capitalismo mostrou foi que os ganhos de produtividade ou de redução do tempo de trabalho obtidos em resultado dos avanços tecnológicos – da mecanização à automação e à informatização – têm sido maioritariamente apropriados pelos detentores do capital, pois é isso que as regras da concorrência e a busca da máxima rentabilidade lhes impõem. É este procedimento, responsável em grande medida pela debilidade da procura efectiva, que explica a eclosão das crises cíclicas do sistema (crises de sobreprodução ou subconsumo).
Ora, os últimos 30 anos levaram este processo aos limites mais absurdos: face às capacidades abertas pela tecnologia (por ex., a empresa italiana Ariston, no período 1973 a 2005, aumentou a produtividade cerca de 20 vezes: com o mesmo número de trabalhadores, passou a produzir um frigorífico em apenas 15 minutos – contra 4/5 horas no início!), o resultado essencial traduziu-se, é verdade, numa redução do trabalho – que não do tempo de trabalho, mas antes a do número de trabalhadores! E sobretudo numa acumulação de capital (objecto de muitas transferências e jogos especulativos) para níveis assustadoramente colossais, mas de efeitos limitados, porque de difícil colocação, dada precisamente essa debilidade.
Não obstante a certeza de mudanças no horizonte, é sobre o futuro do trabalho que paira a maior incógnita quanto às formas que poderá vir a adoptar, não se vislumbrando, para além de experiências dispersas e muito limitadas, qualquer solução mais estruturada ou consistente. Sobretudo capaz de dar sentido e organizar de forma útil as aptidões das pessoas, capaz de proceder ao seu aproveitamento mais integral, capaz de ir ao encontro e corresponder melhor às suas aspirações. Utopia? Citando o comentário recente de um ‘blogger’ desconhecido (pelo menos para mim): “Penso que é saudável actualmente inventar-se e discutir-se utopias à vontade sem pudores ou vergonhas. Vergonha é o mundo em que vivemos, isso sim. Como diria o Oscar Wilde, um mapa do mundo que não tenha nela o país UTOPIA, não vale a pena sequer olhar para ele, pois exclui precisamente a terra aonde a humanidade está constantemente chegando”.
Já agora e a propósito, acrescente-se que “a caracterização de utopia como mera ilusão e de utópicos como sujeitos distantes da realidade, sonhadores e alucinados, reforça uma tendência explícita da ideologia dominante na sociedade de naturalizar a realidade existente como a única possível e deslegitimar processos sociais com potencial de transformação. ( ...) A utopia permite uma ligação entre o presente e o futuro”. (António Inácio Andreoli). E ainda: “A utopia está lá no horizonte.(...) Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (Eduardo Galeano).
E se a Utopia for mesmo, de momento, o único sítio ‘viável’ a descobrir?
(...)
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